Ao aceitar escrever o último artigo do ano, tinha algumas possibilidades já alinhadas. Para além do sempre óbvio balanço das descobertas científicas do ano ou da década, planeava escrever sobre os chamados marcianos húngaros, cinco brilhantes cientistas de origem húngara, Von Neumann, Wigner, Von Kármán, Szilard e Teller, que determinaram a ciência, a tecnologia e até a geopolítica do séc. xx, ou, numa alternativa um pouco iconoclasta para a época natalícia, sobre os demónios na ciência e o seu papel nas experiências conceptuais dos físicos e dos matemáticos, a propósito de um brilhante livro recentemente publicado [1].
Contudo, era impossível imaginar que neste final de ano e em particular hoje, quando escrevo, a 27 de dezembro, dia do nascimento de Pasteur, estaríamos a iniciar um dos mais ambiciosos processos de vacinação de 450 milhões de europeus, menos de um ano depois do início da pandemia e da descoberta, desenvolvimento e teste de várias vacinas para o SARS-CoV-2. Este momento de esperança é acompanhado por elogios justificados à ciência – políticos e comentadores falam no ano da ciência, discutem o mRNA e a eficácia das vacinas, e identificam como figuras do ano a comunidade científica ou os cientistas na génese da vacina da BioNTech/Pfizer.
Este ano evidenciou a capacidade da ciência para responder a desafios globais, partilhando-se informação e avanços à escala mundial, conjugando esforços a nível internacional – um excelente exemplo para respondermos a outros desafios da nossa sociedade. Foi também a demonstração do potencial transformador da ciência fundamental, quer nos princípios científicos que suportam, por exemplo, a vacina que estamos agora a usar em Portugal, quer nos inúmeros projetos que permitiram desenvolver mapas de risco, sistemas de testagem ou modelos epidemiológicos e na formação de equipas de cientistas que apoiam as instituições públicas nesta emergência.
Mas foi também um ano de enormes desafios e incertezas para a ciência. Há menos de um mês, o presidente do Conselho Europeu de Investigação apelava ao lóbi junto dos decisores nacionais e das instituições europeias no desenho do programa de financiamento Horizon Europe para os próximos oito anos. Só recentemente, a 11 de dezembro, foi possível estabelecer o acordo político para que o programa mais bem-sucedido da ciência europeia, as bolsas do Conselho Europeu de Investigação, que aliás financiou os estudos fundamentais da BioNTech para a vacina da Pfizer, visse o seu financiamento reforçado. O debate político em torno do Horizon Europe é o prenúncio das dificuldades que o financiamento da ciência continuará a sentir, em particular na fase de recuperação pós-pandemia, em que os ganhos de curto prazo poderão colocar em risco visões mais ambiciosas de médio e longo prazo em que a ciência, naturalmente, se insere. Os receios que uma parte apreciável da população portuguesa tem relativamente à vacinação [2] são também um motivo de preocupação e um sinal claro de que os valores e os princípios, os sucessos e a exposição mediática da ciência não estão a chegar aos nossos concidadãos e à nossa sociedade.
Para os próprios cientistas, os desafios profissionais foram também complexos e, em muitos casos, a ciência foi também realizada em modo de emergência. Se uma componente do trabalho pode ser feita remota e individualmente, os avanços científicos também dependem do acesso a laboratórios, da interação e discussão presenciais entre colegas, com alunos e com colaboradores. A ciência também se alimenta de serendipidades, discussões informais e encontros fortuitos incompatíveis com o distanciamento e o isolamento social em que as equipas passaram a trabalhar. Muitos investigadores e estudantes encontraram-se subitamente sem as melhores condições para fazerem ciência do ponto de vista técnico, de concentração intelectual e equilíbrio emocional ou até no equilíbrio entre o trabalho e a família, cujas fronteiras ainda mais se desvaneceram, muitas vezes com resultados cómicos quer nos cenários quer nas invasões das reuniões remotas por crianças, animais domésticos ou até familiares mais distraídos.
E, por isso, uma última crónica de 2020 só poderia ser sobre a esperança da ciência para o nosso futuro coletivo – a esperança de maiores descobertas em 2021, inspirando-nos e respondendo a outros desafios da nossa sociedade de mais longo prazo, e a esperança de um regresso progressivo à normalidade nas nossas equipas, à interação e ao trabalho com os nossos estudantes e colaboradores e às descobertas que aguardam todos os cientistas nos seus laboratórios.
[1] Jimena Canales, “Bedeviled: A Shadow History of Demons in Science”, Princeton University Press, Novembro 2020
[2] < https://www.rtp.pt/noticias/pais/covid-19-sete-em-cada-dez-portugueses-tem-receio-de-futura-vacina_v1281079>
Professor catedrático do Departamento de Física Instituto Superior Técnico
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