Aos costumes disse nada

Aos costumes disse nada


Durante uns tempos passei longas noites com Vicente Jorge Silva no fecho da Revista. Quando acabava de escrever a sua crónica, já o dia clareava e íamos a uma pastelaria comprar bolos.


Depois de ter feito uma curta carreira de estafeta no Expresso fui promovido a secretário de redação da secção Nacional, nos finais dos anos 80, cujo editor era o João Carreira Bom, que tinha no José Mário Costa o seu braço-direito – foi o Zé Mário que me incentivou a escrever os famosos “Caso a Caso”, uma rubrica do Primeiro Caderno.

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Naquela altura, os textos ainda eram criados nos teclados das velhinhas máquinas de escrever e enviados por fax para a CEIG, no Dafundo, onde depois eram batidos, passando a seguir pelo processo de linótipo e acabando na impressão. Como era eu que fazia o fecho pela noite dentro de quinta para sexta, enviando os textos e conferindo se algum não tinha chegado à CEIG, um dia ocorreu um problema qualquer na Revista, que fechava na noite anterior, e o Vicente chamou-me e disse que queria que eu, além do Nacional, fizesse o fecho da Revista. Para isso, pagava-me cinco contos, o equivalente a 25 euros. Foram noitadas épicas em que o Torcato Sepúlveda, às vezes, quase dava em doido porque o Vicente, quando não gostava de algum texto que recebia de um jornalista enviado a alguma parte do globo, decidia começar a rasgá-lo. Penso que o Vicente, no fundo, o fazia por gozo, pois já sabia que o papel que tinha nas mãos era o único que podia ser publicado no jornal.

Nessas noites passava muita gente pela redação e o Vicente adorava picar alguns dos jornalistas ou críticos de cultura. Recordo-me de uma noite o ouvir chamar pelo Alexandre Pomar e, quando este apareceu no corredor, o Vicente pegou num pedaço de esferovite e enfiou-o na cabeça, dizendo que tinha acabado de fazer uma escultura do Pedro Cabrita Reis. Não faltava humor naquelas noites, cruzado com alguma agitação. Às quartas-feiras, a equipa que o acompanhava costumava ir jantar ao restaurante Xenu, mesmo ao lado do 37 da Duque de Palmela, onde ficava o Expresso, e o senhor Saraiva, o dono, fazia uma vénia do tamanho do peixe que o Vicente escolhia para si e para a equipa.

Muitas noites, quando os colaboradores que iam entregar os textos se iam embora, o Vicente ficava sozinho e pedia para eu lhe fazer companhia. Nessa época, a redação da Revista estava no sótão e o silêncio fazia alguma confusão à noite. Eu dormitava num sofá enorme que havia e, quando o Vicente acabava de escrever a sua crónica, eu tratava de a enviar por fax para a CEIG. Depois, por volta das sete ou oito da manhã, apanhávamos um táxi e eu deixava-o à porta de uma pastelaria da Praça do Chile onde ele comprava caixas de bolos para levar para casa. Algumas vezes acompanhei-o no “pequeno-almoço” e era um fartote de rir, porque o Vicente tinha um vozeirão que enchia a pastelaria.

Foram muitos fechos da Revista, pela noite dentro, e muitas histórias me ficaram na memória. Como tinha um feitio frontal, o Vicente, às vezes, levava algumas pessoas ao desespero, e quando essas pessoas se revoltavam, passado pouco tempo, ele ria-se do que tinha acontecido. Outras vezes pedia-me para arranjar alguma bebida para se fazer um brinde à “pacificação” conquistada e todos ficavam tranquilos.

Mas há um episódio que nunca esquecerei. Como é do conhecimento público de quem acompanha os jornais, o Vicente tratava da Revista do Expresso, o José António Saraiva do Primeiro Caderno e o Jorge Wemans da Economia. Quando, numas férias do Zé António, o Vicente ficou a fechar o jornal, eu estava a ajudá-lo nas tarefas administrativas – a Lucília, então secretária do Zé António, também estaria de férias – e controlava os textos que já tinham ou não ido para a gráfica. Mas também fazia a ligação do Vicente com o resto da redação sempre que ele queria tirar alguma dúvida. Penso que esse fecho se tornou para mim uma espécie de guião para o mundo do jornalismo. Nessa semana, penso que um dos temas da atualidade era a atribuição de frequências nacionais às rádios Correio da Manhã e TSF. Se a memória não me atraiçoa, a TSF foi preterida no primeiro concurso e a informação que passaram ao Vicente tinha alguma imprecisão. Este, ao seu estilo, entrou na sala do Nacional aos gritos, exigindo que lhe explicassem por que razão a notícia não casava totalmente com o título que lhe tinham sugerido umas horas antes – tudo não passava de um pequeno pormenor. O José Fragoso, atual diretor de programas da RTP, colaborava com o jornal à peça e não estava habituado àquela agitação, e ficou com vontade de não voltar a pôr lá os pés, chegando mesmo a ir-se embora nesse dia. O José Mário é que enfrentou o Vicente e aquilo aqueceu um pouco. Visto que se tinha excedido um pouco com um “estranho”, o Fragoso, o Vicente piscou-me o olho e riu-se como uma criança que é apanhada a fazer uma diabrura. No final do dia, como sempre, estava tudo na paz do Senhor: o Vicente e o José Mário já sorriam com o episódio e o José Fragoso acabaria por regressar na segunda-feira, depois de o Zé Mário o ter elucidado sobre a filosofia da casa no que ao Vicente dizia respeito. O Vicente era isso, um homem explosivo mas que, ao mesmo tempo, era o maior agregador de vontades quando espalhava charme, e não guardava rancor – tanto assim era que muitos daqueles com quem o Vicente tinha as maiores discussões públicas acompanharam-no na ida para o Público.

Quanto ao jornalista, bebi dele a vontade de motivar equipas, de acreditar que é possível fazer melhor e uma irreverência e liberdade que não têm preço. Talvez por isso, uma das crónicas dele de que gostei mais no Expresso foi uma que tinha o título “Aos Costumes disse Nada”.