Numa entrevista dada a este jornal, em 2018, Abel Barros Baptista deixava claro o seu desdém por George Steiner, afirmando que este se havia tornado “uma espécie de representante do intelectual ocidental que chora à beira das ruínas daquilo de que ele próprio é representante”. E prosseguia: “Eu não aprecio o Steiner, nunca li nada de especial dele, nunca achei interessante, porque é sempre a mesma ideia: há uma grande cultura e essa cultura não é para todos. E insiste-se nisto: o que não é para todos, está a morrer, porque o resto, os broncos, os analfabetos, vão destruir a nossa cultura, o que é uma coisa impossível. Num programa que eu vi, ele falava de um conto do Hemingway e referia que aquilo evocava uma cena do romance medieval. E depois dizia: isto, há 20 ou 30 anos, qualquer pessoa fazia esta comparação imediatamente, agora não, agora é preciso pôr uma nota. E o estúpido é esta ideia: se não soubermos que aquela cena evoca uma cena medieval, perdemos o interesse pelo texto do Hemingway. E não é verdade.”
Abel Barros Baptista não só distorce o sentido das palavras de Steiner no episódio que lhe é dedicado da série de entrevistas “O Belo e a Consolação”, como dá eco a um certo desprezo que se generalizou pelas formas de repúdio face à degradação mais do que evidente do ensino, o qual, hoje, não só está sob ataque – e isso é patente na forma como as humanidades estão reduzidas a um rincão no ensino superior, debatendo-se pela sua sobrevivência –, como ainda enfrenta o reacionarismo antintelectual típico de uma forma de aleivosia dos benfiquismos que começam já a impor-se no terreno da cultura. Nas quatro entrevistas que deu em dias seguidos no início da década de 1990 ao filósofo iraniano Ramin Jahanbegloo, Steiner confronta a soberba da ignorância que, hoje, permite mesmo a quem não leu nem sabe do que se fala, suspeitar de tudo e denunciar a enfatuação dos intelectuais, nesse registo de paranoia alarve que contesta toda a autoridade e que apreende a tradição como um compêndio de banalidades e lugares comuns. O ensaísta e académico português menoriza o diagnóstico firme que Steiner traça de uma ameaça decisiva aos mecanismos de transmissão cultural, a um regime de infantilização e facilitismo que compactua com a cultura de massas, deixando à sua mercê gerações que, saturadas num caldo de referências puramente descartáveis, partem de uma espécie de marginalidade ou exílio face às obras que fundaram a nossa civilização e são, assim, incapazes de fazer uma leitura mais complexa ou sequer de buscar alento no passado face ao eterno conflito dos homens para se libertarem, em cada época, dos modelos de servidão em que voluntária ou involuntariamente se veem enredados. Ora, ao ser questionado sobre a forma como a crise actual da educação perturba o seu trabalho enquanto professor, Steiner explica de forma excepcionalmente clara o que está em causa. “Se eu falar ao nível mais básico possível, se disser as coisas como as diz toda a gente, não há um estudante, não há um burguês, não há um privilegiado que compreenda uma alusão a um clássico ou à Bíblia. Não leram nada. Tudo tem de ser explicado. Poderíamos inventar um exercício razoavelmente divertido que consiste em afixar numa parede uma vintena de edições da obra de Shakespeare, edições que teriam sido publicadas entre 1850 e 1992. A cada reedição, as notas liminares tornam-se mais longas e mais elementares. Há vinte anos, uma última edição de um livro de bolso fazia notar que Afrodite era uma vénus, pagã, deusa do amor. À medida que as notas introdutórias se multiplicam, o texto torna-se cada vez mais magro e mais distante; é eclipsado por um oceano de comentários elementares, que o submergem, segundo uma outra escala, num mar de erudição. A crise é tal que é preciso explicar tudo de A a Z, porque hoje é impossível ler os clássicos e os grandes textos sem dar aos alunos exercícios escolares de nível inferior que lhes facilitem o acesso a esses mesmos textos. O que pode acarretar qualquer coisa de terrível: os textos maiores serão reservados a monges felizes que, entre si, os saberão ler e apreciar, em casas de leitura ou seminários mais ou menos clericais, a exemplo do que se passou entre o século VI e o Renascimento, quando só os grandes mestres liam Horácio, Cícero, Tito Lívio ou Plauto.”
Desaparecido no início deste ano, George Steiner deixou como legado não tanto uma obra incontestável, mas antes uma atitude, um atrevimento prodigioso, o de um leitor insaciável que ia constituindo um enredo apaixonante, perseguindo essas verdades “que excedem a razão, afastam-se de um mundo envelhecido”. Ao invés de um especialista que policiava e dominava todos os aspectos de um ramo obscuro dentro dos estudos literários, foi pioneiro nos estudos comparatistas, orgulhando-se do seu virtuosismo apátrida, de cercar qualquer problema com a sua fluência em vários idiomas (três delas – o inglês, o francês e o alemão – como nativo), entendendo que a vida de uma língua determina os recursos da percepção, trabalhando o seu fôlego, a própria mente como se fora a sua derradeira obra, um animado teatro de referências, aperfeiçoando a sua tão arguta e persuasora lição. Dotado de uma abrangência incomparável, move-se com uma elegância e uma desenvoltura que nos absorvem, com aquela capacidade de aceder à realidade como se a atraísse a um ínvio argumento, ressaltando algum padrão inusitado, aspectos finos e que traduzem uma qualidade mítica numa razão de outro modo insuportável. Deste modo, ensina-nos a perdoar à vida, e até à condição humana “o facto de ser a coisa indiferente e pontual que é”. Steiner diz-nos que as artes da compreensão (hermenêutica) são tão variadas quanto os seus objectos, e que “não há nada de mais exasperante na condição humana que o facto de nós podermos significar e/ou dizer seja o que for”.
Não se cansa de insistir como Espinosa que qualquer coisa excelente é rara e difícil, e defende que, “de um modo quase inconsciente, a excelência amedronta”. E o apodo de elitista que sempre o perseguiu, que lhe foi atirado à cara uma e outra vez, nasce de uma espécie de propensão fantasista em que uma boa parte daqueles que estão comprometidos com os planos da consciência e da reflexão, esses que são tantas vezes levados à solidão e à heresia, persistem do lado de uma ideia de transformação que se confunde com uma forma de inocência perpétua, recusando os sinais cada vez mais claros dessa composição coral que dirige uma sociedade pelas escolhas que exprimem uma infatigável voragem consumista. Ora, Steiner não rejeita a leitura que o nosso tempo lhe serve, não procura iludi-la, pelo contrário, responsabiliza-nos (“Sermos responsáveis pelos nossos actos até ao fim dos tempos é o verdadeiro juízo final com que temos de nos confrontar.”), leva a sério as escolhas que fazemos e não as justifica como fraquezas, vícios, não aceita a alienação da generalidade como álibi, recusando-se a destituir o homem da sua natureza para o elevar segundo um qualquer conceito romântico, desfasado da realidade. “É um facto incontornável que para a quase totalidade dos homo sapiens sapiens o actual credo mundial é o do futebol. Chás dançantes ou concertos de rock exaltam, comovem e consolam centenas de milhões para os quais uma sonata de Beethoven equivale a um imenso aborrecimento. Se houvesse um referendo, a imensa pluralidade dos meus semelhantes elegeria uma telenovela ou um concurso de televisão em detrimento do xadrez. E é precisamente esta liberdade de escolha, mesmo quando as opções são previamente selecionadas e empacotadas pelo mercado de massas, que se encontra em consonância fundamental com os ideais e as instituições da democracia.”
E lança ainda uma série de questões: “Além disso, que direito tem o mandarim de implementar uma cultura ‘elevada’? Que direito tem o pedagogo ou pseudo-intelectual de amordaçar as gargantas daqueles a quem Shakespeare chamava ‘a generalidade’ com as suas prioridades e valores esotéricos? Sobretudo se e quando sabe, no mais fundo do seu inquieto coração que os feitos intelectuais e artísticos não são susceptíveis de tornar os homens e a sociedade mais humanos, mais aptos para a justiça e para a compaixão? Quando intui que as humanidades não humanizam, que as ciências, e mesmo a filosofia, podem servir a pior das políticas? (…) Que justificação tenho eu, fora o gosto ou a vaidade pessoais, para me opor, como Quixote e os seus moinhos de vento, à cultura popular e àquilo que tão manifestamente contribui para vidas que de outro modo seriam monótonas ou estropiadas? Com base em argumentos pragmático-democráticos ou de justiça social a resposta é: nenhuma.”
Isto não significa, contudo, uma capitulação, e se Steiner nos diz que não encontra um argumento legítimo “para justificar o custo social de, por exemplo, uma ópera grandiosa num contexto de bairros degradados e de hospitais carenciados”, deixa claro que a sua sensibilidade o leva a persistir numa defesa dessa cultura elevada, entendendo que o estudo, o argumento teológico-filosófico, a música clássica a poesia e a arte “são a salvação da vida”. De resto, é evidente que tinha o atrevimento e até o gozo de exprimir convicções que iam ao ponto de ser extremamente impopulares, e não é que o fizesse por mera provocação, mas até nesse aspecto nos defendia contra o intolerável regime de uma forma de esperança que, nos nossos dias, raia a coacção moral, e à qual se tem designado de pensamento “politicamente correcto”. Um exemplo. Nas entrevistas que deu ao filósofo iraniano Ramin Jahanbegloo, Steiner a certa altura diz isto: “Tenho a convicção íntima de que certas ordens de especulação intelectual só podem encontrar-se num mundo limitado no qual os escravos asseguram aos abastados a subsistência necessária bem como o ócio, que lhes permite discutirem as secções cónicas ou a álgebra dos números irracionais na Academia. Com efeito, o privilégio insensato que a Grécia conheceu consistia nesse luxo de um pensamento político baseado na escravatura e na redução da mulher a um estatuto de inferioridade. Tudo o que é nosso foi pensado durante esse breve período da história humana; somos filhos desse mundo. Depois dele, o nosso conhecimento só muito pouco enriqueceu. A nossa ciência, as nossas matemáticas são um banal prolongamento das dos Gregos. Schelling dizia que, quando pensamos, somos todos gregos. Talvez sejamos todos hebreus quando rezamos ou sofremos, mas o pensamento, concebido de modo especulativo, formal e plástico, vem-nos dos gregos.”
É evidente que uma tese como esta pode ser rebatida, quase pede para que lhe sejam apontadas as suas falácias e a simplificação que chega a ser contraditória com as próprias ideias de Steiner, pois ele mesmo nos diz que “a literacia ocidental, na sua matriz hebraico-helénica, baseou-se, até muito recentemente, no comentário, no comentário sobre o comentário quase ad infinitum. (Como observa o Eclesiastes, o ‘fazer dos livros’ e o fazer dos livros sobre os livros, não tem fim.)” Assim sendo, os próprios gregos e o seu legado cultural são continuamente reapreciados, e isto leva-nos a considerar o quanto o alcance desta cultura não depende de realizações posteriores. E, neste ponto, podemos até valer-nos da lição de Borges, que nos lembra que, se no vocabulário crítico, é indispensável a palavra precursor, o facto é que todos os escritores, artistas ou pensadores que chegam depois, “criam os seus precursores”. “O seu labor modifica a nossa concepção do passado, tal como há-de modificar o futuro.” Ou, se preferirmos, também podemos ir a Herberto buscar o esplendor desse reflexo invertido: “As mães são as mais altas coisas/ que os filhos criam, porque se colocam/ na combustão dos filhos, porque/ os filhos estão como invasores dentes-de-leão/ no terreno das mães.” E Steiner, serve-se da música também para comprovar esta ideia, dizendo-nos que “toda a compreensão reside na continuada interpretação. Assim, a interpretação e a crítica são, nas suas mais honestas realizações, narrativas de encontros pessoais, sempre provisórias e mais ou menos sugestivas e enriquecedoras.” Mas tudo isto serve para mostrar como mesmo as contradições mais evidentes no pensamento de Steiner não são estéreis, e sim produtivas, libertadoras. O fascínio que as suas divagações exercem sobre o leitor não implicam uma adesão irrestrita aos seus juízos, antes pelo contrário, é um encanto que estimula essa distância que permite um diálogo cheio de tensões e, por isso, mais pregnante. As suas observações exibiam uma espécie de petulância que funciona como um elemento de dissuasor. Ao mesmo tempo que nos cativa com a sua erudição quase sobrenatural, espicaça os leitores, deixa-os de sobreaviso quanto à possibilidade de o seu exercício de costura admitir bruscas inversões, passos insidiosos, hipóteses radicais, um gosto pela polémica que não deixa o auditório cair num transe, absorver sem reservas. Parece estimular a própria resposta imunitária no pensamento de quem o segue. O que parecia animá-lo mais que tudo era o próprio sobressalto, ao ponto de permitir que a seriedade das suas teses fosse abalada, expondo o flanco a golpes mortíferos, desde que pudesse sobreviver essa cadência espirituosa. Foi uma qualidade que reconheceu em Arthur Koestler, autor que, segundo ele, “parecia exemplificar a percepção de Nietzche de que há homens e mulheres que revelam uma motivação mais forte que o amor, o ódio ou até o medo. Trata-se desse desejo permanente de se sentirem instigados, interessados, seja numa disciplina do saber, ou numa equação ou problema conceptual, num hobby ou até no jornal que sairá amanhã.”
Os maiores admiradores de Steiner não emborcavam as suas noções nem se limitavam a regurgitá-las, mas habituaram-se a esse gosto de serem sacudidos pela sua inteligência que parecia impulsiva, que construía uma aula tão fascinante por se definir por uma intensidade feita da atenção ao que a rodeia. Como nos diz Lee Siegel num artigo que assinou no “The New York Times”, “o interesse, a curiosidade, a obsessão saudável eram a versão de Steiner das graças de Deus. E há algo de ao mesmo tempo exaltante e maravilhosamente mundano nessa atitude.”
Assim, é preciso arrumar esse género de ataques em que certos autores surgem investidos de uma espécie de autoridade inquestionável, e que passam por cima do valor provisório das posições de Steiner, mostrando-se, na verdade, bem mais arrogantes do que ele, por não reconhecerem que era precisamente esta a sua forma de se afastar de uma postura elitista, dirigindo o fulgor das suas intuições, algumas delas muitíssimo desagradáveis, a uma mais vasta pluralidade de homens. Diante do fascínio por ele exercido, muitos recusam-se a reconhecer como este foi, em grande medida, construído por meio de artíficios de sedução, tendo Steiner reconhecido em inúmeras ocasiões que não julgava estar ao nível dos espíritos mais inspirados ou letais, e mais do que se contentar com um papel secundário rejubilou com ele. “Estou convencido de que é um privilégio infinito poder ser um reles actor secundário, um comentador, um instrutor ou um contínuo nas imediações desses lugares elevados. Não posso e não devo negociar esta paixão. Uma tal negociação, seguindo a táctica profundamente falsa e infantil do ‘politicamente correto’ é uma traição à causa. É, como a ‘desrazão’ do amor, uma mentira.”
E é neste sentido que, como refere Siegel, diante da obra de Steiner, em vez de querer sancionar essa obstinação de um pensamento que não hesita em meter por atalhos, produzir conclusões precipitadas e que o colocam não tanto do lado dos grandes filósofos, mas mais desses prestidigitadores, talvez a pergunta que nos devemos colocar seja também ela algo mais simples e directa: “Era um prazer ou era um castigo ler Steiner? Não era seu apanágio apresentar as obras de arte e as ideias como essas formas de entretenimento urgente que elas são, ou ter-se-á tornado para ele a cultura – como acontece com algumas pessoas – uma mera extensão do seu ego, um reinado de um homem só, cujas chaves ele exibia e fazia tilintar debaixo do nariz do leitor enquanto se andava para trás e para a frente solenemente empinado, recitando os nomes de mortos ilustres como se não passassem de fantasmas do seu próprio génio?”
A certa altura nestas entrevistas, Steiner lembra que em “Presenças Reais”, um dos seus livros mais atacados pelos desconstrucionistas, tentou “mostrar que um universo que exclui todo o esquema de transcendência, que não sublinha com Platão que a beleza é difícil porque é transitória, conduz a educação – quer dizer, o educar, ‘levar’, ‘conduzir’, mas também ‘alimentar’ – a um impasse”. E é aqui que este “mestre de leitura” assume um orgulho que, naturalmente, faz com que boa parte dos académicos lhe torçam o nariz: “Às vezes, comparo a minha vocação de professor com a dos noventa e cinco por cento de universitários que a não têm, e que qualifico de assassinos da esperança e da perfectibilidade dos jovens aos quais roubam a possibilidade de conhecer esse sacerdócio próprio do professor, presente na origem de toda a verdadeira educação.”
Sabemos como mesmo esta estimativa de Steiner chega a ser generosa se confrontada com os quadros de docência universitária nos nossos dias, e como as escolas e as universidades correspondem a um mundo envelhecido, capturado por burocracias ameaçadoras e abjectas que inviabilizam de todo uma “república da excelência”. Face a isto, Steiner lembra a forma como a sua vocação enquanto professor foi sempre exercida como uma paixão e num combate face a esse regime de diluição e degenerescência cultural. “A simplificação, o nivelamento, a redução da fasquia, que dominam agora toda a educação, salvo a mais privilegiada, são criminosos”, diz-nos ele. Reflectindo sobre a sua carreira enquanto educador, lembra o período do Maio de 68, e explica porque mesmo então não sentiu quaisquer constrangimentos. “Por puro acaso, estive, nos anos de 1968-1969, em Harvard e Frankfurt, universidades então abaladas pela agitação estudantil, sem que isso me tivesse causado a menor dificuldade. Pedi ao meu auditório que me concedesse dez segundos antes de começar a minha lição, e os estudantes ficaram intrigados. Tanto mais que eu continuei a dizer-lhes que podiam protestar e sair, mas não antes de passados esses primeiros dez segundos. Apresentei-me a eles como alguém que sabia tudo ao passo que eles não sabiam quase nada. Acrescentei que prestara a Deus o juramento de inverter essa equação em seu favor. O resultado foi um silêncio religioso. O revoltado, o rebelde, tem para comigo o respeito mais absoluto; ouve-me, dizendo talvez de si para si que eu sou louco, porque sente, como um cão fareja, que não tenho medo dele e que estou possuído pela minha vocação (…) Os revoltados podem considerar-me um louco arcaico, mas dispõem-se a respeitar minha loucura porque ela se manifesta e se declara abertamente. Não tenho de fingir que sou mais um entre eles. Estou a falar dos professores expulsos das suas salas de aula, estou a falar dos professores universitários. Penso que o corpo docente dispõe de meios que lhe permitiriam resistir às adversidades, mas entregou-se a uma tal debandada da alma que aceitara já o juízo niilista proferido sobre a sua profissão antes ainda de a crise sobrevir.”
A citação é longa mas justifica-se por permanecer actual, e por, décadas depois, confrontar ainda de forma decisiva a situação insustentável em que esta classe foi colocada, com os professores a serem reféns não apenas dos modelos de uma infernal burocracia, que institucionalizaram uma gigantesca farsa, em que em vez de estarem comprometidos com a transmissão do conhecimento, se criam estruturas de avaliação e vigilância, num regime carcerário e que produz dor e formar de sujeição e humilhação, em que alunos e professores são à vez o carrasco e a vítima, especialmente no que toca às instituições privadas, onde cada vez mais se baixa a fasquia e se nivela por baixo para satisfazer o cliente, num mecanismo em que os estudantes respondem à hipocrisia do sistema, graduando-se apenas na sua lógica corruptora. É natural, portanto, até pela impotência da maioria dos professores universitários, pela sua declarada incapacidade de fazer frente a este regime que, ao mesmo tempo que os degrada, requer a sua cumplicidade, é natural, dizia, que a atitude desafiadora de Steiner agudize ainda mais estas tensões agónicas junto de uma classe que se vê amordaçada e que escolhe agredir aqueles que lhe exigem a rebeldia de serem fieis à sua vocação.
“Conto-lhes uma fábula que vem a propósito. Proponho-lhes que façam uma experiência que consiste em suporem que apanham um comboio malcheiroso, ocupando um lugar numa carruagem de segunda ou terceira classe. O que pode ser feito no Sul de Espanha, no Peru ou na Indonésia. Imagine-se que o comboio pára, devido à falta de água ou à impossibilidade de o maquinista entrar na estação. A atmosfera torna-se cada vez mais quente. Se o estudante que quer ser professor, contando em voz alta uma história ou expondo um dos seus temas predilectos, for capaz de prender a atenção do seu auditório amontoado na carruagem de terceira classe, então eu digo-lhe que sim, que pode entrar na carreira docente. Se, pelo contrário, o estudante não se decide a aceitar a eventualidade de uma situação semelhante, digo-lhe que, em caso nenhum, deverá escolher o ensino como profissão. Porque é preciso, para prender o auditório, convencê-lo de que dizermos o que estamos a dizer é tão natural como respirarmos (…) É preciso ser-se um dador, ser-se um pouco louco, é preciso estar-se nu e não se ter vergonha da nudez.”
Suspeito que a maioria dos professores ririam desdenhosamente deste desafio. Muitos deles vivem diariamente este cenário. Talvez nenhum tenha sequer nos seus delírios mais fantasiosos suposto que poderia levantar-se e conquistar a atenção dos passageiros transmitindo-lhes uma qualquer lição apaixonante. No caso de muitos, é difícil até imaginar que tenham ainda mais do que um interesse vago pelas disciplinas que leccionam, quanto mais a paixão pela paixão que o ensino exige. A verdade é que esta sociedade já não pede grandes sacrifícios aos professores em benefício de um bem supremo, exige-lhe apenas que se sacrifiquem inutilmente. E assim, todos os dias, o fazem. Não deixam de agir como loucos, mas não por destoarem, e sim por obedecerem de tal modo à loucura reinante que se tornam invisíveis, irrelevantes.