Os programas devem ser mais estáveis que os edifícios das escolas

Os programas devem ser mais estáveis que os edifícios das escolas


Por uma ironia do destino, o encontro da SPM – que reúne especialistas de topo em Matemática, ensino da matemática, divulgação e história – ocorre quando estão em curso alterações radicais no ensino da Matemática no básico e secundário.


A Sociedade Portuguesa de Matemática organiza esta semana, com o Alto Patrocínio de Sua Excelência o Presidente da República, o Encontro Nacional da SPM que conta com quatro Medalhas Fields e com muitos outros matemáticos distinguidos. Este encontro insere-se nos 80 anos da SPM e tem uma série de peculiaridades que o tornam singular: nunca em Portugal uma conferência reuniu tantas estrelas da Matemática; tem mais de 600 participantes; inclui comunicações de alguns dos maiores especialistas mundiais em ensino da Matemática; tem comunicações de alunos de licenciatura que publicaram artigos de investigação, testemunhos de alunos olímpicos, comunicações sobre Matemática e arte ou ilusionismo, jogos matemáticos, e o Professor Henrique Leitão a descrever a motivação matemática da viagem de Fernão de Magalhães. Por uma ironia do destino, este encontro que reúne especialistas de topo em Matemática, ensino da Matemática, divulgação e história, ocorre quando estão em curso alterações radicais no ensino da Matemática no básico e secundário.

1. Terminou recentemente a discussão pública sobre as novas aprendizagens essenciais que serão o único referencial para a Matemática no Ensino Básico;

2. A organização faz retroceder o ensino da Matemática a um paradigma curricular que a organização por standards/metas tinha superado, recuperando opções de 1991 ou de 2007 que já tinham sido criticadas por prejudiciais no ensino da Matemática.

3. Insiste-se no erro pedagógico que é a pretensão de se poder usar indiscriminadamente o “ensino pela descoberta” pressupondo-se que o aluno, independentemente do nível de escolaridade, é capaz de reconstruir parte significativa do conhecimento que levou milénios a construir.

4. Retoma-se uma concepção funcional de aprendizagem (tem sentido aprender quando pode ser usado), descuidando-se o seu sentido formativo como espaço preferencial para o treino na dedução, e, em última análise, transformando a Matemática em mais um espaço para treinar o pensamento indutivo, ou seja, eliminando a própria razão de ser do ensino da Matemática.

5. Não compreende a importância crítica do ensino dos racionais.

6. Promove paradoxalmente o desenvolvimento do pensamento computacional e a desvalorização dos algoritmos dando preponderância à calculadora; consagra o algoritmo americano de subtração cuja investigação provou ser muito pior que o algoritmo tradicionalmente usado em Portugal, e que além disso não permite o algoritmo sintético da divisão (que se aprende em Portugal há décadas) que é por isso abolido.

7. Vários temas são antecipados no percurso de aprendizagem (termos de probabilidade que os alunos não podem compreender são antecipados do 9.º ano para o 3.º ano), enquanto outros são atrasados ou suprimidos: esta será a primeira geração de crianças que não aprenderá a fórmula resolvente da equação do 2.º grau no Ensino Básico apesar de gastar bastante tempo a preparar o caminho para compreender a origem da fórmula que nunca será lecionada.

8. Abandonar conceitos básicos relativos à medida de grandezas, como «metro cúbico» e, porventura, «decímetro» ou «decâmetro» já que se propõe apenas tratar o «metro» e o «centímetro». Qual o volume de um litro de água?

9. Omitir o teorema Fundamental da Trignometria, bem como o estudo da Numeração Romana e as Medidas Agrárias, que sempre foram tratados na disciplina de Matemática, bem como uma abordagem estruturada no 1.º ciclo de cálculos com medidas de tempo.

10. Ao sublinhar “ações estratégicas” que o professor deve adotar para ensinar, diluem a sua margem de decisão. Como profissional e como pessoa que melhor conhece os seus alunos assiste-lhe o direito e o dever de escolher o modo de ensinar que beneficie os seus alunos.

11. Se isto não fosse já suficientemente mau, na terça-feira passada, a dois meses do início do ano letivo, foram revogados os programas e metas de todas as disciplinas do ensino básico e secundário, ficando como único documento as aprendizagens essenciais, um documento que assenta e tem de ser complementado com os documentos revogados.

12. Os programas devem ser mais estáveis que os edifícios das escolas. Fazer alterações sempre que muda um Governo faz mal às crianças, aos professores, às direções e a todo o sistema. Fazer cortes radicais com a melhor investigação em ensino da Matemática substituindo por experiências ou recuperação de teorias do século passado já completamente desacreditadas, é incompreensível. E revogar as peças essenciais da vida das escolas a dois meses do início do ano é algo que cada um julgará por si.

13. Não será possível dar estabilidade à educação sem um amplo pacto de regime.

 

Presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática