Davide Enia. “Estas divisões na nossa sociedade fazem parte de um programa suicidário”

Davide Enia. “Estas divisões na nossa sociedade fazem parte de um programa suicidário”


O medo está a fazer da Europa um continente petrificado, que se refugia do futuro atrás de muros. Foi isso o que concluiu este dramaturgo, ator e romancista depois de visitar repetidamente a ilha mais a sul da Europa para testemunhar o apelo trágico da História a bater-nos à porta.


Numa entrevista, Andrei Tarkovsky lembrava que nunca é na resposta que está aquilo que verdadeiramente importa. «Sei que a partir do momento em que o homem começa a fazer perguntas, não será mais capaz de viver como tinha feito até ali». Davide Enia crê que Lampedusa se viu transformada num desses palcos onde a História antecipa o rumo das coisas, «traçando o futuro, modificando estruturalmente o presente». Durante três anos, este dramaturgo e encenador italiano viajou repetidas vezes para a ilha mais a sul da Europa, aquela que, ao contrário das suas irmãs, Linosa e Lampione, não tem origem vulcânica, mas faz parte da placa tectónica africana. Enia quis provar o gosto amargo daquelas águas, dos tantos naufrágios e das mortes que fizeram do Mar Mediterrâneo um imenso cemitério.

No livro Notas Sobre Um Naufrágio fala-nos das histórias pessoais que ficam como pedaços de um espelho fragmentado, aquele que reflecte esse movimento inexorável da História que, uma vez mais, «está a levar pessoas de carne e osso, de todas as idades, a deslocarem-se. Elas partem, atravessam o mar, desembarcam. Lampedusa não é uma saída, é uma etapa».

Originalmente publicado em 2017, este livro nasce de um desejo de fazer perguntas, e é uma interrogação sobre o próprio processo literário, a razão por que contamos histórias, porque o romance, mais do que encerrar um assunto, deve ser também ele um contentor. Este tem a sua natureza informe definida por aquela ilha onde «os elementos se abatem sobre nós sem que nada os impeça» e onde Enia diz ter-se deparado com «seres humanos que carregam dentro de si um cemitério inteiro». Adianta ainda que Lampedusa se tornou, em si mesma, uma palavra-contentor: «migração, fronteira, solidariedade, turismo, época estival, marginalidade, milagres, heroísmo, desespero, suplício, morte, renascimento, resgate, tudo isto contido num único nome, num amálgama que ainda não tem uma interpretação clara, nem uma forma reconhecível».

Como é falar sobre esta questão dos migrantes agora que muitos preferem esquecer o assunto?

Antes de escrever já fazia teatro, e um dos mistérios do teatro liga-se a essa tarefa de se repetir cada noite o mesmo texto. Temos de saber como nos livrar da repetição, temos de acreditar que há sempre a possibilidade de se descobrir algo de novo. É isso o que nos guia quando abrimos a boca, quando usamos as mesmas palavras e procuramos dizer algo mais. Vir aqui, a Lisboa, como a outras cidades – tendo antes passado por França, pela Alemanha -, a esses lugares que o livro me possibilitou visitar e descobrir, tem sido uma oportunidade de ir ao encontro de outras pessoas, cruzar-me com pessoas diferentes, do mesmo modo que cada nova tradução nos permite sentir com uma renovada estranheza as coisas que escrevemos. Isto também nos ajuda a buscar novas respostas para as perguntas que nos vamos colocando. Todos estes ângulos, toda esta repetição aprofunda a nossa consciência, e faz parte desse desafio de não abandonar essa coisa que tem estado a ocorrer continuamente no Mar Mediterrâneo. Estive em Lampedusa há três semanas. Vi desembarcarem na ilha mais de 500 pessoas em dois dias. Não encaro como uma missão este esforço de continuar a falar sobre o assunto, sobre o livro. Apenas sinto que devo contar o que vi, o que ouvi ou testemunhei às pessoas que me escutam.

E como é que este livro aconteceu?

Aquilo que me pergunto a mim mesmo é simples: ‘Tu quem és?’. Foi esta a pergunta que me acompanhou ao longo do processo da escrita deste romance e, depois, da peça [L’Abisso]. Quem sou eu? Porque é que fui a Lampedusa? Do que tenha andado à procura? O que é que isso diz sobre o meu trabalho enquanto escritor? O que é que eu faço agora aqui? Porque é que sinto necessidade de falar da relação que tenho com o meu pai, da doença que levou o meu tio, e qual é a ligação entre isso e o que fui encontrar em Lampedusa? A quem me lê, o que me interessa é que sejam levados a pensar nas suas próprias vidas. Quero que se questionem sobre o que é que sabem ao certo quanto ao que se está a passar no Mar Mediterrâneo. Há as notícias que nos chegam pela televisão, pela rádio, mas, para além disso, já tivemos ocasião de falar com um refugiado, com alguém que tenha vivido de perto aquela realidade? A mim interessa-me sugerir aos leitores que se acerquem deste tema. Não quero que o tema fique trancado numa resposta.

Há uma forma de liberdade na escrita do romance, e uma outra forma de liberdade que explora enquanto dramaturgo. Aqui, a liberdade liga-se à própria invenção do processo da escrita a que estes géneros obrigam. Como resolveu a questão de saber como abordar um tema tão delicado?

Penso como um romancista, como um dramaturgo sempre que tento abordar um tema mais sensível, e montar as peças que tenho ao meu dispor. Penso na escrita como algo semelhante ao que ocorre com o compositor quando ergue uma sinfonia, e tem de pensar nos movimentos, no ritmo, nas progressões, até na forma como dispõe do silêncio. A primeira dificuldade, ainda antes de começar a escrever, surgiu nas conversas com este ou aquele amigo, em que não sabia por onde começar. No esforço para descrever o que foi falar com aquele homem que tinha integrado a equipa de mergulhadores que se esforçaram por resgatar aquelas pessoas enquanto tantas outras se afogavam. Aquele conflito de se ter alguns segundos para decidir se salvo este que tenho mesmo à minha frente ou se salvo aquela mulher que está a tentar manter-se à tona com uma criança de colo nos braços… Lembro-me de andar pelas ruas de Roma com um amigo meu e de lhe falar deste tipo que eu conheci e das coisas que me contou, de como sentia a urgência de escrever sobre aquilo, mas não sabia como fazê-lo. E o que o meu amigo me dizia era que eu não tinha de fazer outra coisa que não aquilo, começar por assumir as minhas próprias dificuldades perante aquele acontecimento. Depois de ter ouvido isto de outras pessoas, da minha namorada, decidi que esse seria o início do romance, e, mais tarde, que também começaria assim a peça de teatro.

E o romance depois encadeou-se?

Durante meses andei de um lado para o outro, e a cada 20 dias estava de volta a Lampedusa, mas lembro-me que sempre que me perguntavam sobre o que é que andava a escrever, dizia que era sobre a relação entre mim e o meu pai. Sabia que o suposto era estar a descrever aquilo que se estava a passar na ilha, mas não conseguia evitar que aquelas coisas me levassem a falar sobre esta relação íntima. E depois comecei a perguntar-me porque foi que quis que o meu pai me acompanhasse numa das minhas visitas a Lampedusa. Não é que tivéssemos uma relação de confiança tão forte que eu sentisse a necessidade de o ter a meu lado. Na verdade, sempre foi mais uma relação definida pelo silêncio do que pelas coisas que nos dizíamos. Foi só depois de um intenso processo de terapia – um processo de que não me desliguei até hoje e que foi uma das melhores coisas que fiz na vida, e aconselho todos os que tiverem oportunidade a fazerem o mesmo -, que finalmente me dei conta de que faço parte de uma geração em que os homens foram criados por mulheres, uma geração cujos pais eram figuras algo distantes, que se resguardavam no silêncio. Eram as vozes das nossas mães, das nossas avós aquelas que ouvíamos, que trazíamos cá dentro e que não paravam de falar connosco. Foram elas que nos ensinaram a estabelecer uma relação com o mundo, foi com elas que descobrimos a empatia, esse esforço de nos colocarmos na posição de outro, de considerarmos as suas opções, de cuidarmos dele, mas os nossos olhos eram os dos nossos pais. E se temos dificuldade em ligar os olhos e aquilo que vemos àquilo que sentimos cá dentro, que nos vem das entranhas, começa a nascer em nós um conflito. Por isso, quando pedi ao meu pai que viesse comigo a Lampedusa, aquilo que queria era relacionar-me através do meu olhar e do dele de uma forma diferente com o mundo que tínhamos à nossa frente. Para conseguir ter essa visão renovada das coisas senti que era necessário romper com o silêncio que sempre houve entre mim e o meu pai. Quis tentar começar uma conversa, uma longa conversa com o meu pai. Foi o meu tio Beppe, que estava então a viver os seus últimos dias com um cancro, quem nos deu essa hipótese de construir um triângulo. Ele era a base, e eu e o meu pai, para não desabarmos, tentámos suster um ao outro.

Teve receio de não conseguir saltar da sua vida pessoal para o plano mais geral?

Sou um filho do século passado, do milénio passado. Nasci em 1974. Os meus olhos são velhos. O que estava a acontecer em Lampedusa, no Mar Mediterrâneo, é um confronto com a História. O que ali está a ocorrer é algo de novo, e obriga-nos a criarmos novos olhos capazes de ver algo que ainda não fora visto até agora. Isto foi uma coisa de que me dei conta primeiro que tudo de forma instintiva e só depois consegui levar até lá o meu pensamento. Tive de continuar a questionar-me porque é que estávamos a assistir aquilo. Essa interrogação foi sempre o que me guiou nas situações com que me fui deparando nesses primeiros anos de visitas a Lampedusa.

A imagem do miúdo virado sobre a areia, morto, provocou uma onda de comoção tão grande que, por umas semanas pelo menos, houve uma forte pressão para que os governos fizessem alguma coisa para responder de forma humana a esta tragédia. Foi claro naquele momento que entre as notícias que íamos dando e aquela imagem, é a emoção o que ainda é capaz de afetar o nosso comportamento. Como foi para si ser confrontado com esta ineficácia das palavras face ao poder inexprimível de uma imagem?

Perante uma imagem como essa todos nós que nos preocupamos com o esforço de apreender esses momentos trágicos ficamos com essa dúvida: como é que seremos capazes de contar estas coisas que aconteceram? Como é que vamos contar esta parte da História? A imagem consegue ser terrível e ao mesmo tempo subtilíssima. Não treme. O que nos choca é precisamente como se imobiliza por dentro da nossa perturbação, e nos confronta sem se alterar um milímetro. De súbito somos sacudidos pelo desejo de intervir, mas a imagem diz-nos que o pior aconteceu. Agora, só podemos impedir que se repita. Enquanto escritores, preocupa-nos que as nossas palavras acabem por carregar demasiada violência, a um ponto em que o leitor prefere simplesmente abandonar o livro. Por outro lado, debatemo-nos constantemente com essa questão de saber como podemos falar sobre estas coisas respeitando o corpo e até a vida destas pessoas. Como posso usar a escrita de modo a que seja um instrumento e não outro mecanismo para distorcer, manipular ou impor uma certa visão das coisas para meu benefício? Pensei que o trabalho que se me impunha era escrever um romance, mas desde o título assinalo o meu fracasso: Notas Sobre Um Naufrágio. Porque não consegues fechar num romance aquilo que se está a passar no Mediterrâneo agora, porque ainda nos recusamos a ouvir a história que nos querem contar estas pessoas que estão a tentar chegar às nossas costas. E elas também precisam ainda do seu tempo para estarem aptas a contar a sua versão, de modo a que o mosaico possa completar-se.

Ter assumido o fracasso à partida ajudou-o a ir adiante?

Ao aceitar o fracasso desde o início senti uma liberdade enorme e um alívio, pois não estava obrigado a explicar fosse o que fosse. O que tentei foi criar uma ligação entre as pessoas. Assim, os encontros que fui mantendo deram lugar a amizades, e já não era eu quem estava a pedir que me contassem o que tinham vivido, as pessoas queriam contar-me a sua história, as suas experiências. Depois chegava um momento em que o relato se interrompia… Chegávamos ao nó que tinham lá dentro, ao trauma que continuava a apertá-las, e vinha o silêncio. Mas como eu cresci dentro do silêncio, esse eu sei ler. Foi o silêncio que fez de mim quem eu sou. Foi importante ter começado a registar essas histórias depois de ter já construído relações fortes, de ter estabelecido uma confiança com as pessoas. Parte do meu trabalho como ator é ser capaz de ler nos comportamentos e na postura das pessoas aquilo que elas estão a dizer sobre elas mesmas. Assim, foi como se estivesse a descobrir uma outra forma de registar essas experiências que afetam a nossa expressão. Senti que me era possível falar disto porque essa é a minha linguagem. Por isso, escrevi esta parte do romance, que são as notas, e estou a aguardar que todas estas pessoas comecem a contar aquilo que viveram.

Conhece a obra de Svetlana Alexievich?

Ela é a minha estrela polar. Admiro profundamente o trabalho dela. Quando descobri os livros dela, dois ou três anos antes de ter começado a escrever este, pensei: é precisamente isto o que eu quero fazer. Ela é, entre os escritores vivos, a minha preferida.

Algo que impressiona nos livros dela é aquele pacto fortíssimo que estabelece com as pessoas que entrevista e o que se sente é não só que a escrita dela é um ato de uma generosidade extraordinária como um compromisso de transmitir aos leitores a versão mais apurada da história. Para isso ela é incansável, e repete e ouve, uma e outra vez a mesma pessoa, o mesmo relato, para chegar aos elementos decisivos e que desbloqueiam esse trauma de que falava.

E como escritor, admiro imensamente a confiança que ela põe nas frases que ouve das pessoas que entrevista. Ela não sente a necessidade de se pôr em evidência, limitando-se a fazer um trabalho de arqueologia emocional, recuperando e trazendo à luz essas vivências que ficam estranguladas no nosso interior. Ela coleciona assim essas frases estranhas, poderosas, e consegue-o porque percebe que esse é o verdadeiro valor da literatura que pretende fazer. Chegar ao testemunho mais dilacerante, à experiência mais reveladora… Não precisa de se imiscuir, nem de nos fazer saber o que pensa, dando-nos esta profissão de fé: devo ter fé nas palavras que oiço. Assim, ela foi de algum modo o meu mestre neste trabalho. Ensinou-me a ter fé nas palavras, e a não sentir a necessidade de vir com explicações. Basta o testemunho. Basta saber respeitar aquilo que as pessoas nos dão. É preciso fé para se chegar a esses lugares mais difíceis.

Entre o romance e a peça de teatro, das reações que lhe vão chegando por parte do público, em que aspetos é que lhe parece que foi bem-sucedido ao tratar a questão dos migrantes e quais são aqueles em que lhe parece que falhou?

Escrevi a peça, “Abismo”, um ano depois de ter escrito o romance, e porque senti que não tinha conseguido encerrar aquilo que começara. Senti que precisava recorrer ao outro lado, à parte de mim que explora estes temas numa ligação mais próxima com o público, quando nos é possível encarnarmos as coisas que escrevemos. E de cada vez que levei a peça a cena senti que estava a lidar com algo maior do que eu, e isto foi ainda mais claro quando levei a peça a Lampedusa. Em palco estava eu e um músico. A música é uma parte muito importante da peça, pois quando não tenho palavras é a música que toma conta e tenta sugerir algo mais. Senti que éramos dois instrumentistas, e que a história passava por ali, mas era algo bem mais vasto. No final da peça, as pessoas vinham dar-me os parabéns, agradecer por eu ter encontrado as palavras para falar daquilo que tinham vivido. Mas eu dizia-lhes que não, que as palavras eram deles, e que eu não fiz mais do que coser tudo aquilo. Aquela tragédia falava das nossas vidas, mas a verdade é algo que não pode ser pronunciado. Para isso é que precisamos da arte, dessa busca incessante. Essa é a razão de existir do teatro que nos ajuda a procurar sempre um outro ângulo para chegar à verdade. Noite após noite, senti sempre que tinha comigo as pessoas com quem fiz este trabalho. Não era como se estivesse ali no meio de fantasmas, sentia era que conseguia repetir o processo, não ficar exausto porque estava a ser ajudado. Cada noite era uma oportunidade de voltar a estar na companhia do meu tio Beppe. Claro que é doloroso estar a reviver tudo aquilo, mas é uma forma de manter a ligação. E no fim da peça, quando as pessoas ficavam à nossa espera no foyer, para falarem comigo e com o Giulio [Barocchieri, o músico], e era como se a peça tivesse ali uma continuação, pela vontade que as pessoas tinham de nos contar aquilo que viveram. E esse foi sempre o meu principal objectivo, que aquilo que escrevi levasse as pessoas a pensarem nas suas próprias vidas. Seja a relação que tens com o teu pai, seja porque algum familiar está a lutar para sobreviver a um cancro, seja porque a questão dos migrantes te perturba e queres encontrar uma forma de te envolver no assunto, de tomar uma posição. Estou grato por fazer parte deste processo, mesmo que tenha ficado exausto depois da tournée. Não tanto do ponto de vista física, mas emocional. Num ano, fizemos 200 apresentações da peça por toda a Europa. E só fui capaz de o fazer porque tenho andado a fazer muito exercício físico. Corro, faço crossfit… Tenho de garantir que o corpo está na melhor forma, de outro modo não aguento. Por outro lado, sou um tipo bastante preguiçoso, e esta é uma forma de treinar as tuas emoções, e hoje tenho um controlo muito maior sobre estas coisas, e não começo a chorar por falar no meu tio. Mas foi importante traçar essa linha entre aquilo que estava a ocorrer em Lampedusa e que me deu a sensação de estar a assistir à História a desenrolar-se, ao mesmo tempo que sofria a perda do meu tio, e me dava conta de que, por mais doloroso que fosse, isso era apenas a minha vida pessoal. 

Como lhe parece que a sua forma de encarar o mundo, a sua ideologia e compreensão da sociedade e até da Europa foi transformada por esta crise de refugiados?

A impressão que tenho, hoje, da Europa é bastante má. Não faltam políticos desses que enchem a boca com a imigração, os supostos problemas que esta levanta, e, no entanto, nunca, mas nunca, se confrontam com a realidade, nunca viram com os próprios olhos aquilo que acontece quando um barco cheio de migrantes chega à nossa costa ou naufraga. Nunca estiveram no mar a participar em operações de resgate. Estão a uma larga distância desses pontos onde a História se vai fazendo, mas é a partir das suas casas que tentam escrever a História. Falam de erguer muros e esquecem que a História nos ensina uma coisa: todos os muros acabarão por ser derrubados. Penso que a Europa, tal como os EUA, é hoje um território definido pela sua ansiedade, pela angústia e pelo medo. Os povos europeus vivem cheios de medo. É por isso que o muro é tão alto e tão forte na nossa imaginação, porque nos encerrámos no seu interior. Mesmo que sintamos necessidade de assumir uma perspetiva nova sobre estes temas, a verdade é que já nos tornámos cegos. As pessoas que chegam à Europa provocam-nos calafrios porque passam por nós como espelhos. Perante eles, o que vemos somos nós próprios, o ambiente em que vivemos. O que estamos a ver nestas pessoas é que o mundo que criámos está a dar cabo de si mesmo. Vemos estes fenómenos de descriminação social, de injustiça social, desigualdade económica, vemos como a parte branca e mais rica do mundo encara a parte mais pobre e negra. Originámos as alterações climáticas, cujos efeitos estão a provocar este movimento de pessoas, e não fazemos nada para impedir as suas piores consequências. Queremos erguer estes muros para não vermos a merda que andamos a fazer no mundo. Assim, só há uma maneira de calar o medo e ansiedade que nos sufoca, que é transformá-lo em ódio. Para isso precisamos de um inimigo, e é isso de que temos andado à procura. Estamos a criar inimigos por toda a parte, no seio das nossas sociedades e fora também. É claro que tudo isto, todas estas divisões, fazem parte de um programa suicidário. É a isto que a Europa se tem entregado ao confiar à pior parte de si mesma a definição das suas atitudes face ao Outro.

E o que lhe parece que vai acontecer ao Ocidente se continuar a negar as suas responsabilidades?

Desde que o Homem se ergueu e passou a andar sobre duas pernas que tudo nas nossas vidas passou a ser definido pelo movimento. O movimento é a própria vida. Por isso, a pergunta que devíamos ter em mente é o que estamos a fazer ao mundo ao tentar impedir o movimento de pessoas? A questão não é a imigração, mas que mundo é esse que deseja ficar petrificado, pôr fim à interconexão entre os povos, encarar o Outro como um inimigo? A Europa precisa de se reencontrar e isso deve ser feito por meio de um sentimento de vergonha por ter toda esta gente a afogar-se no Mediterrâneo ansiando por uma oportunidade de viver aqui a sua vida. A minha esperança é que a geração mais nova consiga de uma vez por toda livrar-nos da corja que são estes políticos cheios de medo. Se hoje a Europa vive bem com o facto de uma grande parte das pessoas no mundo não têm acesso aos mesmos direitos e privilégios esquecem-se que o motivo por que ganhámos esses direitos não é inato, foi uma conquista que os povos europeus conseguiram lutando por eles, provocando revoluções. Não podemos ter todos descendido a essa forma de conservadorismo abjecto em que nos sentimos justificados ao discriminar com base na cor, na religião, na orientação sexual… Quer queiramos quer não, vem aí um novo mundo, e se queremos preservar alguma coisa teremos de aceitar essa nova forma de pensar que nos livra de todos esses receios. Espero que a nova geração entenda que só consegue entrar neste mundo por meio de uma revolução.

Quando pensa nesta nova geração, e uma vez que neste livro se debruça sobre a relação que tem com o seu pai, como pensa que seria relacionar-se com um filho? Como acolheria, hoje, neste mundo, um filho, tendo em vista esse desejo de permitir que ele ou ela fossem portadores dessa nova perspetiva, desse novo olhar?

Só consigo pensar em duas coisas quando penso nisso. E falo disto com os meus amigos, as pessoas de quem estou próximo. A primeira sugestão é que se alguma coisa te provocou sofrimento, se te aconteceu alguma coisa que teve um grande impacto em ti, deves fazer um esforço para falar sobre isso. Põe isso, o que quer que seja, fora de ti porque essa é a única forma de ganhares algum poder sobre ela e, se for algo de muito traumático, é a única forma de lhe sobreviveres. Sei que isto chega a ser terrivelmente doloroso, mas é a única forma de nos libertarmos. A segunda sugestão é que te esforces por nomear aquilo que desejas. Quanto mais claro for para nós aquilo que nos move menos estamos sujeitos a esse desejo que está ser sintetizado no seio das nossas sociedades de forma a aumentar a nossa ansiedade. Estamos a criar um mundo à imagem de um supermercado, e o nosso desejo é o que nos pode levar noutra direcção. Pelo menos, se soubermos o que realmente desejamos não vamos perder a vida no meio dessas fileiras. A saída é lutar pelo nosso desejo, pelo desejo que move as outras pessoas. Não somos meros consumidores, nem números ou estatísticas. Não somos iguais. Somos diferentes, e é essa diferença o que nos faz participar em algo maior do que nós.