MUNIQUE – Alguém disse um dia, e eu não podia estar mais de acordo, que os anos passam depressa e que os dias é que passam devagar. Poucos se recordarão de um homem sisudo, natural de Trieste, onde nasceu em 12 de fevereiro de 1919 e foi batizado com o nome de Ferrucio Valcareggi. Como jogador nunca encheu primeiras páginas. Passou como cão em vinha vindimada pelo Triestina, pelo Bolonha e pela Fiorentina, até perceber que o seu lugar era realmente no banco, mas não como suplente, algo que acontecia com demasia frequência para a sua pachorra. Tornou-se treinador, muito provavelmente um dos mais amados de Itália após Vittorio Pozzo. Antes de tomar conta da “squadra azzurra”, em 1966, passara pelo Piombino, pelo Prato, pela Atalanta e pela Fiorentina.
1966 foi um ano que os italianos quiseram enterrar bem fundo numa das covas do cemitério dos esquecimentos. Eliminada pela Coreia do Norte (0-1), no Mundial de Inglaterra, passou a vergonha de voltar para casa no final da fase de grupos e o selecionador Edmondo Fabri foi tratado com sete pedras nas mãos. A Federação italiana resolveu tomar medidas drásticas. Começou por fechar aos jogadores estrangeiros as portas do “calcio”. Depois chamou Helenio Herrera e Ferrucio Valcareggi para porem ordem na seleção que contava com jogadores extraordinários como Fachetti, Mazzola, Riva ou Domenghini.
Helenio Herrera não era sujeito fácil de aturar e tinha uma ideia muito específica de jogo que passava por defender e defender para, finalmente, defender outra e outra vez. Ferrucio sentiu que, com aqueles jogadores, era preciso uma abordagem mais conveniente às suas características. Herrera acabou por ser afastado ao fim de quatro jogos, e Vacalreggi lançou-se à conquista da Taça da Europa das Nações que, nesse mesmo ano, alterou o seu nome para Campeonato da Europa.
Oito grupos iniciais de qualificação teriam de decidir um primeiro classificado. Oito seleções disputariam os quartos-de-final, com dois jogos, casa e fora, para a festa acabar com as meias-finais e final num só país a ser escolhido entre os semi-finalistas.
Título único.
No Grupo 6 da primeira fase, a Itália despachou sem grande dificuldade a Roménia (3-1 e 1-0), a Suíça (5-0 e 2-2) e Chipre (5-0 e 2-0). Começava a ser tempo de deitar para trás das costas o fracasso de 1966 e olhar para o futuro com a confiança própria de um povo que não costuma desperdiçar autoestima.
Os quartos-de-final foram trabalhosos como nem o astuto Valcareggi teria adivinhado. Obrigados pelo sorteio a defrontar a Bulgária, o jogo de Sófia, a 6 de abril de 1968, foi terrível. Kotkov fez 1-0 de penálti logo aos 12 minutos. O desafio tornou-se uma luta corpo a corpo, com quezílias infindáveis. O empate italiano apareceu aos 61 minutos, num autogolo de Penev, para, cinco minutos mais tarde, a Bulgária voltar à vantagem através de Dermendjiev. Num ambiente de fanatismo capaz de apavorar rinocerontes, Jekov aumentou para 3-1 aos 73m. Mas ainda houve o sangue-frio de Prati, aos 83m, para que a Itália saísse viva do jogo.
A segunda mão foi marcada para Nápoles, e a Itália foi de uma sobriedade absoluta, vencendo por 2-0, golos de Domenghini e de Prati. Ficou então a saber que teria o direito de receber as meias-finais e a final em casa.
A Santa Maria di Piedigrotta foi chamada à rija primeira final, em Nápoles, com os italianos a defrontarem a URSS, que fora finalista do último Europeu e quarta classificada no Mundial de Inglaterra. Fechados num bunker intransponível, com cinco defesas plantados na frente do guarda-redes Psenichnikov, Afonin, Istomin, Kaplichni, Shesternev e Lenev, os soviéticos mantiveram 70 mil espetadores em estado de histerismo e aguentaram o 0-0 até ao fim do prolongamento. Foi aí, no desempate por moeda ao ar, que a Madonna abençoou os seus filhos queridos.
A final, no Estádio Olímpico de Roma, contra a Jugoslávia que eliminara a Inglaterra, teve sessão dupla. A primeira chegou ao fim do prolongamento com 1-1; a segunda entregou, finalmente, aos Lobos de Vacalreggi, como lhes chamou, um dia, Aurélio Márcio, a única taça de campeão europeu que conquistaram até hoje, graças aos golos de Riva (11m) e Anastasi (32m). Gente como Burgnich, Riva, Domenghini, Fachetti ou Guarneri estariam, daí a dois anos, disputando a final do Campeonato do Mundo do México, frente ao Brasil de Pelé. Ferrucio cumprira o seu papel. Transformara as lágrimas em riso. De repente, assim tão repente.