O que é a morte? O que torna a morte um mal? Mas será a morte um mal? Estes são os títulos de três diálogos escritos pelo filósofo Pedro Galvão que vale a pena ler nesta ocasião em que se aproxima o dia que a Igreja Católica celebra como Dia dos Mortos ou dos Fiéis Defuntos. Os diálogos integram o livro Três Diálogos Sobre A Morte, ilustrado por Frederico Rogeiro (ao estilo da banda desenhada). É o mais recente volume da coleção “Filosofia Aberta” da Gradiva, dirigida por Aires Almeida. O livro é dedicado a Jeff McMahan, professor de Filosofia na Universidade de Oxford e autor de The Ethics of Killing: Problems at the Margins of Life (Oxford University Press, 2002), o filósofo moral vivo que o autor mais admira.
Galvão é professor de Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, onde ensina Ética e Filosofia Moderna. Ganhou em 2014 o Prémio de Tradução Científica e Técnica em Língua Portuguesa da FCT pela tradução de um livro de Henry Sidgwick (Os Métodos da Ética, Fundação Gulbenkian, 2013). Outros autores que traduziu foram: David Hume (Ensaios Morais, Políticos e Literários, Imprensa Nacional, 2002; Tratados Filosóficos, idem; e Obras sobre Religião, Fundação Gulbenkian, 2005), John Stuart Mill (Utilitarismo, BookBuilders, 2020), James Rachels (Problemas da Filosofia, Gradiva, 2010) e Peter Singer (Escritos sobre uma Vida Ética, D. Quixote, 2008). Mas são sobretudo de destacar os seus próprios títulos: um de grande circulação (encontra-se nos supermercados), Ética Com Razões (Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015), e outro mais difícil de encontrar, o romance de fantasia filosófica A Última Vida de Sir David (Imaginauta, 2020). Coordenou dois volumes sobre questões de ética prática: A Ética do Aborto (Dinalivro, 2005) e Os Animais Têm Direitos? (idem, 2011). É ainda coautor de vários livros didáticos.
Não há muitos livros sobre a morte porque temos tendência a ignorar o tema. Na minha estante está a Enciclopédia da Morte e da Arte de Morrer, coords. Oliver Leaman e Glennys Howarth (Quimera, 2004). Mas aí só há uma pequena entrada sobre a filosofia da morte, porque o resto é biologia, medicina, antropologia, sociologia, história e religião. Acrescento as Actas do i Congresso sobre A Morte: Leituras da Humana Condição (2 vols., Paulinas, 2020), que contou com mais de uma centena de comunicações das mais variadas áreas.
Na nota introdutória, o autor explica as razões dos seus três diálogos: “Uma delas, metafísica, é a de determinar o que é isso da morte. Fará sentido identificar a morte de uma pessoa – de uma pessoa humana – com a morte do seu organismo, ou será essa identificação um erro? O primeiro diálogo deste livro centra‑se nesta questão”. As outras têm a ver com o mal da morte: “Costumamos presumir que, pelo menos geralmente, a morte é um grande mal para quem morre. Mas será isto verdade? E, se for, em virtude de que factos será a morte um mal? Eis outra suposição comum: a mortalidade é uma condição deplorável. Terá razão quem pensa assim?”
No livro há um morto, o general Grant, que deixa como último desejo à sua amiga Lady Lucy a discussão filosófica de três temas sobre a morte. O diálogo é um género literário e filosófico muito recorrente: veja-se, por exemplo, a Recreação Filosófica do Padre Teodoro de Almeida (coordenei a edição recente: Obras Pioneiras da Cultura Portuguesa, Círculo de Leitores, 2017). São três os personagens principais que Galvão põe a dialogar sobre a morte, como na obra do padre Almeida. O autor, que se deve ter divertido ao criá-los, apresenta-os assim:
“O mais velho é o Prof. Pohl, um médico alemão, agora distinto professor de Filosofia Natural e Experimental. Descendo à meia-idade, encontramos o Rev. Royce, escocês, arguto defensor da ortodoxia contra as opiniões dos livres-pensadores, porém bastante desprovido de animosidade e sempre disponível para uma troca franca de ideias. Lady Lucy estranhou a última escolha: Pierre Perrier, um jovem literato francês muito dado à boémia e autor de um par de peças teatrais, ainda por representar, bem como de alguns panfletos anónimos que indispuseram meia cidade”.
O primeiro diálogo abre com o velho problema do corpo e da alma. O professor resolve-o à maneira de Descartes, separando-os, o reverendo defende a imortalidade da alma e o literato discorre sobre a questão da identidade humana (vários filósofos, clássicos ou contemporâneos, são chamados à colação por um número à margem, que remete para referências finais).
Diz o Prof. Pohl. “O que é a morte, não é? Pois bem, a morte não é mais que o fim da nossa existência. Um organismo, um animal humano, se é da morte humana que estamos a falar, passa a cadáver. É isso a morte. Que mais há a dizer sobre o assunto?”
Contrapõe o Rev. Royce: “Com uma ou outra qualificação, na verdade até concordo. A morte do corpo não é mais que o fim da nossa existência terrena. Todavia, não incorro no erro de nos identificar com meros animais, com corpos destituídos de alma. Enfim, esta é uma velha dissensão que mantenho com o Prof. Pohl”.
Declara o Sr. Perrier: “Se queremos descobrir realmente no que consiste a morte, é forçoso que nos concentremos na questão da identidade pessoal ao longo do tempo. O que fará de mim a mesma pessoa que fui ontem, na semana passada, há um ano, há uma década? Durante todo esse período sofri mudanças incontáveis e, no entanto, aqui estou. Sobrevivi! Contudo, certas mudanças ditarão a minha morte. Mas quais?”
No segundo diálogo há um trecho muito curioso em que surge uma tentativa de quantificar o mal da morte (coisa que as companhias de seguros fazem): “O Prof. Pohl cala-se de repente. Quando o Sr. Perrier se prepara para lhe fazer uma crítica, silencia-o esticando o braço na sua direção e inclinando a mão bem para cima. Fica algum tempo assim, pensativo, até que se dirige desenvoltamente para o quadro, onde escreve o seguinte: VM = VA-VH. ‘Como sabem, sou um amante da simplicidade e do rigor. Eis então o meu comparativismo, como o Rev. Royce desejou chamar‑lhe, numa fórmula sucinta, absolutamente límpida. VM é o valor de uma morte, que será positivo, caso esta seja boa, ou negativo, se esta for má, o que ocorrerá com maior frequência. VA é a quantidade de felicidade que a pessoa fruiu ao longo da vida que efectivamente teve, isto é, ao longo da sua vida actual. Por fim, VH respeita a uma vida hipotética dessa pessoa, mais precisamente à vida que ela teria tido se não tivesse morrido como morreu. Em VH teremos a quantidade de felicidade que a pessoa em causa frui em toda essa vida, mais extensa no tempo do que a actual. Tanto em VA como em VH, usemos valores superiores a zero para vidas felizes, e valores abaixo de zero para vidas miseráveis”.
O final do segundo diálogo revela bem a capacidade literária do autor, expressa em fina ironia:
“O Rev. Royce levanta‑se também, no que é imitado por Lady Lucy. Todos vão conversando alegremente enquanto se preparam para deixar a biblioteca. Então, mesmo no limiar da porta, o Sr. Perrier estaca. Parece consternado.
– O General Grant havia de gostar tanto de nos fazer companhia…
– Ora, Pierre, se ele não tivesse morrido, hoje não nos teríamos reunido aqui para discutir a morte e, portanto, não estaríamos agora a caminho da sala de jantar.
– Professor!
– Sim, Reverendo? Não me parece que tenha dito alguma falsidade…
– Pois não -, diz Lady Lucy. – E o General Grant, não duvide, havia de ter gostado do seu comentário”.
No terceiro diálogo, que trata a questão da imortalidade (“um tédio” para o Sr. Perrier), são apresentados dois argumentos famosos na história das ideias sobre a morte. Um deles é de Epicuro, o filósofo grego dos séculos iv e iii a.C., que, na sua Carta a Meneceu, nos sossega: “Portanto, o mais atemorizador dos males, a morte, nada é para nós, porque quando existimos, a morte não está presente, e quando a morte está presente, não existimos. Deste modo, ela nada é nem para os vivos nem para os mortos, porque os primeiros não a têm e os últimos já não existem”. E o outro é de Lucrécio, o filósofo romano do séc. i a. C., expresso no poema “De Rerum Natura” ou “Da Natureza das Coisas” (nome do blogue que mantenho há anos): “Vê, olhando para trás, como nada significou para nós toda a porção de eternidade que se passou antes do nascer. Eis o espelho que a Natureza nos apresenta do tempo futuro, do que virá depois da nossa morte. Surge nisto algum horror, alguma tristeza? Não é tudo muito mais seguro do que o sono?” (há uma edição recente: Relógio d’Água, 2015, que Galvão não usa).
Não sendo tratada no livro, vale a pena referir a relação profunda que há entre o sexo e a morte. Jacques Ruffié aborda-a no seu livro O Sexo e a Morte (D. Quixote, 1987): “O sexo e a morte são dois tributos que pagamos ao progresso evolutivo. São dois fenómenos complementares, mas surpreendentemente contrastados. O primeiro ocorre na alegria, no prazer e na esperança; o segundo no sofrimento, no horror e no vazio”. E, noutro passo: “A morte é um fenómeno biologicamente necessário, sem o qual a sexualidade estaria sem objetivo”.
Em suma: um livro muito estimulante e agradável de ler. Ah, esquecia-me de dizer que nele há um gato. Um quinto personagem é Sir Arthur, o gato de Lady Lucy, que fecha os três diálogos. No fim, ao agitar-se por detrás de um retrato, que jaz no chão, do defunto, leva por um momento a pensar que os mortos podem comunicar com os vivos. Mas ali só havia um gato e mais nada…