Se para tantos, na esteira de Borges, a ideia de paraíso se confunde com uma espécie de biblioteca, esse território que nos faz entrar numa das poucas utopias que ainda nos restam (uma vez que ali onde possam encontrar-se toda a sorte de livros é de admitir que, na sua profusa combinação de sentidos e rumores, estes resultem como uma forma de desdobrar imensamente o acaso, abrindo possibilidades pouco menos que infinitas), há, por outro lado, quem prefira dispensar esses resíduos míticos, quem desdenhe idealismos, ansiando mais pelo consolo infernal de um mergulho nesses antros onde se respira um ar asmático, esse ambiente um tanto degradado que nos mostra a afinidade que os livros partilham com as ruínas, pelo modo como através deles “os mortos falam, o passado vive, a escrita é verdadeira e o tempo suspenso”, como escreve Judith Schalansky.
Há, assim, aqueles a quem conquistam mais as caves, esses ambientes pesados onde se pode consultar livros e jornais antigos, como quem acedesse a zonas recônditas da realidade e também de si mesmo. Afinal, como nos diz aquela autora alemã no prefácio dessa obra estrondosa que marca a sua estreia entre nós, “Inventário de Algumas Perdas” (ed. Elsinore), “tanto a escrita como a leitura permitem-nos escolher os nossos antepassados e confrontar a herança biológica convencional com uma segunda linha hereditária espiritual”. E logo adianta que “se se quiser entender a espécie humana, como por vezes se propõe, como o órgão de arquivo do mundo de uma divindade, órgão esse que conserva a consciência do universo, então as miríades de livros escritos e impressos surgem como tentativas de fazer face a este dever vão e de guardar a infinitude de todas as coisas na finitude dos seus corpos”.
Mas é evidente, como vincou Carlos Edmundo de Ory, que há uma ferida mortal que nasce da ruptura entre a imaginação e a realidade. Assim, por mais cativante que seja essa representação da biblioteca como um mapa que desencadeia o infinito, se esta rescinde com essa fantasiosa imagem e se submete à concretude a que a realidade obriga, estes espaços perdem muito do seu encanto, revelando-se meros depósitos, margens exilares para as quais são remetidos esses espécimes que se conservam apesar da incúria e até mesmo do desdém a que os submetemos. E, ao contrário da tal dignidade das salas imensas cobertas de estantes forjando uma ordem de tal modo magnânima que parece derivar da própria lei da gravidade, damos com lugares onde se combinam o odor a poeira acumulada, a luz mortiça e a volumosa quantidade de papelada arcaica, numa visão decaída, algo profana, certamente desapaixonada, mas esclarecedora quanto ao fim que vêm a conhecer muitos dos nossos melhores esforços e ilusões.
Apesar disto, tem persistido um discurso enjoativo à volta dos livros, uma defesa sem qualquer critério da generalidade das suas espécies, como se a existência destas estivesse de algum modo ameaçada, quando o que é patente é que o seu género tem proliferado de forma descontrolada em resultado da desvairada fuga para a frente do sector editorial e livreiro, que continua a acreditar nos espantalhos que ergue, na suposta crise que às tantas resulta mais desse ciclo de ansiedade e fracasso assumido à partida, de tal modo que o livro nos surge cada vez mais como uma praga.
Assim, damos por nós a fantasiar com uma das mirabolantes hipóteses que nos lança Pierre Gould, personagem de um dos Contos Carnívoros de Bernard Quiriny, que às tantas nos diz: “No país de onde venho, o papel é caríssimo, e reservam-no para a edição dos clássicos e dos dicionários. Os escritores não têm, por isso, outra solução que não seja tatuarem os seus textos sobre a pele, porem uma manta por cima das costas e irem vender-se em pessoa à livraria.”
Se isto soa a pilhéria, ao rocambolesco exercício que torce a nossa relação com o mundo como o conhecemos, e que é típico dos literatos mais provocadores, o certo é que esta hipótese não se fica pela facécia, mas afina uma corda que raramente tocamos: e se a escrita se libertasse dos livros como os conhecemos?
Neste caso, o exemplo é o mais rudemente previsível, e Pierre diz que anda com uma mulher atrás, e que a trouxe “para a acabar no metro”. A jovem morena que regressa com ele de uma longa viagem, e que, por única roupa, usava uma manta colorida, andando descalça, não dizendo uma palavra, limitando-se a permanecer imóvel, “atrás de Pierre, olhando o vazio”, é uma mulher-livro.
E então este traficante de propostas insólitas, absurdas, mas incitantes, dispõe-se a explicar aos seus interlocutores como a escrita se faz neste improvável suporte: “Aqui, o primeiro capítulo está escrito na garganta; os dois seguintes sobre os seios; o quarto no ventre, e assim por diante, até às coxas. A seguir, temos de a virar. Há muitas autoras que fazem gravar o fim nas nádegas, e o desenlace na intimidade.”
Avulta aqui, desde logo, o vínculo entre a sensualidade e o regime de disciplina a que está obrigado quem escreve, numa reciprocidade benéfica, tanto para um vigor carnal como para uma economia de gestos, para que os minúsculos caracteres de imprensa não se tornem um formigueiro cansativo, bloqueando a sensação nesse primeiro leitor (tatuado) que sente apenas o rumor do texto.
Mas Gould também nos faz ver como o abandono desse objecto que, de tão prático, se impôs também como um limite carcerário para a escrita, configurou uma verdadeira mudança de atitude face à literatura, e isto quando o seu prestígio e influência há muito se têm vindo a dissipar. “– Não imaginam a que ponto isto encoraja o amor pela literatura – acrescentou. – Lá [no país dele], os jovens já não leem os livros: devoram-nos.”
E aqui voltamos a Judith Schalansky, que admite que o livro talvez nem mereça toda essa confiança que nele se deposita como o mais fiel repositório dessa mágica que a escrita encerra, esse “ser que se reproduz ao longo do tempo e do espaço” – aqui a autora cita Al-Biruni, o polímata da Corásmia. “Deve-se talvez à minha parca imaginação que o livro me pareça sempre o médium mais perfeito, mesmo que o papel, que se usa há já alguns séculos, não dure tanto quanto o papiro, o pergaminho, a pedra, a cerâmica ou o quartzo, e mesmo que a Bíblia, a antologia de textos mais vezes impressa e traduzida para a maior parte das línguas, não nos tenha sido integralmente transmitida”.
E a atestar a fragilidade deste suporte, nada como a seguinte passagem de “O Infinito num Junco”, de Irene Vallejo: “Gostamos de imaginá-los perigosos, assassinos, inquietantes, mas os livros são, sobretudo, frágeis. Enquanto lê estas linhas, arde uma biblioteca em algum lugar do mundo. Uma editora destrói agora mesmo os seus fundos não vendidos para voltar a fabricar pasta de papel. Não longe de si, uma inundação mergulha na água alguma colecção valiosa. Várias pessoas desfazem-se de uma biblioteca herdada num contentor próximo. Está rodeado de um exército de insectos cujas mandíbulas estão a abrir túneis de papel para depositarem as suas larvas num universo de pequenos labirintos em infinitas estantes. Há alguém no mundo a ordenar uma purga de obras incómodas para o poder. Uma pilhagem destruidora acontece agora mesmo num território instável. Alguém condena uma obra por ser imoral ou blasfema e lança-a a uma fogueira.”
Vai longo o prólogo, e não é outra coisa senão um esforço de prestidigitação, para tentarmos supor como a actual escassez de bens, incluindo o papel, poderia obrigar o sector editorial a rever as suas prioridades. Os livros e os jornais estão a ser afectados, mas também os envelopes, os sacos de papel e, é claro, o papel higiénico, isto porque a celulose (polpa de madeira) viu um aumento de mais de 50% no último ano, com o preço do papel a subir quase 15% no mesmo período, prevendo-se que a escassez perdure até 2023.
Há quase dois anos que a pandemia tem exacerbado os problemas existentes na cadeia de fornecimento global, e acresce a esta pressão a escassez de mão-de-obra. Neste período, houve um aumento da procura do papel, em parte também porque o confinamento significou, em muitos países, que as pessoas se viraram para os livros para afiarem as armas contra o tédio, mas também porque, como sabemos desde há muito, “somos uma espécie que explica o mundo com histórias” (Vallejo), e nos primeiros meses da pandemia estávamos sedentos de explicações. Foi como se, subitamente, nos tivéssemos visto embarcados numa aventura exploratória, e, mesmo sem sair de casa, era pelo registo da fantasia ou até do receio que nos lançávamos na exploração dessa ameaça global.
Seria, no entanto, uma ficção completamente descabida pôr a hipótese de virem a formar-se filas de leitores desesperados por conseguir um exemplar de alguma obra literária mais dura de roer. Para já, apenas se admite que a crise possa ter impacto no que toca a bestsellers inesperados. Todos os anos, há alguns títulos que superam largamente as expectativas dos editores ou livreiros. As tiragens iniciais mostram-se insuficientes depois de um efeito de contaminação que não anda à boleia das gerais estratégias de marketing. Quando isto acontece, e ainda que seja um fenómeno cada vez mais raro entre nós, inicia-se uma espécie de bulha com os livreiros a esforçarem-se por satisfazer os pedidos urgentes que lhes vão chegando, e, na pior das hipóteses, só têm de esperar algumas semanas para que as editoras tenham recebido das gráficas uma nova fornada.
Isto aconteceu com o livro de Irene Vallejo, “O Infinito num Junco”, que depois de se ter revelado um estrondoso sucesso editorial em Espanha, começou a ser traduzido em vários países, incluindo no nosso. Mas nem a Bertrand contava que a febre que se gerara do outro lado da fronteira nos atingisse, e entre a primeira e a segunda edição, durante algumas semanas, não havia exemplares do livro para satisfazer os pedidos. Acontece que, agora, face aos problemas de escassez, e tendo em conta que nas vésperas da quadra natalícia o negócio dos livros faz mais de metade de todas as suas vendas anuais, caso algum título se imponha de forma surpreendente entre as preferências dos leitores nas próximas semanas, é provável que só em fevereiro ou março de 2022 este regresse às livrarias.
Não é só o papel, também a tinta e as gráficas estão a sentir este aperto. Uma boa parte da produção de celulose é feita na China, e um dos factores que levou ao aumento do preço desta matéria prima prende-se com uma iniciativa ambiental chinesa que levou ao encerramento de 279 fábricas de papel e celulose. O outro liga-se a uma reacção global contra o recurso ao plástico de utilização única, o que levou a uma corrida para o substituir por alternativas de papel. Ao mesmo tempo, os longos períodos de confinamento a que fomos todos sujeitos levou a que os canais online absorvessem a parte de leão dos consumos de uma sociedade que não deixou de ser incentivada a gastar à fartazana para segurar a economia; ora, com isto, o preço do cartão para o envio das mercadorias também aumentou. Assim, as fábricas de papel viraram-se para esse lado, retirando recursos que estavam à mão do sector editorial.
Mas para que este abalo fosse descrito como uma tempestade perfeita, contribui ainda uma escassez que chegou também ao mercado de tintas. De acordo com um relatório da Business Research Company, a mesma iniciativa ambiental chinesa que levou à escassez de celulose também diminuiu a disponibilidade de resinas, monómeros, fotoiniciadores, oligómeros e outros aditivos. Além disso, o sector dos fabricantes de tinta tem vindo a assistir a uma concentração com vista a segurar os preços. Mas o mesmo não se passa com as gráficas, que estão realmente a passar um mau bocado. E, neste caso, a crise remonta a mais de uma década. Em 2008, as gráficas estavam a passar por o que parecia ser uma crise existencial: sofrendo, de um lado, os efeitos da crise financeira, e do outro as ameaças de que o sector editorial poderia migrar, com o aparecimento de uma série de periféricos de leitura de e-books. Como se sabe, não faltou quem previsse que os livros impressos estavam prestes a ser dados como obsoletos, artefactos do passado, e esta incerteza gerou uma espécie de paralisia no que toca a investimentos em gráficas.
A verdade é que, depois de algumas perdas nos primeiros anos da crise, a venda de livros tem vindo a aumentar de forma sustentada na maioria dos países, e mesmo em Portugal o sector, apesar de congestionado pelo tanto lixo que faz chegar aos escaparates, tem-se aguentado, e são sobretudo os géneros minoritários como o ensaio, a poesia, o teatro e cada vez mais a verdadeira ficção literária os que sobrevivem como espécies ameaçadas. A questão é que são sobretudo estes os livros que assumem um papel decisivo em tempos de crise ou de incerteza, e sinal disso mesmo é a pesquisa que tem realizado a antropóloga Michèle Petit, que analisou inúmeras iniciativas em espaços prisionais, em bairros conflituosos, em programas de reabilitação de crianças guerrilheiras ou adolescentes sem lar.
Como nos relata Irene Vallejo no seu “Manifesto pela Leitura” (distribuído gratuitamente pela Bertrand), o resultado do estudo mostrou que aquelas pessoas “descobriram nos livros uma possibilidade de estabelecer com o mundo uma relação que não fosse apenas de predação, de domínio ou de utilidade”. E Vallejo adianta que, em épocas convulsas, se a literatura permite que fujamos de nós próprios e nos projetemos em personagens de um país inventado, nota também que a escrita funciona como um depósito fiável das ideias que nos ancoram e nos resgatam. E remete para Mario Vargas Llosa, que escreveu certa vez que “a vida, injusta, obriga-nos a ser sempre os mesmos, quando gostaríamos de ser muitos, tantos quantos fossem necessários para apaziguar os incandescentes desejos que nos possuem”. O escritor peruano remata esta reflexão vincando que “a boa literatura é sempre um desafio ao que existe”.