No meio dos aborígenes da arte, há muito que ele por lá figurava, nunca propriamente ao centro, descaindo para alguma das margens, como alguém a quem falta a paciência para posar para os momentos históricos, para mirar de forma confiante para lá do instante e dar-se numa dessas imagens que captam a imaginação de tantos. Assim, nos retratos de grupo ensaiava alguma gaifona, ou cobria a cabeça com o casaco, como uma santa, talvez para se furtar à glória dos que se contentam com os contornos mais carregados, arrastando enormes imprecisões. Lawrence Ferlinghetti levou daqui um século e uns trocos, e isso não conta apenas à laia de sobrevivência, mas em certo sentido a sua vida foi um compêndio e um resumo de um século de vida americana, tendo ele participado e testemunhado, enquanto poeta acima de tudo, mas também enquanto livreiro, tendo fundado em 1953 a City Lights Bookstore, que foi um farol da contracultura e persiste até hoje, em São Francisco, aberta todos os dias até à meia-noite. Aquela casa foi também um dos mais significativos selos editoriais dessa era, considerada um templo do ponto de vista literário, onde, entre tantos outros títulos que merecem destaque, publicou os “Lunch Poems” de Frank O’Hara e “Uivo” de Allen Ginsberg, que, em 1957, deu origem a um processo em tribunal que levou a que se fundassem os princípios sobre os quais assenta hoje a interpretação da Primeira Emenda, protegendo a liberdade de expressão. Mas a vida de Ferlinghetti, que soube ser um tipo fabulosamente sóbrio, algo esquivo, esbanjando ironia, se bebe aos tragos das fontes da imaginação isso não é apenas pelo seu papel na vida cultural norte-americana, mas pela sua aventura pessoal, por se tratar de um tipo que esteve aos comandos de um caça-submarino na invasão da Normandia, no dia D, alguém que pisou as ruínas de Nagasaki depois da explosão atómica, que escreveu uma dissertação sobre poesia francesa na Sorbonne, e que só então fundou a sua livraria-editora, que o levaria a ser preso, acusado de obscenidade pela publicação de “Uivo”, acabando por arrancar um marco legal com a sua vitória em tribunal. Ganhou também todo o tipo de distinções, e rejeitou outras sempre que encontrava alguma oportunidade de exprimir as suas ideias sob a forme de protesto. Em grande medida foi isso o que foi: um artista do protesto, uma consciência crítica que, com os seus escritos e traduções, inspirou sucessivas gerações, mantendo a tal livraria como um abrigo, convidando os visitantes a buscarem um livro e ficarem por ali o tempo que quisessem, mesmo que não tivessem um tostão furado. Isso foi possível porque o seu primeiro livro, “A Coney Island of the Mind”, que saiu em 1958, continuou sempre a imprimir-se, circulando hoje pelo mundo mais de um milhão de exemplares, o que lhe deu a folga necessária para não ter de pensar em dinheiro. Este tipo que morreu esta segunda-feira, aos 101 anos, vítima de doença pulmonar intersticial, guardou o farol ao longo de bem mais de meio século, e defendia os da sua laia, os mãos-geladas e mais fundo nos bolsos em busca dos trocos que restam da mente, os cavaleiros de ar indigente que ainda se batem pela consciência num mundo onde são cada vez menos aqueles que se afligem ou importam com a colherada de inferno destilada no dia-a-dia. E foi uma presença constante, singular, não propriamente um dos poetas mais inspirados da sua geração, mas alguém cheio de audácia, que assumia frequentemente um estilo jubiloso, mesmo se prendesse com alfinetes os versos. Era um orador que, para lá da sua tese da poesia como arte insurgente, traficava cápsulas de esperança reconhecendo que a mais pura, aquela que não vem cortada com outras substâncias, pela sua capacidade de gerar desordem foi há muito proibida. Numa das suas frases mais repetidas, dizia que de tanto ouvir falar numa grande depressão, estava convencido que alguma esperança devia restar. Assim, defendia que os poetas assumissem posições, que escutassem e estudassem os mapas do tempo, marcando os seus avanços no mesmo registo com que as formigas traçam o seu sânscrito nas areias. “Se queres ser um poeta, escreve jornais vivos. Sê um repórter no espaço sideral, e envia os teus artigos para um supremo redactor-chefe que acredite na transparência total e tenha uma fraca tolerância para conversa fiada.”
Aquilo para que não tinha a menor tolerância era a solenidade dos artistas, o ar capitoso, a pestilência da sobranceria, e sempre se espantou com esses que anunciavam em modo triunfal a sua retirada, tendo afirmado que a sua inocência o levava a acreditar que os pintores ou os escritores, sendo como soldados, não se reformavam mas que desapareciam em combate. Embora não gostasse demasiado de ser associado ao movimento Beat, nunca mais se livrou do título de “padrinho espiritual” dessa vaga literária que varreu os EUA a partir da década de 1950. A Ferlinghetti não lhe agradava muito o furor mediático que cercou a coisa, e insistia que tudo não tinha passado de um golpe, uma invenção da arguta mente publicitária de Allen Ginsberg. De resto, detestava carros, chamando-lhe “o motor de combustão infernal”, e a certa altura até se cansou de uma certa farra e fanfarronice, tendo brincado com o célebre verso que abre “Uivo” (“Eu vi as mentes mais brilhantes da minha geração destruídas pela loucura, famintas histéricas nuas”), dizendo “Nós vimos as mentes mais brilhantes da nossa geração destruídas pelo aborrecimento das leituras de poesia”. Já era mais velho, tinha tido uma infância dolorosamente instável, descrita pelo seu biógrafo como digna de um romance de Dickens, mas não deixou de reconhecer a centelha de génio e o fervor revoltoso que inspirou o movimento, e tornou-se amigo pessoal e, mais ainda do que isso, uma figura protectora para alguns dos seus maiores nomes, entre eles Ginsberg, Gregory Corso e Michael McClure. Em comum com eles tinha o desatavio dos versos, o gosto pelo registo coloquial, a tagarelice matreira que animava as ruas, mas misturava a isso a lição que aprendera com Ezra Pound, a de combinar referências da grande literatura europeia como contraste para a gama de tonalidades americanas. Desse modo, como notou a poeta e crítica Ange Mlinko, esse patuá recapitula as suas próprias origens híbridas. Filho de Clemence Mendes-Monsanto, uma mulher de ascendência portuguesa sefardita cuja família outrora próspera emigrara para a América por meio das Ilhas Virgens, e de Carlo Ferlinghetti, um imigrante da Lombardia que anglicizou o seu nome para Ferling. E no seu primeiro volume de poemas vai semeando referências a um suposto acidente fortuito que o trouxe para o mundo, tendo o engate entre os seus pais acontecido em Coney Island, nos carrinhos de choque: “ah pois foi um choque de pelo menos duas… civilizações”.
A 24 de março de 1919, alguns meses depois de Carlo ter sido encontrado morto, vítima de um ataque cardíaco, nascia Lawrence Monsanto Ferling, em Yonkers, no estado de Nova Iorque. A mãe, assoberbada pelos quatro rapazes que já tinha a seu cargo, entregou o recém-nascido aos cuidados da sua cunhada francesa, conhecida como Tia Emilie. Pouco tempo depois, Clemence acabaria por dar entrada num hospício. Então, Lawrence foi levado pela tia para Estrasburgo, onde aprendeu o francês antes ainda do inglês, e quando, uns anos depois, regressaram aos EUA, a tia viu-se obrigada a deixá-lo num orfanato por uns tempos, até conseguir ter condições de se sustentar. Foi então que a sua sorte começou a mudar, depois de a tia ter começado a trabalhar como governanta para Presley e Anna Bisland, um casal abastado que vivia perto de Bronxville (Nova Iorque) e que se afeiçoou ao miúdo que não só revelava promessa como tinha o mesmo nome que o filho que haviam perdido. Deixado ao cuidado dos Bisland, Ferlinghetti teve acesso à melhor educação e, de acordo com o seu biógrafo, Barry Silesky, tornou-se um ávido leitor, devorando os clássicos da generosa biblioteca daquela casa, sendo incentivado a decorar poemas épicos em troca de moedas de prata de um dólar. Quando mais tarde foi detido por delinquência juvenil depois de andar a fanar nas lojas com os amigos, acabou por ser enviado para Mount Hermon, um severo colégio privado para rapazes no Massachusetts. Foi por essa altura que um certo sentido de abandono o levou a buscar na literatura essa relação entre os tantos órfãos que ali vão dar, e terá sido o romance de Thomas Wolfe “Look Homeward, Angel” que lhe passou um braço sobre os ombros e lhe deu algumas orientações. Assim, Ferlinghetti inscreveu-se na Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill, porque foi por lá que Wolfe andou. Fez a licenciatura em jornalismo, tendo mais tarde reconhecido que a técnica lhe serviu para compor frases enxutas e que isso acabaria por ser decisivo na sua poesia. Depois de ter o canudo, serviu como oficial da Marinha durante a II Guerra, tendo passado a maior parte do conflito enfiado num caça-submarino no Atlântico Norte. Nas ruínas de Nagasaki, a perspectiva da devastação entrou-lhe como um estilhaço alojando-se no espírito, e passaria o resto dos seus dias num estado de vigília, solene, lúcido, atento ao abismo, nomeadamente à destruição do meio ambiente. Descrever-se-ia como um anarco-pacifista e, finda a guerra, por um tempo dedicou-se ao jornalismo, na Time, para depois ingressar na Columbia University onde se formou em Literatura Inglesa, seguindo então para Paris, onde se doutorou em 1950, mas, mais importante, onde conheceu George Whitman, o dono da livraria de língua inglesa do outro lado da Notre Dame, que em tempos era conhecida como Le Mistral e que é hoje a Shakespeare and Co. Foi neste Whitman que inspirou o seu modelo de negócio, que no fundo passa por não levar a parte do negócio muito a sério, preferindo assumir que, no estado actual das coisas, nada é mais exemplar e heroico do que um fracasso que abre as portas todos os dias para lembrar que o dinheiro pode saber muito sobre as ambições e demais fraquezas dos homens mas não percebe patavina no que toca às suas aspirações e grandezas.
Mas isto da biografia aborrecia-o. De cada vez que cedia uma entrevista e as perguntas o levavam para esse país estrangeiro que é o passado, obrigando-o a marcar os incidentes e episódios que fizeram dele quem era, fazia questão de trocar as voltas à coisa, elaborando umas ficções, variando a narrativa, ensaiando saídas. Preferia de longe “o horizonte da nossa carne/ moída de sol/ muda de estupefacção/ entre o acto do sexo/ e o acto da poesia”. A grande virtude do seu estilo é um gozo da rapidez, uma certa ligeireza, a pincelada enfática e que não abre margem a grandes revisões nem remorsos, em vez de grandes considerações sobre os temas ou episódios, alude, condensa, ainda que recorra a repetições, uma gramática rítmica, uma fluidez sintáctica que adianta a mancha de texto como sombra para a voz, esse lado declamatório que impregna desde a raiz a sua obra, de resto, em tom de piada, falava no fluxo de consciência que usava como sendo um registo na “quarta pessoa do singular”. Lendo os melhores poemas de Ferlinghetti, o que se sente é uma clareza e uma confiança própria de quem tem uma mente crítica e arejada, num verso que toma da prosa o seu desassombro, a jovialidade cacofónica de um país que acredita ainda no quinhão da aventura, misturando a influência de poetas como Apollinaire e Prévert, de quem traduziu para o seu selo “Paroles”, e é claro que há sempre uma falsa ingenuidade, uma forma de criar confiança, atrair o mundo e desancá-lo sem impor um tom de irritação na voz, daí que tenha sempre os dicionários da luz abertos, para trocar as trevas por miudezas calmantes, mas que não deixam que se atire para trás das costas o que importa. Como ele dizia, “se me perguntam se vou não com os Poetas da Derrota mas sim com esses desbravadores que levam um sim como passaporte, sim, como Whitman e Henry Miller, sim, é com eles que vou”. Mais? “Estou à espera que chegue a vez do meu processo/ e estou à espera de um renascimento do maravilhoso/ e estou à espera de alguém que descubra realmente a América”. Noutros versos advertia: “Não escorregues na casca de banana/ do niilismo, mesmo que dês por ti a escutar/ o rugido do Nada”.