Face à gravidade da doença covid-19 e ao elevado número de vítimas que causa no nosso país, a descoberta de vacinas foi uma boa notícia que gerou na população a perspectiva de, por essa via, poder terminar a situação de calamidade pública em que o país continua mergulhado. Era, por isso, essencial que fosse apresentado um plano de vacinação eficaz e que o mesmo fosse executado sem a mínima falha. Infelizmente, no entanto, nada disso se verifica, com graves prejuízos para a confiança da população, que assiste perplexa à multiplicação dos casos de vacinação indevida e ao atraso nas vacinas.
A situação começou logo mal, com uma apresentação atabalhoada e confusa do plano de vacinação, numa conferência de imprensa de 3 de Dezembro passado, em que o coordenador da task force sentiu necessidade de garantir que o plano iria correr melhor do que a sua apresentação. Mas, como diz o povo, o que nasce torto tarde ou nunca se endireita, pelo que o plano de vacinação está a correr de forma muito pior do que a sua apresentação inicial.
Há que recordar que o que foi indicado é que o plano de vacinação decorreria em três fases. Na primeira fase seriam vacinados os utentes e profissionais de lares (cerca de 250 mil pessoas), pessoas com 50 e mais anos e patologias específicas associadas (400 mil pessoas) e profissionais de saúde e agentes de segurança (cerca de 300 mil pessoas). Na segunda fase seriam vacinadas as pessoas com 65 e mais anos, com ou sem patologias (1,8 milhões) e as pessoas com mais de 50 anos com doenças severas ou crónicas (900 mil). Já na terceira fase seria vacinada a restante população, que são nada menos do que 6 350 000 pessoas. O problema é que não foi anunciada qualquer calendarização rigorosa das três fases, deixando os cidadãos na expectativa – e a maior parte está colocada numa terceira fase, que há-de vir depois da segunda, cujo termo ainda se ignora.
Efectivamente, verifica-se que, até ao momento, as pessoas vacinadas em Portugal não atingem 400 mil mas, apesar disso, fez-se o anúncio de que já estaríamos a iniciar a segunda fase, mas apenas com carácter “simbólico”, uma vez que ainda não há vacinas disponíveis. Aliás, as falhas foram de tal ordem que até se anunciou a falta de seringas para ministrar as vacinas. Ora, se se deveriam vacinar 950 mil pessoas na primeira fase e ainda nem chegámos a metade, não se percebe como se pode anunciar o início da segunda fase para agora. Por outro lado, há que salientar que estamos a vacinar ao ritmo de 80 mil pessoas por semana, sendo certo que, a manter-se esse ritmo, levaremos 125 semanas a vacinar toda a população, só estando assim a vacinação concluída em meados de 2023.
Perante esta demora evidente, não admira que tenha sido posteriormente introduzido um critério político neste plano de vacinação, uma vez que o primeiro-ministro, através do despacho 1090-D/2021, de 26 de Janeiro, solicitou a diversos órgãos de soberania a indicação de prioridades na vacinação contra a covid-19 relativamente às pessoas que asseguram serviços essenciais nos respectivos órgãos. Tal implicou a chamada de múltiplos titulares de cargos públicos para serem vacinados, com critérios questionáveis, até porque variaram nas mais diversas situações, consoante a indicação do presidente do órgão.
Mas, ao mesmo tempo, verificou-se também o surgimento de múltiplos casos de vacinação indevida, com pessoas a serem ilegitimamente vacinadas à frente de outras, sem que as autoridades, pelo menos numa fase inicial, tenham reagido relativamente a essa situação, fazendo aplicar o enquadramento penal correspondente. Pelo contrário, o que se anunciou foi a apresentação por partidos da oposição de projectos de lei a estabelecer crimes de vacinação indevida, o que só pode servir para lançar a confusão relativamente à repressão penal deste tipo de fenómenos, até porque as leis penais não têm eficácia retroactiva. É mais que tempo de se perceber que o problema do nosso país não é a falta de leis, que temos em abundância, mas sim a não aplicação das leis existentes.
É por isso que é preciso estabelecer um plano de vacinação com prioridades claras e calendarização segura e sancionar rigorosamente o seu desrespeito. A vacinação da população contra esta doença é uma prioridade nacional e não pode continuar a este ritmo.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990