Portugal tem mais de um milhão de diabéticos e o número mais elevado de casos de pé diabético e de amputações da Europa. Estes números não são de estranhar, pois, desde o surgimento do novo coronavírus, os doentes não têm tido acesso aos cuidados de saúde primários como outrora.
“As amputações ocorrem após muitos anos de evolução da doença, em algumas situações, e noutras é porque a mesma não é controlada, mas penso que isto assenta muito no pouco esclarecimento que existe em relação aos cuidados a ter com o pé”, começa por explicar, em declarações ao i, Rita Nortadas, secretária-geral da Sociedade Portuguesa de Diabetologia e médica especialista em Medicina Interna que coordena atualmente a Unidade de Hospitalização Domiciliária do Hospital Garcia de Orta.
“O verão é particularmente problemático neste aspeto porque as pessoas, num modo geral, estão com o pé mais exposto. Por vezes, há queimaduras graves provocadas pela areia, pelas conchas partidas e pelo lixo da praia. O risco de estes doentes se magoarem é maior. Não se trata de deixar de fazer aquilo que se tem prazer em fazer, mas sim ter algum cuidado e, sobretudo, observar o pé diariamente, hidratar, ter cuidados básicos de higiene e detetar de uma forma relativamente precoce alguma alteração que exista”, avança a profissional de saúde, asseverando que “se muitas destas lesões forem detetadas atempadamente, evita-se, na grande maioria dos casos, uma progressão para situações clínicas mais dramáticas”.
No entanto, durante a pandemia, nem sempre os diabéticos puderam aceder às chamadas consultas do pé diabético, sendo que o portal da transparência do Serviço Nacional de Saúde (SNS) comprova-o. Entre janeiro e dezembro de 2019, 609 mil e 558 utentes inscritos no SNS fizeram um exame aos pés, sendo que este número desceu para 491 mil e 524 no ano de 2020. Logo, deu-se uma quebra de 118 mil e 34 exames.
“Existem muitos diabéticos internados em casa e uma grande percentagem está assim por pé diabético ou por infeções nos pés ou nas pernas. Ainda existe muita falta de conhecimento apesar de todos os esforços que têm sido feitos”, revela Rita Nortadas, para quem a pandemia conduziu a um declínio do tratamento desta população.
“Têm sido dados passos muito importantes no controlo dos doentes e na educação dos mesmos, mas aquilo que nos parece, porque não temos acesso a números atualizados, infelizmente, é que, desde março de 2020, poderá ter havido um retrocesso porque não tinham tanto acesso aos cuidados de saúde primários, às consultas de especialidade e, portanto, houve um atraso na deteção de lesões e de feridas e em todo o trabalho de consciencialização que é feito”, sublinha, indo ao encontro dos dados veiculados pelo Observatório Nacional de Diabetes (OND), que mostram que anualmente ocorrem em Portugal entre 1.200 a 1.500 amputações de pés a diabéticos.
“Muitas vezes, perde-se um cidadão. Há famílias que ficam destroçadas” Em Portugal, segundo o OND, mais de um milhão de pessoas têm diabetes (13.6% da população entre os 20 e os 79 anos de idade). Destas, aproximadamente um terço está por diagnosticar e dois milhões têm risco elevado de vir a ter a doença no futuro. “É muito provável que haja doentes cuja diabetes é detetada tardiamente porque pode haver o atraso do diagnóstico. E um doente que precisa de intensificar a terapêutica, por exemplo, pode ver esse ato médico atrasado porque não conseguiu uma consulta com a rapidez necessária. Apesar de termos vivido momentos difíceis, estamos numa fase importante para a recuperação destes doentes e, portanto, devemos fazer o trabalho de prevenção e vigilância que se fazia até ao surgimento da covid-19”, garante a médica, salientando que, apesar de serem as pessoas mais velhas que acabam por passar pela amputação dos membros inferiores, ”tal continua a acontecer em pessoas profissionalmente ativas e que estão abaixo dos 65 anos”.
Esta situação “tem um impacto importantíssimo ao nível da qualidade de vida, na própria família e também económico e social. Muitas vezes, perde-se um cidadão que tem uma vida muito ativa. Há famílias que ficam destroçadas”, lamenta Rita Nortadas, sendo que, há dois anos, Portugal era um dos dois países da União Europeia com maior taxa de prevalência de diabetes entre adultos, de acordo com um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) divulgado em novembro do ano passado. Em 2019, Portugal tinha 9,8% dos adultos (entre os 20 e os 79 anos) com diabetes dos tipos 1 e 2, surgindo atrás da Alemanha (10,4%), o pior país da União Europeia nas estatísticas. Por outro lado, a média da UE a 27 foi 6,2%, com a Irlanda (3,2%), a Lituânia (3,8%) e a Estónia (4,2%) a registarem as taxas mais baixas de prevalência de diabetes entre adultos.
Entre janeiro e junho de 2021, 367 mil e 424 utentes tiveram acesso a um exame aos pés e este número foi mais baixo em 2020, correspondendo a 321 mil e 962. Contudo, no período homólogo de 2019, situava-se nos 470 mil e 923. Através do portal da transparência, constata-se que a região Norte ocupa o lugar cimeiro da percentagem de diabéticos que fazem exames aos pés, estando o ACES Grande Porto I – Santo Tirso e Trofa (89,69%) na linha da frente, em dezembro de 2020, enquanto o ACES Amadora ocupava o último lugar (20,22%).
“Não só temos a perceção de que estão a ser amputados mais membros inferiores como queremos alertar a população para que a situação não se torne ainda mais grave do que aquela que já existia”, conclui Rita Nortadas.