Escrevi duas crónicas neste jornal, a 8 e a 22 de Dezembro, criticando a forma absurda como estava a ser organizado o Natal, chegando-se ao ponto de desconsiderar as regras constitucionais relativas ao estado de emergência com o objectivo de permitir que o mesmo decorresse sem restrições. Os resultados dessa decisão estão à vista, com um aumento exponencial do número de infectados que está a colocar no vermelho todos os hospitais. Convirá, por isso, recordar o que se passou.
O mês de Novembro foi dos mais gravosos da segunda vaga, havendo sucessivos dias com mais de 5 mil infectados. Apesar disso, a 27 de Novembro, o Presidente da República anunciou publicamente que seria “de bom senso” que os portugueses soubessem antecipadamente como organizar o Natal, propondo por isso uma definição antecipada das regras a vigorar no período das festas, ainda antes da renovação do estado de emergência para esse período. No dia anterior a esse anúncio, o país tinha registado 6383 infectados e, nesse mesmo dia, 5444. Era óbvio que, com esses números, seria arriscadíssimo estabelecer medidas para o Natal a um mês de distância, sem se saber a evolução da pandemia.
O primeiro-ministro seguiu, no entanto, essa orientação e referiu, em 1 de Dezembro, que na próxima renovação do estado de emergência, o Governo iria anunciar não só as medidas para essa quinzena, mas também as que iriam vigorar para a quinzena seguinte. Isto porque, nas palavras do primeiro-ministro, “[era] fundamental que as famílias e agentes económicos [pudessem] ter uma noção antecipada de como [ia] ser o Natal”. E na reunião do Infarmed de 3 de Dezembro foi anunciado que o pico da pandemia tinha sido atingido a 25 de Novembro, convencendo assim as pessoas de que o pior já teria passado e que, a partir daí, seria sempre a descer.
Em consequência, o decreto do Presidente da República 61-A/2020, de 4 de Dezembro, procedeu à renovação por mais 15 dias do estado de emergência, até às 23h59 do dia 23 de Dezembro de 2020, mas no preâmbulo anunciava já a sua renovação até 7 de Janeiro, “permitindo desde já ao Governo prever e anunciar as medidas a tomar durante os períodos de Natal e Ano Novo”.
E o Governo assim fez, pelo que através do decreto 11/2020, de 6 de Dezembro, determinou que o dever geral de recolhimento domiciliário não seria aplicável nos dias 23 a 26 de Dezembro (art.o 46.o) e a proibição de circulação na via pública apenas se iniciaria às 02h00 do dia seguinte nos dias 24 e 25 de Dezembro (art.o 45.o, n.o 1, b)). Os restaurantes poderiam ainda funcionar normalmente nos dias 24 e 25 de Dezembro e até às 15h30m do dia 26. E, em relação ao Ano Novo, o Governo excluiu o dever de recolhimento domiciliário e a proibição de circulação entre as 5 horas de 31 de Dezembro e as 2h00 do dia seguinte (art.os 49.o e 50.o), proibindo apenas a circulação entre concelhos entre as 00h00 e as 2h00 desse dia (art.o 48.o). Quanto aos restaurantes, foi permitido o seu funcionamento no dia 31 de Dezembro, só tendo sido obrigados a encerrar às 15h30m do dia 1 de Janeiro. É de salientar que, no dia anterior a terem sido determinadas estas medidas, o país registou 6087 casos de infecção, pelo que esse anúncio antecipado de levantamento das restrições foi claramente irresponsável.
Perante a evolução cada vez mais grave da pandemia, o Governo recuou no levantamento das restrições no Ano Novo, mas manteve o mesmo regime quanto ao Natal, mesmo quando em toda a Europa se estabeleciam medidas severas a disciplinar as reuniões familiares nesse período. Não faz, por isso, qualquer sentido afirmar que foram os portugueses que não respeitaram o pacto de confiança com eles quando nem sequer lhes foi dito qual o número de pessoas que poderiam estar juntas na ceia de Natal.
Agora, com o número de infecções diário quase a duplicar, aguarda-se uma reunião do Infarmed, onde provavelmente irá ser descoberto que já ultrapassámos outro pico, para tomar medidas que infelizmente há muitos dias se tornaram necessárias, devido a esta atitude irresponsável. O combate ao vírus não se compadece com definições antecipadas de comemorações de eventos festivos e muito menos com o aguardar de reuniões com especialistas, que um simples telefonema permite contactar. O número de vítimas já ocorrido e a susceptibilidade do seu aumento, com os hospitais em colapso iminente, implicam uma reacção imediata para conter a pandemia.
Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990