Jim Morrison. Da contracultura à cultura do cancelamento

Jim Morrison. Da contracultura à cultura do cancelamento


Um músico fascinante, mas um namorado agressivo. Cinco décadas depois da morte do icónico vocalista dos Doors, vale a pena analisar o seu controverso percurso e legado à luz dos dias que correm.


Ao longo das décadas, a visão que o público tem de Jim Morrison foi-se metamorfoseando.

Quem foi apresentado ao artista no seu auge, a lançar discos influentes que deixariam uma marca em músicos e bandas contemporâneas, olha para Morrison como um ídolo musical.

No final dos anos 1970, quando a sua lenda começava a arrefecer, o realizador Francis Ford Coppola utilizou a épica ‘The End’ numa das cenas mais memoráveis do seu filme Apocalipse Now, reintroduzindo o Rei Lagarto a uma nova geração, enquanto, na década seguinte, vários músicos, como Ian Astbury dos the Cult, tentariam imitar em palco e em estúdio os excessos e dramatismos que levaram à “queda” do icónico vocalista.

Em 1991, o controverso realizador Oliver Stone levou os Doors e Morrison, interpretado por Val Kilmer, para o grande ecrã, oferecendo um especial ênfase numa caricatura simplista do homem que deu voz a músicas como ‘Break on Through’ ou ‘When The Music’s Over’, focando-se mais nos comportamentos destrutivos e boémios em oposição às características que o elevaram a um ícone musical.

No início do presente século, membros vivos dos Doors, o guitarrista Robby Krieger e o teclista Ray Manzarek, aliados a Astbury, tentaram ressuscitar a banda com o nome The Doors of the 21st Century, projeto que chegou a efetuar concertos em Portugal. Acusados de apropriação indevida do nome da banda, acabaram por ser processados pelo baterista John Densmore e pelos pais de Morrison.

Todos estes novos olhares sob o legado do músico deixaram uma marca na forma como é percecionado pelo público, estando talvez mais próximo do olhar do icónico critico musical Lester Bangs, que, em 1981, dez anos depois da morte do vocalista, acusava o Rei Lagarto de ser um “palhaço dionisíaco”.

Cinquenta anos depois, vivemos numa época drasticamente diferente de quando Jim Morrison subia para o palco e cantava sobre copular com a mãe (revistar The End) ou quando mostrava (ou não) o seu pénis durante os concertos.

Falamos muito de uma cultura de cancelamento que ao analisar os passados controversos – como o facto de membros dos Led Zeppelin ou David Bowie estarem envolvidos com groupies menores de idade, a violência doméstica que John Lennon praticava com Yoko Ono ou os discursos racistas de Eric Clapton – colocam os músicos e os seus legados em xeque.

Portanto, refletindo sobre o legado de Jim Morrison como é que ele se aguenta na geração do #MeToo? Na semana passada, por exemplo, Marilyn Manson (um músico que já confessou ser influenciado pelo próprio Morrison) entregou-se à polícia por ter cuspido a uma jornalista em 2019.

 

Violência doméstica e um quarto a arder

São mais que conhecidos os problemas que o músico tinha com o álcool e as drogas, mas estes excessos não atingiram apenas o próprio. A sua namorada, Pamela Courson, que inspirou famosas músicas como ‘Love Street’, ‘Queen of the Highway’, ou ‘Twentieth Century Fox’, foi outra vítima recorrente, segundo testemunhas, de agressões quando Jim estava embriagado.

Uma das histórias mais chocantes do casal aconteceu em 1970. Pam trancou-se num quarto depois de Jim a ter esmurrado e este tentou incendiar a divisão. Felizmente, Courson conseguiu escapar sem sofrer lesões.

O baterista dos Doors, numa entrevista ao Guardian no ano passado, revela que demorou anos até conseguir perdoar ao músico e apenas três anos depois da sua morte é que foi finalmente visitar a sua campa em Paris.

“Por fora, o Jim parecia normal”, escreveu Desnmore num livro autobiográfico. “Mas ele era agressivo com a vida e com as mulheres”. Na mesma entrevista recordou ainda um momento em que terá visto o seu colega de banda a apontar uma faca a uma groupie.

Atualmente, muito dificilmente estes atos de violência de Morrison escapariam impunes às autoridades caso fossem divulgados – e também não seriam bem recebidos por parte dos seus fãs certamente. 

É complicado quando nos mostram que artistas ou pessoas que idolatrávamos possuíam comportamentos que não consideramos toleráveis.

“Se soubéssemos imediatamente dos comportamentos abusivos, talvez não daríamos a mesma atenção” a estes artistas, disse o baixista do grupo Blinders, Charlie McGough, citado pela revista Clash. “Temos o dever de abordar as nossas percepções de alguém quando adquirimos um novo conhecimento do seu comportamento, mas isso pode ser muito difícil de fazer”.

Especialmente difícil para artistas, como é o caso de Morrison, que estão completamente entranhados na cultura pop. A sua influência marcou a carreira de lendas como Patti Smith, Iggy Pop, Ian Curtis dos Joy Division, artistas que foram pioneiros em estilos como o punk e o post-punk, mas também de artistas contemporâneos como Kevin Parker, líder dos Tame Impala (uma das primeiras faixas do grupo, ‘The Sun’, é um excelente exemplo) e cruzou barreiras estilísticas, sendo utilizada em samples de mestres do hip-hop como Jay Z, Snoop Dogg ou Lauryn Hill.

Não existe uma resposta certa nem definitiva sobre como lidar com a questão “separar a arte do artista” especialmente quando este faz parte do nosso dia a dia. O que podemos fazer é manter-nos informados, conhecer os factos e reconhecer que os nossos ídolos não são perfeitos, nem eram mesmo Reis Lagartos.