Como bem se refere no artigo publicado no Público 1 de Dezembro, da autoria do juiz Manuel Soares, o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE) tem, através de algumas das suas decisões, contribuído para afirmar a importância para a ordem jurídica europeia da existência nos Estados-Membro de autoridades judiciárias independentes.
Isto, tanto no que se refere ao estatuto dos juízes e ao papel e composição dos conselhos superiores dessa magistratura, como, mais ousadamente ainda, no que diz respeito à indispensável independência do Ministério Público (MP) do poder político.
Dispondo, porém, casuisticamente, como é próprio dos tribunais, tais decisões do TJUE não tocaram ainda, diretamente, todos os sistemas judiciários dos países que compõem a União Europeia.
A Alemanha, por exemplo, continua sem incluir na arquitetura do seu sistema judiciário um conselho superior da magistratura e, tão-pouco, configurou o estatuto do seu MP como um corpo independente do poder político.
Mesmo assim, não é por isso que a independência e a autonomia dos juízes e dos procuradores desse país têm sido questionadas nos dias de hoje.
Em todo o caso, a história não muito recente, mas também não muito distante, desse país permite perceber em que medida tal modelo histórico contém riscos enormes para uma eventual interferência direta e efetiva do poder político na Justiça.
Os tempos do nazismo não podem, na realidade, ser esquecidos.
Ora, é também por tal razão que o TJUE tem decidido como tem, sobre tais matérias, em relação à organização judiciária de outros Estados da União Europeia.
Em suma, as intervenções pretorianas do TJUE com influência na conformação das Justiças dos Estados-Membros acaba, assim, por vezes, por proporcionar inevitáveis desigualdades e algumas incoerências e por criar, assim, ressentimentos nacionais que, em rigor, só ajudam e fortalecem os que, precisamente, não estão interessados em modelos de justiça democráticos e independentes.
O problema da intervenção pretoriana do TJUE, no desenho dos modelos de justiça dos Estados-Membros, não se tem feito sentir, porém, apenas no que respeita à arquitetura dos estatutos das magistraturas.
Mais recentemente, tal intervenção tem vindo – mesmo que por via indireta – a condicionar os Estados a reconfigurar, igualmente, o seu sistema penal e, sobretudo, processual penal.
Refiro-me aos efeitos das decisões sobre o Mandado de Detenção Europeu e, agora, aos do acórdão sobre a Decisão de Investigação Europeia.
Aqui, porém, porque não é possível ao TJUE alcançar a complexidade e a coerência total de todos os sistemas nacionais que, direta ou indiretamente, são afetados pelas suas decisões concretas, a sua intervenção tem criado problemas vários e que, em alguns casos, arriscam mesmo fazer desmoronar os modelos processuais penais de um número significativo dos Estados da União Europeia.
Muitos desses sistemas resultaram, porém, de uma evolução conceptual longa, sobre a necessidade de equilíbrio de soluções processuais claramente respeitadoras dos direitos fundamentais e que, concomitantemente, garantam a segurança e paz da sociedade.
Pôr em crise uma peça isolada de um dado sistema nacional pode, não só, desestruturá-lo definitivamente, como, pior, pode ainda, por simpatia, pôr em causa a lógica de outros sistemas nacionais em que, precisamente, tal peça funcione numa outra dimensão e com outros pressupostos e efeitos lógico-jurídicos.
É esse, na realidade, o problema maior, mas inevitável, da criação de direito por via pretoriana no nível europeu, mesmo quando ela se funda em princípios fundamentais estatuídos na Convenção e na Carta dos Direitos Fundamentais da UE.
Esta solução ajuda, sem dúvida, a resolver certas dificuldades concretas, mas não lhe é permitida – isso seria contra a separação de poderes – sistematizar e dar coerência integral aos resultados das suas decisões num plano mais genérico.
Isso só deve acontecer, e espera-se que aconteça, quando o poder legislativo aprova leis que, sistemática e coerentemente, dão corpo a um regime legal harmónico e respeitador de tais princípios.
Se, no âmbito específico do sistema de um dado Estado, a intervenção de um órgão como o TJUE pode evidenciar – como se disse – certo tipo de problemas que se resolvem, as mais das vezes, com medidas adequadas e imediatas sobre a norma visada, mais complexo se torna tudo, quando de tal intervenção concreta há que extrair soluções que se imponham genericamente a um conjunto mais alargado de sistemas de diferentes Estados, que, mesmo fundando-se em pressupostos semelhantes, têm outra dinâmica processual e coerência interna.
Ao temer, compreensível e prudentemente, criar, a nível europeu, um corpo normativo essencial e uniforme – judiciário e processual – que assegure a harmonia do sistema penal europeu e ao deixar, assim, ao TJUE o papel de detonador das contradições legais que, por tal razão, vão surgindo, a União Europeia, mesmo que involuntariamente, corre, pois, o risco enorme de conseguir sobretudo desintegrar os modelos jurídicos e judiciários nacionais, sem, simultaneamente, contribuir para encontrar para eles soluções congruentes a nível interno e europeu.
Mais, corre o risco de levantar demónios incontroláveis.
Há momentos em que, de facto, e como se costuma dizer, deve competir à política o que é da política, pois a Justiça já fez o que lhe competia – julgar o caso concreto – e mais não lhe pode, nem deve mesmo, ser exigido.
É o próprio Tratado de Lisboa que impõe limites ao estabelecimento de regras europeias – que devem ser mínimas – em matéria penal e processual penal.
Refere a esse propósito o artigo 82.º, n.º 2 do Tratado de Lisboa, que tais alterações – mesmo que mínimas – devem respeitar as tradições e os sistemas jurídicos dos Estados.
Ora, o que é proibido ao Parlamento e Conselho europeus não deve poder, por maioria de razão democrática, resultar, a título de consequência inevitável, mesmo que apenas implícita, de uma decisão do Tribunal: e é esse o risco que hoje se corre.
Aqui, reside o dilema inultrapassável da União Europeia e dos Estados soberanos que a compõem.