Ouço dizer cada vez mais que não existem génios nem inspiração. É uma ideia simpática e piedosa para nós, comuns dos mortais, pois pressupõe que, se nos esforçarmos muito, conseguiremos ser tão bons como os melhores. Mas isso não a torna necessariamente verdadeira.
Numa fase longínqua da vida em que aspirava vagamente a tornar-me artista (depois de querer ser futebolista…) pude verificar que os resultados das minhas diligências eram muito desiguais. Sempre atribuí isso à falta de verdadeiro talento, dado que na maioria das vezes os desenhos eram claramente fracos. Acontece que, de tempos a tempos, lá havia um que me saía bem. Bem ou mal, eu chamava-lhe inspiração.
Há uns poucos anos tentei voltar a desenvolver essa capacidade, instigado por um interessantíssimo livro de 1979 intitulado Drawing on the Right Side of the Brain, que promete fazer de qualquer um, se não um artista consumado, pelo menos um desenhador competente. «Ao contrário da convicção popular», diz-nos a autora Betty Edwards, antiga professora de Arte da Universidade do Estado da Califórnia, «a habilidade manual não é um fator primordial para desenhar. Se a sua caligrafia for legível, você tem destreza mais do que suficiente para desenhar bem».
Mas este não é um mero guia para aprender a desenhar. Tem por trás toda uma tese, para não dizer uma doutrina – e_bem interessante: que os dois hemisférios do cérebro correspondem a duas formas complementares de percepcionar a realidade, a duas formas de conhecimento. O ‘modo esquerdo’ é, segundo a autora, verbal, analítico, abstrato, temporal, racional, lógico, linear. O ‘modo direito’ é não verbal, sintético, concreto, sem sentido do tempo, intuitivo, espacial. Numa civilização destra, que privilegia o ‘modo esquerdo’ (não há aqui qualquer contradição), Edwards propõe-se ajudar-nos a desenvolver o hemisfério direito. E isso começa na maneira como olhamos para o mundo que nos rodeia.
Não sei se por estar sugestionado, da primeira vez que peguei num lápis depois de ler algumas páginas deste livro senti-me especialmente confiante. Pensei que talvez fosse desta que ia aprender a desenhar. Mas acabei por tropeçar num aspeto técnico e deixei a aprendizagem em standby. Voltei a abrir o livro um destes dias e encontrei-o marcado na página 58, que propõe um exercício fascinante.
Nela aparece um desenho do compositor Igor Stravinsky feito por Picasso, mas de pernas para o ar. Edwards sugere-nos que o copiemos assim mesmo: ao contrário. Fiz o teste e o resultado foi impressionante,_uma cópia ao nível do mestre espanhol. «Ao copiarem assinaturas, os falsários viram os originais de pernas para o ar para verem as formas exatas das letras mais claramente», revela a autora. Sem sabermos o que estamos a fazer, é mais fácil reproduzirmos fielmente os traços que se nos deparam.
Quem me diria a mim que era capaz de desenhar como Picasso? Mas resultou de um momento de rara inspiração? Nada disso, trata-se apenas de uma cópia quase mecânica, de um truque que está ao alcance de qualquer um.
Afinal, talvez tenham razão aqueles que desvalorizam a inspiração. É preciso saber viver sem ela. Até porque só vem quando lhe apetece – e ai daqueles que estejam à mercê dos humores de tão caprichosa dama.