“A vida não é o que parece”. Ao longo de uma hora de conversa, Ana Rocha de Sousa vai regressando a esta ideia a espaços. Para falar de si, do percurso que, afastada de holofotes, foi construindo até em setembro ter regressado ao pequeno ecrã, não como atriz mas como notícia, como realizadora do filme português seis vezes premiado em Veneza, mas também da realidade que retrata em Listen: a das famílias injustiçadas pela mão pesada e cega do sistema de proteção de menores britânico. O seu lugar no cinema encontrou-o naquela que pode ser também a sua função:_a de arma política. “Entrego-me a este filme não tentando criar uma revolução contra tudo e contra todos, mas chamando pelo menos a atenção para que isto acontece. E peço a todas as pessoas que tiverem dúvidas sobre isso que pesquisem, porque o que vão encontrar é devastador, profundamente devastador”. A entrevista foi feita na segunda pessoa.
Comecemos mesmo pelo início, pelo dia em que te cruzaste com a notícia que te levou a fazer este filme…
Tinha acabado o mestrado em cinema em dezembro de 2013 e tinha decidido parar durante um tempo, porque estava grávida. A minha filha nasceu em março de 2014. No início de 2016 – ela era pequenina ainda – confrontei-me com duas coisas: a questão de precisar de voltar àquilo que era o meu projeto de cinema, porque tinha abdicado de tudo e mais alguma coisa para ir estudar para fora. Portanto, tinha de recomeçar esse processo para que não ficasse pendurado. Já tinha sido mãe, tinha dedicado aquele início essencial à maternidade e tinha de voltar a trabalhar. E estava nessa busca quando me apercebo de um caso real, uma notícia real, de uma mãe portuguesa a viver no Reino Unido a quem retiram um bebé de dias.
Que veio desenterrar todo este tema, esta questão, porque esse caso estava muito longe de ser único…
Esse processo aconteceu comigo simultaneamente. Não esperei para saber de mais casos. Aquele foi o que fez com que começasse a procurar e a encontrar e a perceber que isto acontece efetivamente a muitas famílias, inclusivamente inglesas. A primeira reação foi “isto não é possível”. E há muita gente que fica no “ai, não é possível”; eu estranhei e continuei e percebi que efetivamente acontece. Que há muitas nuances, muitas questões que são muito questionáveis.
Nesta lógica da proteção do superior interesse da criança e de a querer proteger tanto que…
… que se entra num extremo em que pessoas absolutamente inocentes são levadas pela maré.
E em que o superior interesse da criança não está já, de forma alguma, a ser protegido…
Pelo contrário. Porque o superior interesse da criança também pode ser na grande maioria dos casos que aquelas famílias pudessem ser apenas apoiadas e restabelecidas e ajudadas pela Segurança Social, em vez de acusadas. Esse apoio poderia ser absolutamente fundamental e conciliador nalguns casos. A verdade é que não é essa a postura. Hoje em dia, a postura do sistema britânico é precisamente a retirada imediata [das crianças aos pais] mediante previsões de futuros danos físicos ou psicológicos…
Hipotéticos…
Hipotéticos, com base no futuro. Nunca vi em parte nenhuma do mundo alguém ser condenado, julgado, o que for, por crimes que ainda nem sequer ocorreram, só pela possibilidade de eventualmente, um dia, quem sabe, talvez. Isto foi o que me fez fazer este filme. Acho que se percebe que a partir do momento em que nos confrontamos com uma lei assim torna-se muito complicado porque basta um relatório de um assistente social para um juiz no Tribunal de Família, porque mais de 90% das vezes o juiz do Tribunal de Família segue as indicações dos assistentes sociais… acho profundamente chocante. Ainda para mais quando começamos a perceber que há assistentes sociais que paralelamente têm agências de adoção, um conceito que nós nem sabemos o que é. Alguma vez em Portugal alguém sabe o que é uma agência de adoção? Sabemos o que são agentes de atores. E rapidamente se percebe porque é que lá sabem: porque isto envolve dinheiro, porque há famílias que são pagas pelo Estado para tomar conta daquelas crianças. E só isso já me levanta outras questões. O meu filme nem sequer vai a esse limite de falar dessas questões…
… que acabam por estar presentes, de alguma forma…
Estão lá, são referidas, mas o filme nem sequer se foca numa situação…
… mas percebe-se que há todo um sistema a alimentar-se disto.
Exato.
E que há pessoas que ganham…
Há pessoas a ganhar com isto. Não é uma coisa que explore e há uma razão para não explorar isso: iria ser acusada muito facilmente e muito rapidamente de uma teoria da conspiração. E, mesmo não sendo, acho que é preciso ir-se a uma coisa de cada vez. Isto acontece, isto existe, e existe com famílias absolutamente inocentes, famílias que são apanhadas no meio de um turbilhão que vai ganhando uma forma cada vez maior. Tentei que o filme não fosse panfletário mas que, ao mesmo tempo, seja honesto com aquilo que acontece. E há coisas em que não posso defender o sistema porque não acho que seja defensável.
A verdade é que é difícil acreditar-se num sistema que age desta forma.
Mais do que falar com pais e mães, isto percebe-se falando com profissionais que trabalham na área. Percebe-se quando se vê uma assistente social a dizer: “Desisti do meu trabalho porque percebi na pele o que estava a fazer aos outros. Até ali, limitava-me a fazer o trabalho que tinha de fazer”.
É mesmo uma história que conheces?
Sim. Há uma assistente social que desistiu do seu trabalho precisamente porque foi mãe e, no seu sentido de responsabilidade e de maternidade, sentiu que andava triste, foi ao médico e desabafou com o médico que tinha receio de estar a entrar numa depressão pós-parto. Só por verbalizar isto, ficou sinalizada.
E é esse momento, em que se coloca tudo em causa quando nos toca a nós.
Sabendo com toda a convicção e toda a certeza que eras pura e simplesmente uma mãe preocupada com a tua saúde mental.
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