Desta vez não há Moriarty nem Dr. Watson. E Sherlock Holmes acaba por ser praticamente um acessório na trama. Millie Bobby Brown (a Eleven de Stranger Things) é Enola Holmes, a protagonista do filme homónimo da Netflix estreado na semana passada e que se tornou o mais recente sucesso da plataforma de streaming, ocupando as primeiras posições da lista dos filmes mais vistos um pouco por todo o mundo.
O filme, que nos chega com a direção de Harry Bradbeer, foca-se no desabrochar de Enola, acabada de fazer 16 anos, e que depois de ter passado uma infância atípica a ser treinada física e mentalmente pela mãe, Eudoria (Helena Bonham Carter), se vê subitamente abandonada pela progenitora – uma partida que traz água no bico e também os dois irmãos mais velhos, Sherlock, interpretado por Henry Cavill, e Mycroft, o ator Sam Claflin, para o enredo.
Os pormenores sobre a vida privada de Sherlock Holmes não estão fechados nos livros de Conan Doyle e dessa brecha criativa se aproveitou a autora norte-americana Nancy Springer, a responsável pela criação de Enola, uma adolescente com uma mente brilhante e que se prepara para seguir as pisadas do mais famoso detetive do mundo: o seu irmão. As aventuras da jovem deram origem a uma série de livros e é nesse périplo que se baseia o filme da Netflix.
Millie Bobby Brown já partilhou nas redes sociais que está feliz com o lançamento do filme, contando que nos “últimos três ou quatro anos” nem podia dizer o nome da personagem. “Nancy Springer escreveu uma série de livros sobre uma jovem que tenta encontrar a mãe num mundo caótico em seu redor. Eu queria dar vida a esta história porque sentia que também estava num mundo caótico”, escreveu a atriz de 16 anos e que, desde que se estreou em Stranger Things, se tornou um verdadeiro fenómeno da cultura pop. “Este filme ajudou-me a encontrar-me e inspirou-me a nunca ter medo de entrar em conversas sobre o meu futuro, o nosso futuro, por causa da minha idade ou sexo. A Enola conta a sua história da maneira que deseja e essa narrativa forte terá para sempre um lugar especial no meu coração”, concluiu.
Já a Netflix, a julgar pelo sucesso da estreia, também junta assim mais uma aposta ganha ao seu catálogo. E a escritora Nancy Springer vê as suas histórias conseguirem uma projeção sem precedentes. Mas não há bela sem senão e, afinal, há gente descontente: nada mais nada menos que os herdeiros de Arthur Conan Doyle (1859-1930). A família do escritor britânico processou a Netflix, tendo dado entrada com um processo de violação de direitos de autor no tribunal federal do Novo México, em junho deste ano. O processo, que não está fechado, chegou a ameaçar o lançamento da longa-metragem, que iria estrear-se inicialmente nos cinemas, mas cujos direitos foram vendidos pelo estúdio Warner Bros à Netflix em abril, devido à pandemia.
Domínio público Para perceber a pretensão há que voltar a 2013, ano em que, numa disputa idêntica, Leslie Klinger, um editor e escritor que queria lançar uma série de histórias originais de outros autores inspiradas em Sherlock Holmes, se bateu num tribunal do Illinois (Chicago) com os herdeiros do escritor britânico, que por sua vez exigiam o pagamento de direitos de autor. No Reino Unido, todas as histórias de Conan Doyle fazem parte do domínio público, mas tal não acontecia nos EUA.
O juiz Ruben Castillo, que dirigiu o processo, determinou que apenas as dez últimas histórias publicadas por Conan Doyle estavam protegidas pelos direitos de autor e, ainda assim, esses direitos referiam-se apenas aos elementos da própria trama, e não aos personagens em si. Os herdeiros defendiam que os direitos de autor deveriam ser aplicados quer à história quer aos personagens, mas perderam o processo. Depois desta decisão, recorreram ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos, que recusou julgar o caso.
Uma questão de simpatia Ora, são precisamente esses últimos dez livros, editados entre 1923 e 1927, que vêm novamente à baila. Sir Arthur Conan Doyle retratou neles traços da personalidade de Sherlock Holmes que os herdeiros alegam agora ter sido usados no filme Enola Holmes. O Sherlock interpretado por Henry Cavill (Super-Homem, The Witcher) mostra um lado suave e pessoal, e os descendentes de Conan Doyle consideram que essas características fazem parte dos últimos livros. “Holmes ficou mais simpático. Conseguiu estabelecer amizades. Podia expressar emoções. Começou a respeitar as mulheres”, diz o processo apresentado no tribunal federal, acrescentando que Nancy Springer copiou ideias originais de Conan Doyle. “Entre outros elementos copiados, os romances de Springer fazem uso extensivo da transformação do Holmes de Conan Doyle de frio e calculista em simpático, respeitoso e amigável nos seus relacionamentos”, alegam, afirmando que a humanização da personagem levada a cabo por Arthur Conan Doyle decorreu das próprias vivências pessoais do escritor, que tinha perdido o irmão e o filho mais velho na i Guerra Mundial.
Para lá da escritora e da Netflix, o processo dirige-se ainda à Penguin Random House, editora dos livros, e à produtora do filme, a Legendary Pictures. Em 2015, a Miramax viu-se a braços com um processo semelhante pelo filme Mr. Holmes, de Bill Condon. A película retrata o período de reforma do detetive – que estaria, para os herdeiros, ainda sujeito aos direitos de autor. Neste caso, ambas as partes chegaram a acordo, mas os valores permaneceram em segredo – uma história que poderá repetir-se.