Os tradutores afegãos que trabalharam para Portugal no Afeganistão, que pratiquem a poligamia, foram obrigados a escolher apenas uma das esposas para serem retiradas do país com eles, segundo declarações do ministro da Defesa, numa entrevista à RTP, no final de agosto. Mas que critérios foram utilizados para que determinadas mulheres sejam escolhidas em detrimento de outras?
“Em primeiro lugar, não sei até que ponto essa é ainda uma questão. O ministro João Gomes Cravinho, na altura, referiu que nos casos em que o staff que tinha colaborado com o Governo português teria de escolher apenas uma mulher”, começa por lembrar Faranaz J. A. Keshavjee, licenciada em Antropologia Social e mestre em Psicologia Social com a tese “A Mulher Muçulmana em Portugal – processos psico-sociológicos de diferenciação entre os sexos” pelo ISCTE-IUL.
A também pós-graduada em Estudos Islâmicos e Humanidades no Institute of Ismaili Studies, em Londres, refere-se ao facto de que Gomes Cravinho adiantou que os quatro militares portugueses enviados para o aeroporto de Cabul viajaram com uma “lista prioritária” de 116 afegãos que seriam retirados para Portugal. Destes, 20 afegãos trabalharam “diretamente para as forças destacadas portuguesas ao longo de quase 20 anos”. As restantes 96 pessoas correspondem a “uma esposa” e “todas as crianças menores” que acompanham os intérpretes, revelou o governante, asseverando que “a missão é [era] ajudar a entrar no aeroporto e nos aviões aqueles que constam da lista prioritária de Portugal”.
“Depois, fui percebendo, ao longo do tempo, que esse assunto não foi mais tratado. Foi posto de parte e não sei se é porque não surgiram casos de poligamia ou se é porque eventualmente esse assunto foi entendido de uma maneira construtiva e percebeu-se que, se na verdade o mundo ocidental tem estado particularmente preocupado com a posição das mulheres no Afeganistão, seria um contrassenso, a haver casos desses, que tivesse de se fazer uma escolha”, salienta a docente convidada na Universidade Católica, no SIRP, na Universidade Lusófona e no ISCSP-UL que prepara uma tese de doutoramento acerca das construções das identidades dos muçulmanos adolescentes em Portugal e das representações de género.
“A salvaguarda da proteção destas mulheres faz parte das orientações dadas no Islão fundacional pelo próprio líder, o profeta, e tem a ver com justamente situações em que, na eventualidade de as mulheres estarem numa posição de fragilidade e dependência económica e até social, tenham de ser protegidas. É uma ironia que, aqui deste lado, estejamos todos particularmente preocupados com a posição fragilizada e muito difícil das mulheres naquele contexto e, na eventualidade de dar guarida a pessoas que trabalharam com forças da NATO, as obriguemos a escolher somente uma mulher de forma injusta. A justiça, de acordo com os princípios éticos do Islão, passa por tratá-las a todas de forma igual”, frisa, indo ao encontro da informação divulgada pela Amnistia Internacional que, na descrição da petição “Portugal deve cumprir as suas obrigações para com civis afegãos”. A proteção destas pessoas constitui “uma obrigação moral, humanitária e legal, acrescentou. Por isso, o Governo português deve agir, enquanto país promotor da defesa e proteção dos direitos humanos, para cumprir a sua parte e dentro da sua esfera de atuação enquanto membro da União Europeia (UE), da OTAN (NATO) e da ONU atuar na liderança da promoção dos direitos humanos”.
E, para isso, instiga a que Portugal se destaque “enquanto país de acolhimento de qualquer pessoa que seja obrigada a fugir do Afeganistão, independentemente da forma como o faz” e que garanta “que todos os pedidos de proteção internacional são tratados de forma célere e eficaz, salvaguardando todos os direitos destas pessoas”, atuando “de forma a influenciar outros países da UE a cumprirem as suas obrigações morais, humanitárias e legais, e a não continuarem com a política de regressos forçados ao Afeganistão”.
“Em diferentes sociedades muçulmanas, onde as populações se regem por uma sharia que permite a poligamia, há vários modelos de contrato matrimonial. O casamento não é um ato religioso, mas sim um contrato social e é aconselhável que a primeira mulher de um homem aceite que ele tome outra como esposa”, clarifica Faranaz J. A. Keshavjee, evidenciando que é muito importante perceber, quando se fala destas sociedades, que não podemos aceitar que existe só uma, moldada de uma só forma, porque todas são distintas e têm os seus próprios hábitos e costumes.
É natural que assim seja, pois “são originárias de heranças culturais específicas e aquilo que acontece é que as suas práticas costumeiras passaram a ser islamizadas. Portanto, é um erro dizer que o Islão diz isto ou diz aquilo porque é muito vasto, diverso, plural e heterogéneo”, remata, adicionando que “também sofreu diferentes tipos de evolução em diferentes contextos consoante a sua História política, social, económica e cultural”.
Mentalidade de “erotização e diminuição”
A autora de artigos como “Islão – choque, fascínio e repugnância”, publicado em 2010 na versão portuguesa do Le Monde Diplomatique, recorda que é muito importante, quando abordamos estas realidades, que saibamos de que contexto cultural estamos a falar. “Na generalidade, a mentalidade dos ocidentais é a da erotização e da diminuição daquilo que representa o mundo dos muçulmanos. E, normalmente, há uma tendência muito grande para o insulto e para aquilo que definimos como uma fobia, um medo e uma demonização do sujeito muçulmano”.
Porém, existe a realidade encoberta pelo estigma, que é aquela que se prende com os pontos positivos que ajudam ao progresso da Humanidade e são obliterados e postos de parte. “As contribuições que alguns dos maiores líderes muçulmanos têm feito para o desenvolvimento das sociedades são ignoradas. Existe um trabalho de fundo”, declara a docente universitária. “E o que é mais curioso é que as pessoas que falam assim parece que, de repente, esqueceram-se de que na sociedade portuguesa temos uma comunidade muçulmana exemplar e os próprios portugueses são descendentes de vários povos e culturas que estiveram presentes na Península Ibérica durante 800 anos e, muito do património intelectual, linguístico e cultural é muçulmano”, repara, notando que este discurso “sobre o outro que parece que não tem nada a ver connosco, mas, no entanto, tem, felizmente, é minoritário”.
“É uma coisa que nos perturba e pode fazer-nos pensar na força que os movimento políticos populistas possam vir a ter, mas o lado feliz disto tudo é que quanto mais conhecemos o ator político, mais o vemos a afundar-se e as teses dele a caírem por terra”, afirma, explicitando que a intolerância emerge em sociedades onde existe uma grande ansiedade e dificuldade económicas, desconfiança política, corrupção e prepotência dos políticos sobre a população. “Sempre que há este tipo de situações sociopolíticas, há espaço para os populismos”.
“Oxalá os portugueses distingam o discurso coerente daquele que é amorfo e inverosímil. A maior falha de todas é aquela a que estamos a assistir no Médio Oriente. Ainda achamos que somos moral e eticamente superiores. Fizemos muitas asneiras e espero genuinamente que se faça tudo aquilo que estiver ao nosso alcance para corrigir aquilo que fizemos, pelo menos, durante os últimos 20 anos”, apontou a doutoranda em Psicologia Social, na Universidade de Cambridge, no Reino Unido, mencionando que o período compreendido entre os ataques de 11 de setembro de 2001 e a atualidade devia ter decorrido de modo distinto.
Aquela que é encarada como uma série de ataques suicidas contra os Estados Unidos coordenados pela organização fundamentalista islâmica al-Qaeda leva a que Faranaz J. A. Keshavjee reflita sobre os movimentos extremistas e radicalistas, assim como o próprio movimento islamita, que, a seu ver, “não são endógenos ao Islão, mas sim coisas promovidas pelos próprios governos”, na medida em que “os mujahidins são filhos dos talibãs e o ISIS e o Daesh são respostas a falhas e a erros gravíssimos cometidos contra povos ocupados, colonizados e oprimidos”.
Relativamente à situação atualmente vivida no Afeganistão, desde que os EUA encerraram o ciclo de duas décadas de presença militar no país e os talibãs regressaram ao poder, de modo mais concreto, a professora aclara que “as forças da NATO foram militarizar e, à custa disso, impuseram regras que entendem que no Ocidente são as melhores como o facto de as mulheres acederem a espaços públicos sem receio”. Para a especialista em Estudos Islâmicos, os próprios afegãos foram vítimas do medo e do terror perpetrados pelos ocidentais.
“Há relatos de situações de terror provocadas pelas forças norte-americanas contra potenciais talibãs que nem sequer o eram. E é preciso pensar porque é que a maioria do povo afegão decidiu que quer gerir o seu próprio destino mesmo que isso signifique que esteja sujeito a uma lógica identitária onde a discriminação de género e em relação a outras minorias continua a existir”, constata, elucidando que o Afeganistão não é só Cabul, tem quase 40 milhões de pessoas enquanto a capital tem 4 milhões, e “as províncias todas não beneficiaram do mesmo tipo de desenvolvimento”.
“Acredito muito naquilo que é o lado humanitário e humanista do povo português. E tem a ver com o facto de sermos produto de uma miscigenação cultural e histórica que nos permite olhar o mundo de forma mais pluralista e cosmopolita. Tenho muita fé naquilo que a sociedade civil pode fazer para ajudar a corrigir aquilo que está mal. Acredito no poder das massas, do povo e que estamos a viver uma nova era em que as coisas não são ditadas de cima para baixo, mas o povo pode decidir aquilo que quer”, conclui a investigadora que já apresentou papers em instituições académicas europeias e reforça “povos pequeninos como nós que podem fazer a diferença pela positiva neste mundo que está completamente fraturado”.
“Temos de ouvir as mulheres afegãs”
Diana Pinto é presidente da Liga Feminista do Porto e considera que o acolhimento de uma esposa apenas, por agregado familiar, “é um problema e sobretudo representativo das consequências gravosa da forma como o Governo português está a lidar com a questão dos refugiados”, sendo que o órgão que representa julga “que as mulheres afegãs, as maiores vítimas dos talibãs, vistas como cidadãs de segunda, devem ser colocadas em primeiro lugar”.
Por isso, a política atual deve ser alterada para que “as mulheres e crianças sejam prioritárias e as primeiras não sejam vistas como pertença dos seus maridos”, vindo para Portugal independentemente da família e do estado civil. A estudante de História na Faculdade de Letras da Universidade do Porto reconhece que “não podemos definir o funcionamento da religião islâmica, mas temos a obrigação de organizar o asilo político de forma a que não sejam tomadas este tipo de decisões”.
“As mulheres são pessoas e seres humanos em si mesmas. Repudiamos esta forma de fazer política que se estende aos nossos representantes políticos. Temos contacto com uma organização de mulheres no Afeganistão, a Associação Revolucionária das Mulheres Afegãs e mantemos contacto esporádico. Todas elas vivem em situações de insegurança e medo. São mulheres ativistas que se encontram nas piores circunstâncias porque são uma clara ameaça ao regime”, diz, mantendo a crença de que a forma como o processo de acolhimento dos cidadãos afegãos decorrerá dependendo da boa vontade dos decisores políticos e das organizações da sociedade civil, assim como da pressão que estas podem fazer.
“A política talibã é baseada na escravidão sexual e tal afeta diretamente o género feminino. O Governo português e os restantes do Ocidente têm muita culpa da forma como este conflito está a decorrer e têm a obrigação de auxiliar quem está a sofrer”, finaliza, alinhando-se com Liliana Rodrigues, presidente da União de Mulheres Alternativa e Resposta.
A Investigadora do Centro de Psicologia da Universidade do Porto (CPUP) releva que “na entrevista que foi dada pelo ministro da Defesa, o mesmo referiu que não havia famílias com mais de uma companheira e que seria uma questão teórica e não prática. Mas, de facto, não podemos ignorar que há diferentes configurações de famílias que têm direito a ser reconhecidas”.
“É importante resgatar pessoas e não podemos esquecer aquilo que tem acontecido com o género feminino – por exemplo, perseguições – e temos de ouvir as mulheres afegãs. Há grupos em Portugal de apoio a estas mulheres e devemos ouvi-las porque têm ideias, programas de acolhimento e sugestões. É necessário que sejam protegidas e que se reconheça que estão numa situação de maior vulnerabilidade”, argumenta a doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade do Porto e mestre em Psicologia da Justiça pela Universidade do Minho.
“Mais do que estar à espera de que nos digam qual é a situação, temos de perceber que existe uma situação de guerra e que temos de dar a mão a estas pessoas. É muito importante reforçar que, no seu global, estão em situações de vulnerabilidade e temos de destacar as mulheres e as crianças porque historicamente são oprimidas nestes contextos” e, assim, tem de haver o compromisso, a nível europeu, de pensar todas estas questões de forma mais alargada e concertar esforços para ajudar as vítimas ou potenciais vítimas do regime talibã.
“É um compromisso humano: ajudar e perceber estrategicamente como podemos dar-lhes a mão e acompanhá-las. Não pode ser um país sozinho, mas sim o coletivo de maneira organizada”, indica Liliana, membro da equipa técnica e científica do projeto “JOVI(GU)AL – Alianças de Jovens para a Igualdade de Género e bolseira do projeto “Cidadania Sexual das Mulheres Lésbicas em Portugal. Experiências de Discriminação e Possibilidades de Mudança”, acrescentando que “estas pessoas têm o direito à vida e a ter condições. Não podem ficar reduzidas à geografia. É nestas alturas que temos de problematizar a questão das fronteiras porque a proteção ainda depende das mesmas”.