Jesualdo Ferreira. O homem  que nasceu vinte vezes…

Jesualdo Ferreira. O homem que nasceu vinte vezes…


“Está tudo ao contrário. O maior desafio da minha carreira na hora de dizer adeus…”: a expressão do novo treinador do Santos, a caminho do Brasil aos 73 anos.


Homem que viveu vinte vezes porque, glosando Alfred Hitchckok, dá jeito. Mas na realidade são dezanove. Se não me falta algo à contabilidade, como está bem de ver. A lista de clubes orientados por Manuel Jesualdo Ferreira, o novo treinador do Santos Futebol Clube, aquele que teve, nos seus tempos gloriosos, uma linha avançada que se cantava como um samba: Dorval, Mengálvio, Coutinho, Pelé e Pepe. Aos 73 anos, depois de já ter anunciado o final da sua carreira, inclusive ainda quando treinava o Al Saab, do Qatar, numa entrevista que fiz com ele para este jornal numa noite serena de Doha, abre-se-lhe o que ele próprio considera o maior desafio da sua carreira. Uso, com licença do professor, uma frase que proferiu enquanto trocávamos ideias sobre este súbito convite que surgiu da Vera Cruz: “Não havia forma de recusar. Tudo parece estar ao contrário. O maior desafio da minha carreira no limite de dizer adeus. Isto há cada uma…” Exageros de modéstia que lhe ficam bem, a ele que sempre foi modesto, que nunca quis assumir excessos de protagonismo, mas que não correspondem à verdade. Sou eu que o digo e não o renego.

Três vezes consecutivas campeão nacional com o FC Porto (2006–07, 2007–08, 2008-09), duas vezes vencedor da Taça de Portugal, também com o FC Porto (2008–09, 2009–10), campeão do Egipto com o Zamalek (2014-15) e vencedor da taça na mesma época, campeão do Qatar (2018-19) e vencedor da taça e da Taça do Emir (2017), os títulos não têm parado de lhe chegar às mãos. Agora tem a responsabilidade de ir atrás do Brasileirão que Jorge Jesus conquistou com o Flamengo. O Santos ficou em segundo na última edição, a 16 pontos dos cariocas, e isso não caiu decentemente no goto dos dirigentes de um clube ciente da sua grandeza, não apenas no Brasil mas também no mundo. Afinal, o último campeonato conquistado pelo antigo emblema de Pelé (o único, a par do do Cosmos de Nova Iorque, já numa fase de pré-reforma) data de 2004. É evidente que a estrutura santista necessita de um abanão e Jesualdo Ferreira foi destacado para uma missão espinhosa, sobretudo porque os “cartolas” brasileiros não são propriamente conhecidos pela sua paciência e boa-vontade.

Efeito-Jesus Evidente, também, é que o efeito-Jesus mexeu com o futebol do Brasil. Vitórias no Brasileirão e na Taça Libertadores, a derrota por um triz frente ao Liverpool campeão da Europa, tudo encantou um mundo fascinado pelo que gostam de apelidar de nobre jogo bretão. Primeiro foi Augusto Inácio a assinar pelo Avaí, da Série B, agora é Jesualdo que viaja para o outro lado do Atlântico levando consigo Rui Águas e António Oliveira, filho de um António Oliveira (Toni) que trabalhou muitos anos com ele.

Jesualdo Ferreira é um homem de método. Talvez nunca tenha entusiasmado os adeptos dos clubes por onde passou porque optou sempre pela discrição em detrimento da espetacularidade. O seu discurso vira-se mais para dentro, para os que repartem consigo o balneário, do que para fora. É um professor em permanência que gosta de ir colocando os tijolos do edifício que idealiza uns sobre os outros com a segurança de um pensador. Nos últimos tempos tem sido possível ouvi-lo falar sobre futebol nos ecrãs das nossas televisões e, pelo menos para mim, é um prazer a forma como nos explica os pormenores de um jogo que, infelizmente, tem sido tratado como lixo na boca de economistas, políticos, cantores e o mais que se está para saber, numa política de comunicação que prefere a absoluta ignorância disfarçada de sapiência bacoca à presença de profissionais categorizados.

O rapaz que veio de Angola, para onde foi com os pais, ainda criança, e estudou em Chaves e em Aveiro antes de se instalar em Lisboa para concluir o curso de técnico, quer “continuar a correr”, para usar uma expressão sua. O seu sangue transmontano, de Mirandela, fê-lo firme de convicções. Nunca dobrou, nunca torceu. Foi ele, virtudes e defeitos, e o seu desígnio. A solidez não o tornou popular, mas garantiu-lhe respeito. É com interesse que todos iremos seguir o seu trabalho em Vila Belmiro. À frente do Santos que se gaba de, pelo menos, se ter despedido do último Brasileirão com uma goleada (4-0) ao Flamengo de Jesus, na última jornada.