O passado dia 1 de Agosto foi festejado em Portugal como o início de um processo de libertação das medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, que se espera que esteja concluído no próximo dia 1 de Outubro. É positivo que esse processo tenha sido iniciado, uma vez que estávamos a assistir à proliferação de medidas claramente inconstitucionais sem a cobertura do estado de emergência, de que se salienta o cerco à área metropolitana de Lisboa e a imposição de um recolher obrigatório a todas as pessoas. Podia assim dizer-se que na prática os cidadãos continuavam a viver como se estivessem em estado de emergência, depois de o mesmo ter sido levantado, o que constituía um precedente altamente perigoso de suspensão dos direitos constitucionais dos cidadãos fora dos casos em que a Constituição o prevê. Isto com a agravante de essas suspensões resultarem de simples Resoluções do Conselho de Ministros, meros regulamentos do Governo sem aprovação pelo Parlamento, nem promulgação pelo Presidente da República. Por isso, nos corredores das Faculdades de Direito já circulava a graçola de que agora uma Resolução do Conselho de Ministros valia mais do que a Constituição da República Portuguesa e que por isso os manuais de Direito Constitucional estavam desactualizados.
Tudo isto se passou sem que houvesse qualquer controlo da constitucionalidade destas medidas por parte das entidades com competência para exercer essa fiscalização, como o Presidente da República, o Presidente da Assembleia da República, os deputados ao Parlamento, a Procuradora-Geral da República ou a Provedora de Justiça. Apenas nalguns casos os Tribunais defenderam os cidadãos, ordenando a sua libertação em processos de habeas corpus, depois de eles terem sido sujeitos a medidas de confinamento absolutamente injustificadas. Tal não impediu que certos delegados de saúde se tivessem vindo queixar aos jornais de que estavam a ser desautorizados pelos juízes, como se constitucionalmente as decisões dos tribunais não fossem obrigatórias e prevalecessem sobre as de quaisquer entidades públicas e privadas.
Precisamente por esse motivo, depois de tudo o que se passou, o país deveria voltar a ter a sua plena normalidade constitucional, deixando para trás estes tristes episódios. Em vez disso, é confrontado com uma proposta de revisão constitucional do PSD, cujo texto nem sequer foi apresentado publicamente, tendo aparecido apenas uma lista de tópicos, mas que é claramente inoportuna e perigosa.
Em primeiro lugar, a própria Constituição proíbe no seu art. 289º as revisões constitucionais durante o estado de emergência e, apesar de o mesmo ter sido levantado, não há garantias de que não regresse se a pandemia piorar, sendo por isso absurdo iniciar um processo de revisão constitucional nesta altura.
Depois, o que se conhece da proposta leva a uma séria preocupação com a defesa dos direitos dos cidadãos, uma vez que essa proposta é no sentido de os deixar mais desprotegidos perante os arbítrios do poder político. Assim, prevê-se a possibilidade de decretar um estado de emergência por razões de saúde, sem duração definida na Constituição, o que permitiria a existência de estados de emergência permanentes, em que os direitos dos cidadãos estariam sempre suspensos. Depois prevê-se a possibilidade de pessoas com grave doença contagiosa serem detidas sem qualquer decisão judicial, o que atentaria contra a providência constitucional de habeas corpus. Prevê-se ainda a possibilidade de recolher metadados das comunicações dos cidadãos para fins de informações da República, o que atentaria contra o segredo das comunicações e a privacidade das pessoas. E finalmente prevê-se a criação de tribunais especializados em matéria criminal, o que faz lembrar os tribunais plenários, de triste memória.
Se há coisa de que os cidadãos deste país necessitam neste momento é de serem libertados das medidas atentatórias dos seus direitos fundamentais e de voltarem a um período de normalidade constitucional. Seguramente que por isso são dispensáveis propostas de revisão constitucional que pretendam retirar-lhes os seus direitos fundamentais, de que devem voltar a poder dispor na sua plenitude.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990