O que se passou com a final da Liga dos Campeões no Porto é demasiado grave para passar em claro. Antes de tudo, começa por se perguntar qual a necessidade de, em pleno período de pandemia, se realizar em Portugal um jogo entre duas equipas inglesas, em lugar de o realizar em qualquer cidade inglesa, onde haveria muito mais condições de segurança para o evento.
Poderia justificar-se a realização desta final no nosso país com as receitas fiscais que o evento aqui poderia gerar, e que tanta falta nos fazem neste época de crise profunda. No entanto, a verdade é que na passada sexta-feira foi publicada a Lei 33-A/2021, de 28 de Maio, que estabelece “o regime fiscal temporário aplicável às entidades organizadoras da final da competição UEFA Champions League 2020-2021, bem como aos clubes desportivos, respetivos jogadores e equipas técnicas, em virtude da sua participação naquela competição” (art. 1º).
Ora, esse regime fiscal temporário consiste precisamente em serem “isentos de imposto sobre o rendimento das pessoas coletivas e de imposto sobre o rendimento das pessoas singulares os rendimentos relativos à organização e realização da final da competição UEFA Champions League 2020-2021, auferidos pelas entidades organizadoras do evento, pelos seus representantes e funcionários, bem como pelos clubes de futebol, respetivos desportistas e equipas técnicas, nomeadamente treinadores, equipas médicas e de segurança privada e outro pessoal de apoio, em virtude da sua participação na referida competição” (art. 2º, nº1). Essa isenção é, no entanto, “apenas aplicável às entidades que não sejam consideradas residentes em território português” (art. 2º, nº2). Daqui resulta, portanto, que os organizadores desta final, clubes, jogadores e demais entidades, se forem não residentes, não pagarão um tostão de impostos em Portugal, sendo apenas os residentes que continuarão sujeitos às elevadas taxas de tributação no território nacional.
Mas se os residentes em Portugal não beneficiam desta benesse fiscal, não deixam, por isso, de estar sujeitos ao enorme risco de contaminação pelo SARS-CoV-2 que o total descontrolo da aglomeração de adeptos ingleses implicou no Porto. Na verdade, a Administração Regional de Saúde do Norte já veio recomendar, para os próximos 14 dias, a quem frequentou algum dos locais definidos para este evento ou espaços similares, com alta probabilidade de contacto, que tenham “atenção aos sintomas da covid-19”, devendo “reduzir os contactos”, a par das demais medidas de prevenção aconselhadas desde o início da pandemia de covid-19. Tal significa que a própria ARS Norte já reconhece que esta aglomeração de pessoas poderá ter sérias consequências na propagação do vírus, prejudicando o enorme esforço que o país tem feito no combate à pandemia.
O Governo anunciara, há cerca de duas semanas, que os adeptos ingleses viriam à final da Champions em situação de bolha, indo e vindo em vôos charters no próprio dia para o estádio e daí regressando, não se espalhando pela cidade. A verdade, no entanto, é que a única bolha que se viu nesta final da Champions foi a bolha fiscal da isenção de impostos. Quanto ao mais, os adeptos ingleses puderam fazer no Porto tudo o que em Portugal tem vindo a ser proibido aos portugueses, desde andarem na rua sem máscara, juntar-se em grandes grupos, beber álcool na rua, etc., etc. E isto perante a total complacência das autoridades, que não fizeram qualquer tentativa de controlo da situação e de aplicação das regras estabelecidas, ao contrário do que sistematicamente fazem quando estão em causa cidadãos nacionais.
Resta perguntar com que legitimidade se irão agora estabelecer restrições à aglomeração de pessoas na noite de São João no Porto, depois de se ter dado este exemplo com a final da Liga dos Campeões. Começa a ser chocante vermos esta atitude sistemática de dois pesos e duas medidas, em que o país aplica regras draconianas aos cidadãos portugueses, mas delas isenta sistematicamente os estrangeiros. É mais que tempo de haver regras claras de combate à pandemia, que a todos se apliquem sem excepção.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990