O ataque às profissões reguladas


O que está em causa é, a propósito de um pretenso direito de acesso a qualquer profissão, a abolição de qualquer regulação profissional e a absorção total dos profissionais liberais portugueses por grandes empresas internacionais.


O Governo apresentou à Assembleia da República a proposta de lei n.o 4/xiv, que corresponde às Grandes Opções do Plano para 2020-2023. Nessa proposta, sob a epígrafe de “garantir a liberdade de acesso à profissão”, o Governo anuncia que “para assegurar o direito à liberdade de escolha e acesso à profissão, constitucionalmente garantido, irá impedir práticas que limitem ou dificultem o acesso às profissões reguladas, em linha com as recomendações da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e da Autoridade da Concorrência”. Este anúncio é grave.

Relativamente às recomendações da OCDE, para se saber o que está em causa recomenda-se a leitura do OECD Competition Assessments Reviews Portugal, Volume II – Self Regulated Professions, 2018. Nas págs. 28 e ss. encontram-se as recomendações principais desta organização sobre as profissões reguladas, de que se salienta a abertura das profissões a quem não tenha a licenciatura adequada, apenas com base no currículo profissional, e a realização do exame final de estágio por um comité independente da ordem profissional em causa. No caso específico dos advogados propõe-se expressamente a redução dos seus actos próprios ao mínimo necessário, a facilitação do exercício da sua actividade por outros profissionais através da criação por estes de códigos de conduta, e o recurso indiscriminado à prestação de serviços jurídicos através da internet. Ao mesmo tempo propõe-se a abertura das sociedades de profissionais a não profissionais, incluindo a possibilidade de estes últimos deterem a maioria do capital e dos direitos de voto, e podendo a sua gestão ser exercida exclusivamente por não profissionais. No caso específico das sociedades de advogados, determina-se expressamente a criação de sociedades multidisciplinares que abranjam profissionais não advogados.

Não querendo ficar atrás, a Autoridade da Concorrência, no seu comunicado 09/2018, de 6 de Julho de 2018, veio logo subscrever de cruz estas propostas, apresentando um Plano de Acção para a Reforma Legislativa e Regulatória das Profissões Liberais, onde se propõe rever de uma assentada a lei-quadro das ordens profissionais e os estatutos de 12 ordens profissionais. O plano de acção inclui a criação de um órgão independente com funções de regulação da profissão, externo ou interno à ordem profissional em questão, mas efectivamente separado dos restantes órgãos e com elementos externos; a redução dos actos exclusivos da profissão; a criação de cursos de conversão de um grau académico noutro grau académico; a permissão de que os exames de estágio sejam efectuados por não profissionais; a abertura da totalidade do capital social e dos votos das sociedades de advogados a não profissionais, a sua gestão por estes e a abolição da proibição da multidisciplinaridade. E, sem que se perceba como, anuncia um ganho anual para a economia – de quem? – de 32 milhões de euros nas “profissões legais” (sic).

O que está em causa nestas propostas é pura e simplesmente, a propósito de um pretenso direito de acesso a qualquer profissão, a abolição de qualquer regulação profissional e a absorção total dos profissionais liberais portugueses por grandes empresas internacionais. Ora, o próprio art.o 47.o da Constituição limita a liberdade de acesso às profissões pelas “restrições legais impostas pelo interesse colectivo ou inerentes à sua própria capacidade”. Por outro lado, o papel dos advogados é reconhecido constitucionalmente (art.os 20.o, n.o 2, 32.o, n.o 3, e 208.o da Constituição) e não pode ser confundido com o de qualquer outro profissional. E, para se ser advogado, é necessário ter um código de ética e deontologia próprios que depende da formação dos seus pares e por estes deve ser avaliado e julgado. Seria melhor que o Governo se preocupasse com o deficiente funcionamento do sistema de justiça em vez de adoptar propostas típicas de um capitalismo selvagem que só contribuiriam para agravar a situação.

 

Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa

Escreve à terça-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990