O mês de março foi pródigo em recordações de efemérides políticas relacionadas com o pensamento comunista e com a sua visão de um “mundo novo” e mais justo.
Foi, entre nós, o caso da comemoração/recordação dos cem anos do Partido Comunista Português e alguns (muitos, para o que era “hábito”) artigos sobre os cento e cinquenta anos da Comuna de Paris.
Quem o fez – e tinha todo o direito de o fazer – relevou os aspetos que estavam/estão em linha com o seu atual posicionamento político/partidário e ideológico, deixando na sombra (é certo que não é possível abordar todos os temas em artigos e discursos…) aspetos correlacionados que mereceriam igualmente recordação e reflexão.
É o caso da Comuna de Paris – “endeusada” em 18 de março, por Joana Mortágua, num seu artigo neste jornal – onde recordou a vaga verdadeiramente igualitária que varreu Paris nesse período conturbado da história da França e da Europa. Tem ela razão em valorizar as boas causas e razões que ditaram a revolta popular contra a recém-implantada República e as notáveis reformas que lhe ficaram associadas, do sufrágio universal à gratuitidade do ensino, passando pela reorganização dos direitos dos trabalhadores, no fundo, na fundamental defesa do direito à Liberdade.
Acontece que no mesmo dia 18 de março se devia também lembrar o esmagamento de uma revolta popular (em 1921) na e contra a recém-criada República Socialista Federativa Soviética da Rússia (era assim que se chamava depois de vencida a brutal e sangrenta guerra civil entre “brancos” e “vermelhos”, iniciada logo após a Revolução Bolchevique, pelos czaristas e forças dos países Aliados da I Grande Guerra, depois de consumada a capitulação/aliança da Rússia Soviética com a Alemanha do Kaiser).
E porquê lembrar essa data? Porque após a vitória dos bolcheviques na Guerra Civil, o esmagamento das liberdades das pessoas, dos partidos e dos movimentos que ajudaram a vencer essa guerra civil, começou a ser insuportável para milhões de russos.
Por todo o lado surgiram revoltas, de origens e objetivos diversos, mas ficou para a História a Revolta de Kronstadt, protagonizada pelos marinheiros (e não só) da esquadra do Báltico a partir da ilha que servia de base à maior força da frota russa, a 30 km de S. Petersburgo (então Petrogrado).
Comunistas, socialistas, anarquistas (e outros), dececionados com o rumo ferozmente repressivo e centralista do Governo Soviético, surpreendidos pelo terror, extensão, impunidade e violência da polícia secreta (Cheka) e pelo inusitado e injustificável poder dos comissários políticos do Partido Comunista em todas as áreas da Sociedade e da Economia – todos os agora revoltados, tinham sido combatentes destemidos e leais na luta pela consolidação da Revolução de Outubro – decidiram intimar o Governo de Lenin/Trotsky no sentido de ver alterada a chamada “Economia de Guerra” (que tudo “justificava”), com vista ao estabelecimento dos direitos democráticos, sociais e económicos pelos quais se tinham batido ombro a ombro (contra os “brancos”) ao lado dos seus camaradas de armas, nomeadamente os bolcheviques.
A disponibilidade para o diálogo e a convicção da justeza dos seus protestos, levaram os revoltosos a permanecerem na ilha e a tentarem a via da negociação com o Governo (onde brilhava o poder e a ferocidade de Trotsky).
O resultado foi um esmagamento feroz da Revolta, por forças desiguais, com milhares de mortos (mais dos “vermelhos” que dos revoltosos, em muito menor número), seguido de uma repressão sangrenta e indiscriminada sobre militares e civis e, o fim, após de 18 dias de luta, de outra quimérica “Comuna” (agora a de Kronstadt).
Já se conhecia pois a fúria repressiva e expansionista do regime soviético (desiludido com a ausência de um levantamento massivo dos operários e intelectuais na Europa, previsto e esperado por Lenin como consequência da Revolução de Outubro), quando o X Congresso do Partido Comunista da União Soviética, em 16 de março de 1921 decidiu apoiar a formação e ação de partidos comunistas nos diferentes países europeus.
É essa a data e neste contexto que se comemoraram este ano os cem anos do PCP e foi também, paradoxalmente, ignorando as aspirações da “Comuna” de Kronstadt que se escreveu neste jornal que “150 anos depois, reafirmamos que a Comuna de Paris não foi um episódio, foi uma vaga de fundo da história da luta de classes” (in artigo citado de Joana Mortágua). Só que em Kronstadt a “vaga de fundo” e a luta de classes não eram do povo contra os senhores da terra e os capitalistas mas sim do povo (que confiara nos bolcheviques) contra o terror opressor da novel ditadura/ideologia comunista.
Tudo isto afinal para recomendar que se evite ver a “História por um funil” o que, podendo ter acontecido por razões inocentes, suscita suspeitas quando a Autora citada já afirmou em público que o seu Pai (que, na época, fez o que tinha a fazer) usava armas a “fingir” nos seus atos rebeldes e armados contra o Estado Novo.
Antigo secretário de Estado das Florestas