Os 20 cidadãos que chegaram este domingo a Portugal – 18 portugueses, dois dos quais diplomatas, e duas cidadãs brasileiras – aceitaram todos ficar em isolamento, mas o debate sobre se o país deve ou não mudar a Constituição para passar a contemplar a quarentena obrigatória em situações de risco para a saúde pública está para durar.
Esta segunda-feira, os bastonários das Ordens dos Enfermeiros e dos Médicos manifestaram-se a favor da alteração à Constituição, defendida na semana passada pelo antigo diretor geral da Saúde Francisco George. Mas no Parlamento há visões noutro sentido.
Antónia Almeida Santos, deputada pelo PS e presidente da Comissão de Saúde, considerou à TSF como “exagerada” e “impensável” a mudança na Constituição, afirmando que “a situação não justifica um alerta tão grande”. Por outro lado, Ricardo Baptista Leite, deputado pelo PSD, explicou que até hoje ainda não se chegou à conclusão sobre a melhor decisão a tomar, mas que é “urgente” que a Direção-Geral da Saúde, a comunidade científica e a Ordem dos Médicos assumam uma posição quanto a este tópico.
Ao i, Francisco George mantém o apelo: “Este debate um dia tem de acontecer. Portugal não é diferente de França. Se há problemas civilizacionais são poder-se internar um doente do foro psiquiátrico contra a sua vontade e não poder internar obrigatoriamente um doente com tuberculose multirresistente, por exemplo. Isso é que representa um atraso civilizacional”.Francisco George diz ignorar se a opinião manifestada por Antónia Almeida Santos é uma leitura pessoal ou se representa o PS e contrapõe que a proposta para rever a Constituição tem o apoio da maioria dos médicos. “Não sei qual é o momento nem é isso que me move. Estamos perante um problema e o mundo ocidental não tem dúvidas sobre questões civilizacionais. Não é uma opinião que diz se é oportuno ou não haver internamento obrigatório”.
Já reagindo à crítica deixada pelo deputado do PSD de que a DGS nunca fez propostas neste sentido, George garante que o tema foi discutido várias vezes durante a sua liderança da DGS, a partir de 2005, e foi uma das recomendações que fez na sua última intervenção como diretor-geral da Saúde em 2017. “O Dr. Ricardo Baptista Leite não tem razão, foi infeliz”, disse.
No início de 2017, o Governo chegou a apresentar na Assembleia da República uma proposta de lei de saúde pública que, não referindo expressamente a quarentena, previa medidas de afastamento temporário em casos de doenças infecciosas de notificação obrigatória. O tema ganhou pertinência nos meses seguintes com o surto de sarampo que vitimou uma jovem de 17 anos. A revisão da lei acabou por não ir para a frente: a proposta caducou com o fim da legislatura, em outubro passado. Questionado pelo i, o Ministério da Saúde sublinhou que a lei nº81/2009 já permite a “determinação de isolamento profilático obrigatório” enquanto medida de exceção e em contexto de emergência em saúde pública. “A reponderação de quaisquer aspetos deste regime ou de outros, com ele conexos, a entender-se necessária, será efetuada em momento oportuno”, disse fonte oficial.
O artigo 27.º da Constituição portuguesa não permite isolamentos ou internamentos obrigatórios, mesmo quando está em causa a saúde pública. O único momento em que a lei admite internamento compulsivo é perante casos de anomalia psíquica que possa colocar em perigo a própria pessoa ou terceiros. Na Europa, países como o Reino Unido, a França e Espanha permitem quarentena nestes casos. A alteração à lei francesa foi feita em 2003, em plena crise da SARS (síndrome respiratória aguda grave), epidemia provocada por um coronavírus da mesma família do vírus agora identificado na China. A lei foi alterada depois de um médico que contraiu o vírus no Vietname – e foi hospitalizado em França – ter recusado permanecer no hospital quando ainda estava na fase contagiosa. Segundo o jornal Le Parisien, na altura o diretor geral de Saúde de França pediu-lhe pessoalmente que regressasse ao hospital, mas o médico recusou. Viria a ser a única vítima mortal do vírus em França. Atualmente o código de saúde pública de França determina que o representante do Estado pode determinar medidas de combate à propagação internacional de doenças, nomeadamente o isolamento ou a quarentena de pessoas com infeções contagiosas ou suscetíveis de serem infetadas.