Contudo, era impossível imaginar que neste final de ano e em particular hoje quando escrevo a 27 de dezembro, dia do nascimento de Pasteur, estaríamos a iniciar um dos mais ambiciosos processos de vacinação de 450 milhões de europeus, menos de um ano depois do início da pandemia e da descoberta, desenvolvimento e teste de várias vacinas para o SARS-CoV-2. Este momento de esperança é acompanhado por elogios justificados à ciência – políticos e comentadores falam no ano da ciência, discutem o mRNA e a eficácia das vacinas, e identificam como figuras do ano a comunidade científica ou os cientistas na génese da vacina da BioNTech/Pfizer
Este ano evidenciou a capacidade da ciência para responder a desafios globais, partilhando-se informação e avanços à escala mundial, conjugando esforços a nível internacional, um excelente exemplo para respondermos a outros desafios da nossa sociedade. Foi também a demonstração do potencial transformador da ciência fundamental, quer nos princípios científicos que suportam, por exemplo, a vacina que estamos agora usar em Portugal, quer nos inúmeros projectos que permitiram desenvolver mapas de risco, sistemas de testagem, ou modelos epidemiológicos e na formação de equipas de cientistas que apoiam as instituições públicas nesta emergência.
Mas foi também um ano de enormes desafios e incertezas para a ciência. Há menos de um mês, o presidente do Conselho Europeu de Investigação, apelava ao lobby junto dos decisores nacionais e das instituições europeias no desenho do programa de financiamento Horizon Europe para os próximos 8 anos. Só recentemente, a 11 de dezembro, foi possível estabelecer o acordo político para que o programa mais bem sucedido da ciência europeia, as bolsas do Conselho Europeu de Investigação, que aliás financiou os estudos fundamentais da BioNTech para a vacina da Pfizer, visse o seu financiamento reforçado. O debate político em torno do Horizon Europe é o prenúncio das dificuldades que o financiamento da ciência continuará a sentir, em particular na fase de recuperação pós-pandemia em que os ganhos de curto prazo poderão colocar em risco visões mais ambiciosas de médio e longo prazo em que a ciência naturalmente se insere. Os receios que uma parte apreciável da população portuguesa tem relativamente à vacinação [2] são também um motivo de preocupação e um sinal claro de que os valores e os princípios, os sucessos e a exposição mediática da ciência não estão a chegar aos nossos concidadãos e à nossa sociedade.
Para os próprios cientistas os desafios profissionais foram também complexos e, em muitos casos, a ciência foi também realizada em modo de emergência. Se uma componente do trabalho pode ser feita remotamente e individualmente, os avanços científicos também dependem do acesso a laboratórios, da interação e discussão presenciais entre colegas, com alunos e com colaboradores. A ciência também se alimenta de serendipidades, discussões informais e encontros fortuitos incompatíveis com o distanciamento e o isolamento social em que as equipas passaram a trabalhar. Muitos investigadores e estudantes encontraram-se subitamente sem as melhores condições para fazerem ciência, do ponto de vista técnico, de concentração intelectual e equilíbrio emocional, ou até no equilíbrio entre o trabalho e a família, cujas fronteiras ainda mais se desvaneceram, muitas vezes com resultados cómicos quer nos cenários quer nas invasões das reuniões remotas por crianças, animais domésticos ou até familiares mais distraídos.
E por isso uma última crónica de 2020 só poderia ser sobre a esperança da ciência para o nosso futuro colectivo – a esperança de maiores descobertas em 2021, inspirando-nos e respondendo a outros desafios da nossa sociedade de mais longo prazo, e a esperança de um regresso progressivo à normalidade nas nossas equipas, à interação e ao trabalho com os nossos estudantes e colaboradores e às descobertas que aguardam todos os cientistas nos seus laboratórios.
Luís Oliveira e Silva
Professor Catedrático do Departamento de Física
Instituto Superior Técnico
web: http://web.tecnico.ulisboa.pt/luis.silva/
twitter: @luis_os
[1] Jimena Canales, “Bedeviled: A Shadow History of Demons in Science”, Princeton University Press, Novembro 2020
[2] < https://www.rtp.pt/noticias/pais/covid-19-sete-em-cada-dez-portugueses-tem-receio-de-futura-vacina_v1281079>