Palavra de Viajante, Rua de São Bento, 34, Lisboa
Ana Coelho, 53 anos, livreira há 9 anos
Para uma livraria dedicada a viagens, o confinamento representa uma ameaça demasiado gritante: os guias de viagem e os mapas ficam nas prateleiras; em vez de aviões, o que paira no ar é a incerteza sobre a possibilidade de realizar viagens num futuro próximo. Então, a literatura de viagem e dos lugares pode ser o antídoto perfeito.
No comércio local, o contacto com o cliente é mais directo do que numa loja de uma grande cadeia, o que permite uma relação pessoal que ultrapassa em muito a mera transacção económica da compra anónima, por vezes de mero impulso. Desta forma, as pessoas envolvem-se na vida da livraria, empenhando-se por isso em contribuir para que ela se mantenha de porta aberta.
Foi sobretudo graças aos clientes habituais que conseguimos sobreviver a estes tempos difíceis, pois mantiveram encomendas e aquisições. Não fazendo descontos nem feiras do livro, não tendo site nem vendas online, reforçámos os contactos e a promoção via telefone e email, Facebook e envio de newsletters.
Por fim, foi muito importante a constituição da ReLI, pois permite ganhar escala, enfrentar os grandes grupos e a sua concorrência desleal, vincar a diferença e partilhar experiências.
GATAfunho, editora e livraria independentes
Centro Histórico de Oeiras
Editora: 16 anos.
Livraria: 8 anos.
Ana Faria e Inês Araújo (mãe e filha, 61 e 27 anos)
Portas fechadas no início da pandemia. Actividades canceladas. De dois espaços, ficámos com um e, mesmo esse, fechado.
Mantivemos a «notícias do gato» e demos maior atenção à «loja online», continuando o contacto com os clientes, às vezes só para saber como todos íamos estando. As vendas «online» proporcionaram a continuidade de vendas a alguns clientes habituais, contacto com novos clientes – nacionais e no estrangeiro.
Pela primeira vez, em 15 anos, não participaremos na FLL. Não sentimos qualquer apoio por parte da APEL. Não houve informação sobre as novas regras para realização da FLL 2020, nem incentivo à participação. Alternativa: «festa do livro online e na livaria».
Muito correu mal – faltou apoio e o recebido tardou muitíssimo e foi parco.
Problemas que persistem – incumprimento da lei do preço fixo, fechando-se os olhos a descontos ao cliente final superiores aos descontos dados aos pequenos livreiros pelas editoras; rendas altíssimas, sem qualquer apoio ou regulamento, enfim…
A RELI, para nós, é uma luz ao fundo de um comprido túnel: todos temos voz, todos são convidados a participar, a trabalhar, a incentivar, independentemente da distância e da diversidade.
Mas o pior de tudo é que nos faltou o convívio directo com os clientes, os bons dias de quem passa, as risadas dos mais
José Pinho – Livreiro há 21 anos
A Ler Devagar foi fundada há 21 anos no Bairro Alto em Lisboa. Mais tarde, em 2007 fundou a Fábrica Braço de Prata e em 2009 instalou-se na LX Factory. Em 2012 criou as livrarias da Vila Literária de Óbidos.
A pandemia veio interromper um percurso ascendente que a Ler Devagar vinha experimentando nos últimos anos, tanto em Lisboa (na LX Factory) como em Óbidos, invertendo a tendência crescente de venda de livros novos e usados em português e em outras línguas. As vendas nos últimos 5 meses (Março a Julho) baixaram em média 85%, notando-se uma ligeira retoma em Agosto (-60%).
Durante o período de confinamento o Estado não assumiu por inteiro os encargos decorrentes da sua decisão de encerramento obrigatório das livrarias e não foi o apoio do Ministério da Cultura que veio atenuar os prejuízos das livrarias independentes, nem o da Ler Devagar em particular. Revestido da forma de subsídio a fundo perdido, tratou-se afinal de uma compra de livros. Esse facto fez com que, para os livreiros que o receberam – e a livraria da LX Factory nem sequer foi contemplada com essa “benesse” por não ser uma micro empresa – esse “apoio” se tenha traduzido num ganho de apenas 600 a 800 euros, conforme o desconto obtido na compra dos livros aos editores.
Ao longo dos meses, a Ler Devagar manteve os seus 20 livreiros em funções suportando a quase totalidade dos encargos, uma vez que os layoffs parciais têm contribuído com apenas cerca de 30% dos custos com salários.
Livraria SNOB
Existe desde 2013, em Guimarães de depois Lisboa, online e presencialmente em livraria física, feiras do livro e salas de estar de alguns leitores.
A SNOB sempre teve muitas caras, vendemos livros online, presencialmente, em livraria física ou em feiras do livro. Aquilo que tivemos de fazer em tempo de pandemia foi aproximarmo-nos mais dos nossos leitores reais, aumentar e acarinhar essa proximidade. Um bom leitor precisa sempre de livros, nenhuma crise o demove. Por vezes a proximidade com um leitor nem se traduz em vendas directas ou imediatas, a proximidade tem também lugar numa pandemia e numa crise financeira quando é importante continuarmos a falar de livros, conversar com os livreiros, e os livreiros conversarem com editores e leitores, mesmo com menos vendas. Durante toda a pandemia a SNOB continuou a vender novidades de editores independentes. Não perdeu o contacto diário com os clientes. Na pandemia apercebemo-nos de uma característica fundamental do ser independente – a nossa possibilidade de nos reinventarmos. Não há medos nem impossibilidades nem obrigações. Podemos escolher o caminho que quisermos e arriscar. Só a verdadeira independência permite este tipo de risco.
Livraria Letra Livre, Lda
Três Sócios: Carlos Bernardo, Eduardo de Sousa, Eugénia Gomes
Colaboradora: Andreia Baleiras
Livraria aberta desde 2006
CONTINUOU A LER-SE NO PERÍODO DE CONFINAMENTO!
Durante o confinamento apenas tivemos vendas através do nosso site e do facebook. Houve grande envolvimento dos nossos clientes habituais, preocupados em que a livraria continuasse a funcionar ainda que em moldes diferentes. Apostámos mais no facebook com listagens semanais de livros e boletins temáticos. Houve naturalmente uma quebra significativa mas, apesar de tudo, conseguimos manter o contacto com os nossos clientes habituais e conquistar novos clientes pela Internet.
Com a criação da RELI, em que estivemos directamente envolvidos junto com outros colegas livreiros e alfarrabistas, apercebemo-nos que poderemos ser bem mais fortes se as pequenas e independentes livrarias se juntarem e desenvolverem uma acção em comum. Ficámos a conhecer-nos melhor assim como os problemas de cada um. Como se diz no manifesto da RELI: « É uma associação livre de apoio mútuo composta por livrarias de todo o território português sem ligação a redes e cadeias dos grandes grupos editoriais e livreiros». Juntos teremos mais força na exigência de um desconto livreiro único que permita a todas as livrarias terem as mesmas condições comerciais, na defesa da lei do preço fixo e de uma política pública do livro que leve à aquisição regular de livros por parte do estado e das bibliotecas junto das livrarias independentes. Muita coisa há a fazer ainda mas acreditamos que um grande passo foi dado, a visibilidade desta Rede de Livrarias Independentes, que reúne livrarias de todo o país, e as propostas levadas ao Ministério da Cultura deram já alguns resultados positivos a favor das livrarias independentes.
A APEL manteve-se, mesmo neste período de crise, afastada dos problemas das pequenas livrarias (e editoras) independentes, não tendo desenvolvido nenhuma acção relevante na defesa do sector, principalmente daqueles que mais dificuldades têm de resistir à crise económica provocada pela pandemia, que é ampliada por uma crise mais profunda no sector do livro que já vem de trás. Quanto à APEL mantém-se há bastante tempo centrada na defesa dos grandes grupos editoriais e livreiros e dos seus interesses no campo do livro escolar que é o mais importante negócio do ramo.
Lisboa, 25.08.2020
A Leituria, fundada em 2015, é a pele de Vitor Rodrigues, 51 anos, livreiro há 24.
Creio que vivemos uma Idade do Gelo cultural, e não me refiro à pandemia, mas sim a um fenómeno de concentração económica crescente, desde há décadas, que deixa pouco espaço para os pequenos intervenientes. Por isso as estruturas têm-se tornado cada vez mais pequenas e mais leves: ganham agilidade e capacidade de adaptação. A Leituria passou dum espaço de 220 m2, numa rua nobre, para dois minúsculos espaços que, juntos, não totalizam sequer 50m2, numa rua periférica. Apesar desse emagrecimento, teve também que mudar de dieta. Por gosto e por necessidade, tornou-se uma livraria de usados, com excepção dos livros novos de pequenas editoras, que contribuem para a sua identidade, completamente arredada das grandes editoras actuais. Somos, como muitos, pequenos mamíferos que, para sobreviverem e prosperarem, precisam de se ajudar mutuamente e viver nas sombras. O tempo dos dinossauros, mais tarde ou mais cedo, chegará ao fim.
Livraria Fonte de Letras, Évora – 20 anos em 2020
Helena Girão Santos, 55 anos, sócia-gerente e livreira
CONTINUOU A LER-SE NO PERÍODO DE CONFINAMENTO!
A Fonte de Letras decidiu que não poderia parar. De um dia para o outro, criámos uma campanha que divulgámos nas redes sociais e por newsletter: "BASTA COMPRAR UM LIVRO POR MÊS NUMA LIVRARIA PARA QUE ELA SOBREVIVA A ESTA CRISE. JÁ COMPROU O SEU?"
Enviávamos livros por correio, entregámos ao domicílio nas zonas de Évora e Montemor-o-Novo e levámos livros à porta da livraria.
A campanha funcionou! O público das livrarias independentes acarinha as suas livrarias e foi o que fez. Isto permitiu que o negócio descesse "apenas" à volta de 30%.
O TIPO DE NEGÓCIO ALTEROU-SE BASTANTE
Criámos um site, as encomendas chegam por messenger, e-mail, Whats App, telefone. Dá muito mais trabalho ao livreiro vender um livro e um bom livreiro é fundamental. Os clientes pedem mais aconselhamento: de acordo com idades, tipos de leitura. O serviço é mais personalizado e exigente.
O SALTO DA RELI
A criação da RELI deu-nos mais visibilidade junto de um público a nível nacional e força negocial no mercado livreiro.
Évora, 25.08.2020
Booki – livros técnicos – www.booki.pt (livraria)
Quântica Editora – conteúdos especializados – www.quanticaeditora.pt (editora)
César Santos, 39 anos, livreiro, coordenador editorial, responsável de comunicação de editora e livraria, desde 2007, com interrupções e várias funções.
Durante o confinamento, as vendas aumentaram, pelo trabalho constante desde há anos na vertente online, pelo carácter diferenciado dos livros técnicos, e porque os os centros de cópias estiveram fechados.
O teletrabalho foi apoiado numa pessoa destacada para o envio e expedição, ficando a restante pequena equipa (mais duas pessoas) em contacto permanente.
As Feiras do Livro nunca são feitas por motivos exclusivamente comerciais, servem mais para estar próximos dos leitores/clientes e marcar posição da marca como referência. Isto apesar do sucesso obtido em ambos os níveis nos anos anteriores.
Este ano os resultados prevêem-se piores pois entre o desejo dos leitores/clientes em visitar e comprar livros, as restrições, os receios, e até o menor poder de compra evitarão que a natural vontade das pessoas se concretize.
Os receios advêm da possível queda do poder de compra, e da concorrência desleal e injusta no mercado e meio editorial e livreiro em Portugal, que aliás se nota no valor pago para estar presente e nas praças que os grandes grupos têm, em vez de se destacarem por exemplo praças temáticas.
Como livraria e editora de livros técnicos (e tendo já passado por livrarias/editoras ditas generalistas), nota-se que o âmbito e tipo de trabalho e objetivos são diferenciados. Talvez por essa razão não sejamos tão reconhecidos, ao ponto dos apoios ao Ministério não tenham contemplado livrarias de temas técnicos.
Há, não só neste período, mas de forma crónica e sistémica no meio editorial, livreiro e cultural, males que fazem com que a «cultura» sirva apenas para encher discursos e não se concretize em medidas. Apontarei por isso alguns pontos concretos que poderão significar não só a sobrevivência dos agentes neste meio, mas sobretudo a justiça concorrencial e tendente ao melhor acesso a conteúdos para a população, que é talvez o maior objetivo a que devemos propor-nos.
1- Alterar radicalmente a Lei do Preço Fixo e a forma como se aplicam margens comerciais.
2- Criar normalização da Prescrição de Livros – em especial, os livros utilizados no meio universitário e formativo.
3- Combater qualquer tipo de Cópia que não seja estritamente.
4- Finalmente, utilizar melhor os fundos e meios à disposição, em vez de serem «capturados» pelos interesses do meio de forma a marcar ainda mais o monopólio por falta de justiça e desconhecimento do meio (tenho material de investigação nestes âmbitos, com algumas informações polémicas sobre o meio editorial e livreiro).
Rimas e Tabuadas – Guimarães
Sócias: Sílvia Lemos, 45 anos e Rita Laranjeiro, 40 anos
Experiência: 3 anos
Abriu em 2017, marginal e inesperada, num tempo em que já se dizia que os livros tinham os dias contados. O projeto é uma vontade de provocar a surpresa através dos livros e dos momentos à volta de uma mesa de café. Aqui o valor está nos livros e nas pessoas para partilhar leituras, nos encontros temáticos, nas viagens literárias e nas apresentações de livros e conversas com autores.
A pandemia causou a perda destas experiências literárias de proximidade e abalou as receitas. Reinventamos o negócio através de contactos com os clientes e entregas ao domicílio. Grande valor atribuímos à RELI da qual fazemos parte desde o início. A partilha de ideias e campanhas de livreiros unidos levou-nos bem mais longe do que a muralha do Centro Histórico. Passamos a fazer envio de livros para diversos pontos do país. Contudo a existência de grandes promoções de editoras com descontos que nem às livrarias aplicam, são entraves ao nosso trabalho.
Estamos a agendar eventos, ao ar livre, criando parcerias com artistas e com outras áreas de negócio de modo a investir na promoção dos livros.
Adelino Pires, 64 anos
Livreiro Alfarrabista
(desde 2008)
O velho normal
Pediram-me um texto sobre esta coisa dos livros, sobre o que é isto de andar aos papéis, mergulhado nas histórias de uns e de outros, de muitos que sem o saber, também estarão por aqui. Entrar no mundo dos outros, como diria o Gomes Ferreira, devassar almas, subir degraus, desembrulhar memórias e segredos fechados a sete chaves, sem códigos nos cadeados, ser confidente sem ser padre, num confessionário sem bênção, sem rezas, nem ladainhas.
Ser alfarrabista é tudo isto. Uma (a)ventura inquietante diria o Rodrigues Miguéis, uma descoberta incessante, um autor que se reencontra, um manuscrito escondido, um desabafo envergonhado, tanta e tanta discrição. E o escrevinhador agradece, mesmo que lhe falte o tema, há sempre alguém que aparece. Afinal, antes que chova, haja sempre algo que nos mova.
No velho normal, o que há de novo é acharmos novo o que já é velho. Para o Tê, a gente não lê já de há muito. Por aqui, pelo (quase) deserto de um histórico centro de uma cidade interior, a diferença entre ter a porta aberta ou fechada, é apenas de corrente de ar. Sempre o mesmo, sempre os mesmos.
Fora de rota, mais monge que missionário, os livros, esses, mudam de sítio, à espera que mudem de mãos. A net, essa, dá uma mãozinha e o escrevinhar por aí faz o resto.
E às tantas, algures num discreto apeadeiro, apanho o comboio da RELI. Devagar, devagarinho, mastigando o tempo, entro numa das carruagens, sento-me e deixo-me ir. Sinto que outros fazem a mesma viagem. Será longa, pelas linhas daqui e dali, com estações e apeadeiros, que isso dos TGV será para outros.
No velho normal, há um comboio a apitar.
Doutro Tempo – Livraria Alfarrabista