“Este é um livro triste, mais triste do que o Só do vosso António Nobre e, ao mesmo tempo, um grito desesperado. É um livro sobre sofrimento”. É deste modo que Luís M. Vicente inicia Touro como Nós, obra lançada no passado mês de maio. Licenciado em Biologia pela Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e doutorado em Evolução e Agregado na mesma instituição, é biólogo, professor universitário e investigador.
Por lecionar Comportamento Animal, Ecologia, Evolução, Bioética e História do Pensamento Biológico em várias instituições universitárias em Portugal e no estrangeiro, não consegue ficar indiferente à longa discussão sobre a permissão ou proibição das touradas. Discussão que, nas últimas semanas, tem sido espelhada pela probabilidade do impedimento da transmissão do evento na RTP.
Para o investigador do projeto mundial das Nações Unidas, Millennium Ecosystem Assessment, que coordenou o mesmo em Portugal, a tauromaquia é cultura, “mas, acima de qualquer cultura, existem os direitos que têm de ser respeitados e sobrepõem-se”, assim, “o direito a ser feliz é inalienável em qualquer animal”.
Sócio fundador da Sociedade Portuguesa de Etologia, e da Associação Portuguesa de Primatologia, sendo também membro da International Primatological Society, o docente tem cerca de uma centena de artigos publicados em revistas internacionais, bem como capítulos de livros de edição mundial sobre Ecologia e Comportamento Animal.
Em Touro como Nós, juntou-se ao touro Ngombe para narrar aquilo que envolve esta tradição e levar a que os leitores reflitam sobre a vida na Terra, bem como acerca dos seus deveres e direitos.
Como surgiu o interesse pela evolução animal e também pelo comportamento?
A certa altura da nossa vida, somos levados a escolher um futuro. Optei por Biologia por várias razões. Por um lado, há influências familiares e, por outro, coisas que fui vendo e aprendendo. Também tive bons professores de Biologia no Ensino Secundário. No entanto, tive bons professores de diversas disciplinas e, por isso, no final do meu percurso, fiquei bastante hesitante. Porém, a Biologia seduzia-me e foi algo que escolhi aos 17 anos e não me arrependi.
Numa entrevista que concedeu ao Expresso, mencionou que estabeleceu uma amizade com um polvo que vivia perto da fortaleza da Berlenga, uma moreia da Praia da Luz, uma osga na ilha da Selvagem Grande e uma “aranha nervosa”. Que impacto tiveram estes animais na sua vida?
A minha vida profissional, em grande parte, excetuando as aulas, sempre foi de campo muito solitária. Isso também se prende com a minha maneira de ser porque tenho muito gosto em estar sozinho em sítios isolados, como ilhas, e por isso é que esse foi o tema da minha tese de doutoramento. Percorri muitas nas quais era, muitas das vezes, o único habitante. As ilhas são laboratórios de excelência para compreendermos os processos evolutivos e quando estamos sozinhos no meio dos animais, acabamos por estabelecer alguma relação com eles. Um indivíduo que está dias, semanas, meses, isolado num espaço e, para além dele, os animais que existem são animais não humanos: estabelecem-se laços. A minha profissão não é muito diferente da dos jornalistas: entrevistava os animais. No princípio, olhava para eles e parecia-me impossível descodificá-los. No entanto, com a persistência, as coisas começam a fazer sentido e há uma forte dose de empatia. Costumo dizer que são os animais que nos colocam perguntas. Na maior parte das vezes, não descubro grande coisa porque os códigos de linguagem são muito diferentes. Deste modo, há um exercício de compreensão que é muito viciado pelo nosso antropomorfismo e a nossa forma de ver o mundo. Temos de entender que a perspetiva difere de espécie para espécie, pois cada animal tem os seus pontos de referência. O grande exercício passa por nos colocarmos sempre no lugar do outro. Nessa entrevista, falei no polvo porque me marcou: mergulhava e, quando ele entendia que eu estava por perto, vinha atrás de mim. Adorava que lhe fizesse festinhas na cabeça. A moreia vendia-se por uma salsicha, até porque este alimento é muito apreciado debaixo de água. Estava no meio do nada e eles eram a minha única companhia. Não sei se há um lado psicopata nisto, mas converso com eles. Uns, ficam perto de mim, outros ignoram-me, mas são inacreditáveis.
A título de exemplo, existe a célebre frase “O cão é o melhor amigo do homem”, tanto que esta ideia até foi corroborada, no ano passado, pela revista Neuroscience & Biobehavioral Reviews.
Há barreiras de linguagem muito grandes. Não só com cães ou gatos, mas até primatas. Os chimpanzés, provavelmente, são os animais mais próximos de nós: partilhamos uma longa evolução conjunta, a separação é muito recente. Temos uma mímica facial muito rica, comunicamos muito através de uma linguagem não verbal. Estão identificados cerca de 150 vocábulos faciais nos humanos. Nos chimpanzés, estão identificados cerca de 250. Portanto, eles têm um conjunto muito mais rico do que o nosso, mas há um problema de entendimento. Comunicamos fundamentalmente do nariz para cima e eles do nariz para baixo. É como eu estar a falar grego e ele aramaico. Levámos muito tempo a descodificar esses sinais.
Publicou Touro como Nós no mês passado e, na nota de abertura, escreve que este é “um livro triste”. Como decidiu que existiria uma alternância de discurso e pensamento entre si e o touro Ngombe?
Há algo importante para tentarmos descodificar o comportamento dos outros animais: eu sou capaz de me colocar no lugar de outro humano. Quando vemos um filme, a certa altura, podemos chorar porque aconteceu alguma coisa dramática. Temos estruturas nervosas, neurónios espelho, que permitem que se gere a empatia. É claro que a empatia entre duas espécies diferentes não é a mesma. No entanto, quando bocejamos, o cão boceja de volta. Isto significa que os neurónios espelho, também presentes no animal, permitem que ele se coloque no nosso lugar e repita os nossos gestos. E, quando estudamos comportamento animal, esta tentativa é permanente.
Foi por isso que decidiu explorar a tauromaquia?
Quando se iniciou a discussão sobre touradas, na Assembleia da República, acompanhei-a. E também nos órgãos de informação. Ouvia estes debates e achava que tanto aqueles que defendiam as touradas como aqueles que as atacavam, faziam-no com bases subjetivas, culturais, etc., mas, quando procuravam argumentos científicos, acabavam por transmitir ideias sem fundamentação. A certa altura, pensei “Sou biólogo, trabalho em comportamento animal, dou aulas. Se calhar, vou fazer qualquer coisa sobre isto”. Daí o Ngombe. Quando falo em nome dele, significa que tento ver o mundo pelos olhos dele. Este livro, que não estava nos meus projetos, era muito improvável. No entanto, tornou-se inevitável e, por isso, é que escrevi-o em três meses. Espero que esclareça algumas pessoas e que lhes seja útil. Costumo dizer que, na faculdade, quando tenho uma turma de 300 alunos, se for útil a um, já ficarei feliz.
Será útil para quem defende as touradas?
Infelizmente, vivemos de ideias pré-concebidas.
Ngombe significa touro em quimbundo, língua falada em algumas regiões de Angola.
Nasci em Angola. Era, agora já não sou, bilingue. Falava quimbundo e recordo-me de que, quando era miúdo, já em Portugal, a professora telefonava frequentemente à minha mãe porque não entendia aquilo que eu queria dizer com determinadas expressões. Vim para cá com cinco anos, mas foi o suficiente para interiorizar um vocabulário ao qual estava habituado. Passava uma parte do tempo com os meus pais e outra com a minha ama da qual tenho uma saudade imensa, pois já morreu. Levava-me para todo o lado e para o meio das pessoas com quem vivia. A minha ama que era um homem.
Mantiveram a comunicação posteriormente?
Tenho histórias lindíssimas com ele. Quando vim para Portugal com os meus pais, a separação foi triste. Ele ficou com uma tartaruga minha que não pude trazer e disse “Vou juntar dinheiro para te ir ver a Portugal”. O Kingwaya era uma pessoa pobre, não tinha grandes meios. Tinha 20 e poucos anos na altura. Um dia, teria eu 25 ou 26 anos, alguém toca à minha campainha. Era ele com o ar mais simples deste mundo. Disse-me apenas “Já juntei o dinheiro e estou aqui”. Lembro-me, por exemplo, de que se casou e enviou-me fotografias da cerimónia. Também me mostrava os filhos. Quando o vi, 20 anos depois, nem consigo descrever a felicidade que senti. E o mais curioso é que, tal era a cumplicidade, parecia ter passado pouquíssimo tempo. Depois, ele veio cá mais vezes com a família. Hoje em dia, como as interações são facilitadas pelas redes sociais, mantenho o contacto com os filhos e os netos dele. O Kingwaya era um tipo incrível, com uma capacidade social gigantesca. Quando vinha a Portugal, ficava em minha casa. Eu ia trabalhar e, no dia seguinte, conhecia toda a gente no bairro e tinha criado um grupo de amigos enorme.
O Kingwaya fomentou a sua paixão pelos animais?
Sim, mas foi natural porque havia animais em casa. Ele dava-me notícias da tartaruga, da minha companhia de garoto. Lembro-me de, em miúdo, conversar imenso com ela. E, depois, ela respondia com movimentos de cabeça. Hoje, como biólogo, sei que se trata do nodding, oscilações verticais da cabeça que têm a ver com a afirmação territorial. Na altura, achava que ela concordava comigo. Uma vez, apareceu por lá um elefante bebé porque um imbecil de um caçador lhe matou a mãe e ele acabou por falecer porque era muito difícil alimentar-se sem leite materno. Havia um cão com quem eu falava imenso. Sou filho único, tenho a tendência de me refugiar nos animais. Mesmo em casa dos meus avós maternos, que eram de uma aldeia da Beira Alta, o meu avô nunca estava sem um cão perto dele. E o mesmo acontecia com os meus avós paternos, até porque a minha avó era apaixonada por gatos.
As touradas surgiram no Iluminismo. Em Lisboa, eram realizadas em locais como a Praça do Comércio ou o Rossio. Tantos séculos depois, ainda vemos este evento como uma questão cultural e aborda-a no capítulo “Cultura, Tradição e Folclore”.
É cultura. Mas, acima de qualquer cultura, existem os direitos que têm de ser respeitados e sobrepõem-se. O direito a ser feliz é inalienável em qualquer animal. Se pensarmos que a tourada é tortura, que muitos animais em circos são barbaramente massacrados, no Zaire as mulheres que traem os maridos são agredidas, no Rossio faziam-se os autos de fé, em Roma os cristãos eram devorados por leões no coliseu, durante a Revolução Francesa, na chamada Praça da Revolução, era lá que estava instalada a guilhotina e os cidadãos divertiam-se quando havia decapitações… Há culturas que são inaceitáveis porque vão contra aquilo que deve enquadrar qualquer cultura, que são os direitos.
Isto justifica-se tendo em conta a evolução humana e, acima de tudo, do pensamento?
Bom… Se virmos, por exemplo, o racismo, a transfobia, a homofobia, a xenofobia… Tudo isso tem uma base cultural, de certo modo, e é tenebroso. Quando foi a Expo 58, em Bruxelas – e isto não aconteceu assim há tanto tempo –, eram expostos negros no jardim zoológico e as pessoas viam-nos e davam-lhes amendoins. Matar um negro não era crime porque o mesmo não era considerado humano por uma questão de melanina. Mesmo assim, evoluímos apesar de haver por aí correntes políticas populistas que ficariam muito felizes por voltar atrás. Espero bem que nunca toleremos isso. No entanto, aquilo que acontece na Europa é assustador. Os discursos de ódio e protofascistas metem medo porque facilmente, dizendo às pessoas aquilo que querem ouvir, ganham terreno. Em 1932, o Hitler subiu ao poder num instante e ninguém acreditava. Tal como Mussolini ou Salazar. Sempre houve avisos. No fim do séc. XIX, o Nietzsche, grande filósofo alemão, alertou-nos para a emergência do fascismo. Tal como o Thomas Mann. Há vários autores que insistiram na ideia de que isto voltaria. Há um esforço muito grande, pelos poderes reais, para apagar a História. Por exemplo, na universidade, temos uma dificuldade imensa em dar cadeiras de História da Biologia ou da Ciência. É como se precisássemos apenas de formar trabalhadores obedientes para o mercado europeu.
Numa tourada, todos os touros têm pelo menos quatro anos. Também há a novilhada, quando são mais jovens. Que diferenças psicológicas existem nestes animais, quando participam nas touradas, tendo em conta as fases da vida?
Todos nós animais somos, em grande parte, construções sociais. Temos um manual de instruções genético que é uma pequenina parte de nós: dá-nos regras sobre a arte de viver, mas somos construídos em meio social, com os nossos companheiros da mesma espécie. O touro utilizado nas touradas também foi construído num ambiente com diversas variáveis: é marcado muito novo com um ferro em brasa, amarrado, é transportado para a arena – numa camioneta, num sítio que lhe é completamente desconhecido – e depois é largado numa praça de touros, um espaço circular, e não tem pontos de referência. Não sabe onde está nem para onde deve ir porque olha para todos os lados e não vê nada diferente: não há uma saída. Tem pessoas à sua volta que o desafiam e isto é altamente perturbador e criador de stress. Há uns indivíduos que o atacam e magoam. Espetam-lhe bandarilhas, andam a correr à volta dele e só tem duas opções.
Rende-se ou defende-se.
Exato. Não há uma terceira opção. Como não pode fugir, só tem a alternativa de investir. Qualquer animal faz isso. Se estivermos no campo e encurralarmos uma serpente, ela ataca. O touro está numa situação em que os níveis de cortisol são elevadíssimos, tal como os de adrenalina, e o sofrimento é enorme. Está a ser magoado. Espetam-lhe as bandarilhas e todo o sistema nervoso ao nível dorsal vai claudicar e a melhor prova disso é o facto de que se ajoelha. É inadmissível que as pessoas tenham prazer ao ver isto. Fui a uma tourada quando era miúdo, tinha seis ou sete anos, e acho que pouco olhei para a arena. Estive mais tempo de costas.
Existe uma discussão longa nesse sentido. Por exemplo, em fevereiro de 2014, o Comité dos Direitos das Crianças das Nações Unidas recomendou a Portugal a elevação da idade a partir da qual é permitido assistir ou atuar em espetáculos tauromáquicos. Mais recentemente, no início deste ano, a deputada não-inscrita Cristina Rodrigues retomou o tema.
Assistir a espetáculos de sofrimento e morte – seja uma tourada ou o facto de estar no meio de uma guerra civil – causa uma insensibilidade brutal à dor do outro. As crianças habituam-se, acham aquilo normal. Criam um escudo de bloqueio enorme e não conseguem empatizar perante o sofrimento do outro. No bullying acontece exatamente o mesmo. Para já, acho que a tourada não devia existir. É um espetáculo de imunização contra a dor do outro.
A lide varia de país para país. Em território nacional, temos a lide a cavalo. Umas são mais longas e outras mais curtas. Durante este processo, como poderíamos descrever as reações que o touro tem?
Fazemos sofrer um animal de uma maneira gratuita e lúdica. Será que gostaríamos de estar no lugar dele? De ser gozados? O sistema nervoso entra em colapso. Do ponto de vista emocional, o toureado está perdido. Fala-se muito na libertação de endorfinas, como se anestesiassem o touro. Quem usa esse argumento esquece-se de que as endorfinas são compostos de vida muito curta que atuam durante poucos minutos. São fundamentais à sobrevivência. Se eu estiver a cortar o pão e der um golpe no dedo, primeiro, não sinto dor. Agarro no telefone, chamo o 112 ou alguém, chegam para me ajudar… Mas isso ocorre em dois ou três minutos, o tempo de semivida de uma endorfina. Uma leoa caça uma gazela e mata-a: a gazela liberta endorfinas e, mesmo com ossos partidos, corre e tenta fugir. Mas, depois, agoniza até perder a vida. O argumento da “anestesia” é falacioso porque as endorfinas não funcionam durante a tourada toda.
Parece ser um argumento útil a quem é pró-tourada.
Claro. Uma coisa que me impressiona bastante é a maneira como pessoas que deviam ser sérias recorrem a este tipo de argumentos. Por exemplo: os meus ilustres colegas da Faculdade de Medicina Veterinária da Universidade Complutense de Madrid sabem daquilo que estão a falar. Isto é terrível, sabem que estão a mentir, têm plena consciência disso. Conheço a formação deles. Eles são cientificamente bons noutras áreas que trabalham. Quando publicamos trabalhos científicos, passam por crivos muito apertados, e estes senhores têm trabalhos publicados excetuando sobre touradas. Nenhuma revista científica aceitou artigos deles sobre este tema porque consideram que são desonestos. Nem quero pensar ou conjeturar sobre aquilo que está por detrás disto. Também assisto a isto quando vejo colegas meus, extremamente competentes, a intervirem naquilo que diz respeito à pandemia. Em determinada altura, dava jeito a quem nos governa que fossem ditas certas coisas. Ouvi-os dizerem coisas que sei que eles sabem que não correspondem à verdade. Sou suficientemente velho para conhecer as competências deles porque foram meus alunos. E penso “Ele sabe que isto não é assim”. Na comunicação social, ouvimos “O grupo de peritos acha x ou y”. Eu sei quem é esse grupo. Trabalho com eles. Se não acreditam naquilo que transmitem, por que motivo o dizem? Nem quero saber.
Mas desconfia das razões?
Ora bem, há coisas que não acontecem por uma questão de incompetência. Porque essa sou capaz de desculpar, até porque se pode aprender. Quando sei que as pessoas têm conhecimento e dizem o contrário daquilo que aprenderam… Aí, fico aterrorizado.
Em Portugal, as touradas foram proibidas em 1836, durante o reinado de D. Maria II. Contudo, esta proibição somente durou nove meses porque a população se revoltou.
Não somos muito diferentes daquilo que éramos no século XIX. Sempre houve vozes contra os maus-tratos a animais. Por exemplo, um grande filósofo do Renascimento, o Giordano Bruno que se manifestou contra a exploração dos povos das colónias, o roubo das suas riquezas e a escravatura. Ele foi morto na fogueira em 1600 porque não foi a sua voz que vingou. Em relação aos animais, o Michel de Montaigne é um bom exemplo.
Nessa altura, foram proibidos os chamados touros de morte – quando o animal é morto em praça pública – e novamente em 1928. Em 2002, a lei voltou a ser alterada e esta prática foi permitida em zonas como a vila de Barrancos. Andamos sempre a avançar e a recuar. Esta tradição está mais ou menos presente dependendo das regiões do país.
Temos um ex-Presidente da República que adora ir a Monsaraz ver touros de morte e um leque de partidos políticos – e não falo de nenhum em particular – que estão mais preocupados com questões eleitorais e a captação do eleitorado do que com a tomada de posições que sejam justas e racionais porque perder o poder, em determinadas regiões, é muito mau para eles. Portanto, defendem seja lá o que for para manter um estatuto. O poder, nos humanos, é algo muito aliciante. É terrível e tem um lado perverso e viciante. Tive um professor na faculdade que dizia que “os políticos são psicopatas perigosos”. Era psiquiatra de formação, mas ensinou-me Comportamento Animal. Diria que alguns políticos não são psicopatas perigosos, mas a expressão aplica-se a muitos. A questão é que lidar com estas pessoas faz parte da democracia. Prefiro viver numa democracia com “psicopatas perigosos” que podem ser controlados popularmente a viver numa ditadura com “psicopatas perigosos” que não podemos controlar.
Em 2010, o escritor e antigo inspetor da Polícia Judiciária Francisco Moita Flores, enquanto desempenhava funções como presidente da Câmara Municipal de Santarém, lançou uma petição em defesa das touradas que viria a ser uma das mais participadas de sempre em Portugal. O que isto nos diz sobre as discrepâncias regionais de que falámos?
As discrepâncias regionais têm a ver com interesses de dominação e manutenção de hierarquias através da sedução dos eleitores. Tudo é possível. Quanto ao Francisco Moita Flores, acho que é brilhante em algumas componentes da atividade dele, como na escrita. Tem coisas verdadeiramente fantásticas, sabe escrever diálogos. Tem grandes preocupações históricas naquilo que escreve. Li alguns livros dele, como o Mataram o Sidónio! e fiquei fascinado com a pesquisa que ele fez. Acho que as descrições são de um rigor fantástico. Gosto muito dele nesta vertente, mas noutras não.
Há três anos, o Centro de Estudos e Sondagens de Opinião da Universidade Católica (CESOP), realizou uma sondagem para a Plataforma Basta de Touradas, no concelho de Lisboa, sobre a promoção de touradas na praça de touros do Campo Pequeno. Com uma margem de erro de 3,1%, concluiu-se que 89% dos lisboetas nunca assistiram a touradas no Campo Pequeno, desde a sua reabertura em 2006, e 69% da população não concordava com a promoção de touradas pela Casa Pia (proprietária do edifício). Por outro lado, 75% da população de Lisboa não concordava que as touradas fossem financiadas com fundos públicos e 96% defendia que se deviam realizar outro tipo de espetáculos no Campo Pequeno.
90% dos parisienses nunca subiram à Torre Eiffel e penso que 90% dos turistas sobem-na. Relativamente às touradas, penso que, cada vez mais, há uma sensibilização das pessoas, também através de associações e movimentos políticos que as vão esclarecendo e levam a que nos sintamos mal com situações como esta. São processos longos e lentos, mas acho que se está a fazer um bom caminho. E, um dia, olharemos para isto como olhamos para os autos de fé ou a guilhotina. Inclusivamente, há partidos políticos, como o PAN, com todas as fragilidades que possa ter, que tem tido um impacto neste sentido. Não tenho qualquer relação com eles nem com qualquer outro partido, mas reconheço que o esforço deles é importante.
Apesar disso, em 2017, segundo dados da Inspeção-Geral das Atividades Culturais, os espetáculos tauromáquicos formais (realizados em praças de touros) obtiveram cerca de meio milhão de espetadores 378 mil espetadores nas 181 corridas licenciadas: mais 4,4% do que no ano anterior. Contudo, esse número é 45% menor do que aquele que foi registado em 2008.
Penso que alguns espetadores não são portugueses, mas sim turistas. Meto-me em lutas que valem a pena, quando penso que não são causas perdidas. Certo dia, o Jerónimo de Sousa disse-me algo que nunca mais esqueci: “Quem não luta, perde sempre. Quem luta, pode perder ou ganhar”. Esta frase marcou-me muito. Julgo que vale a pena lutar porque, se temos a possibilidade de mudar alguma coisa, não devemos baixar os braços. Podemos ser transformadores do mundo.
Nos últimos dias, temos assistido ao acentuar da polarização deste debate. De um lado, temos um grupo de 240 personalidades que defende o fim das touradas na RTP. O objetivo passa por ter uma “televisão pública livre da transmissão de espetáculos que se baseiam na violência contra animais e normalizam tais comportamentos, como sucede na tauromaquia”. De outro, 125 que pretendem que a RTP volte atrás com a decisão de as touradas não fazerem parte dos programas a emitir em 2021 e avançam que a tauromaquia é “uma atividade artística”. Em que é que isto vai culminar?
É complicado fazer uma previsão. Não confundo a realidade com os meus desejos. Estou nesta luta porque acho que vai ter frutos, mas devo dizer que já perdi muitas ao longo da vida. Tenho esperança de que, mais tarde ou mais cedo, isto acabe. Para haver uma mudança política, tem de haver uma mudança cultural. Não chegam as condições objetivas, tem de haver também as subjetivas: para que se faça uma revolução, as pessoas têm de aderir. E eu acho que há um crescimento da adesão.
O que impede que essa seja ainda maior?
A educação, a comunicação social e a Igreja têm um papel fundamental nesta questão: são, basicamente, fatores de reprodução do status quo. E, obviamente, é uma luta contra aquilo que são as opiniões dominantes destes setores, é fortemente desigual. Temos necessidade também de alguma reconfiguração ideológica a nível de partidos políticos. Eu olho para o PAN, conheço-o, simpatizo com ele, mas é casuísta. Ou seja, é populista num determinado sentido para um determinado setor do eleitorado. Sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário. Hoje, tanto quanto me apercebo, no espetro político português, não existe uma teoria revolucionária que esteja atualizada em relação ao panorama.
Porquê?
Todos eles ou não têm teoria – algo que dê coerência às suas ações, como o Chega, sendo uma ponta de lança do fascismo – ou, quando falamos do PAN, qual é o chapéu de chuva ideológico? Não existe. Vivemos o recrudescimento do fascismo, os avanços na Ciência, a exploração do trabalho e das pessoas e a domesticação das mesmas. Há elementos extremamente perversos nesta pandemia. É claro que usar máscara e desinfetante, imaginemos, são elementos-chave na nossa proteção, mas estamos a ser domesticados de uma maneira verdadeiramente tenebrosa e premeditada.
Considera que nos devíamos revoltar ou até mesmo desobedecer ao poder?
A desobediência civil continua a ser uma forma de protesto político e prezo muito o facto de podermos dizer “não”, mas temos de perceber que a covid-19 é perigosíssima. Não se brinca com viroses nem com o recrudescimento de viroses.
No livro, a página dos agradecimentos é assinada por si e pelo Ngombe. Como descreveriam esta obra a um potencial leitor?
Eu diria “se achas que a tourada é fantástica, tens de ler estas páginas. Pode ser que não mudes de ideias, mas ficarás a refletir sobre o assunto” e o Ngombe “Deixem-me em paz”.