Marriage Story. Do avesso, o amor é uma arma de guerra

Marriage Story. Do avesso, o amor é uma arma de guerra


Líder das nomeações aos globos de ouro, o filme de Noah Baumbach exige estômago, encarando o divórcio como essa drástica inversão que faz de aliados íntimos, inimigos brutais.


O novo filme de Noah Baumbach, Marriage Story, andou por alguns festivais, e lá fora mereceu exibição em algumas salas de cinema, isto antes de, no passado dia 6, ter chegado à Netflix. Mais do que um furor passageiro, a forma como a crítica se tem dividido, debruçando-se sobre aspetos bastante específicos do argumento, mostra-nos que é uma obra que se distingue desses sacos de plástico segurando o vento até se rasgarem, como se tomassem gosto ao ar do tempo, e, deste modo, insere-se numa tradição mais profunda, escudando-se ao regime das manifestações de superfície que tanto nos consomem hoje.

O filme de Baumbach tem resistido, assim, aos gargarejos cínicos de uns, às apressadas arrelias de outros, e transformou-se no tópico de discussões cautelosas, com margem para uma boa dose de nuance. Se a liderança nas nomeações aos Globos de Ouro (em seis categorias) ajudou a criar ímpeto, nada atesta melhor a substância reflexiva desta obra como o facto de, apesar de tocar uma ferida comum e a que, de algum modo, todos estamos expostos, o seu abalo estar a registar-se bem abaixo do radar das matilhas da tagarelice e da indignação.

Como notou o escritor e performer Jourdain Searles num ensaio publicado no New York Times, menos do que o retrato de um divórcio em particular, este filme funciona mais como um comentário sobre o divórcio em si mesmo. E participa de forma bastante sensível e complexa na derrocada das orientações gerais que definiam a bifurcação ao nível do género. É um filme sobre a deceção e o amargo de boca que nos deixaram as estórias que nos contavam e contámos sobre esses papéis que, hoje, nos cansam e limitam demasiado. Baumbach tem tentado livrar o filme de uma interpretação que use como chave o peso autobiográfico, sem descartar o impacto que teve nele o divórcio da atriz Jennifer Jason Leigh, em 2010. E o que se percebe é que o filme não tem uma só coisa a dizer, não se organiza segundo uma narrativa, mas mais como um fio que cose honestidades várias, um manto onde se tecem e cruzam inúmeras revisões de uma matéria instável, infinitamente dolorosa – é como que um palimpsesto feito com a baba da memória.

Richard Brody, crítico de cinema da New Yorker, defende que se trata do melhor dos filmes de Baumbach pela sua capacidade de dar à fala entre os personagens o relevo da acção. Assim, o que se diz é um elemento crucial daquilo que se está a desenrolar, e as cenas não se sucedem numa vertigem constrangedora, mas também não cedem a uma coreografia previsível. Há deslizes e decisões que, parecendo razoáveis de um lado, produzem do outro um impacto desolador, e o casal, Charlie Barber (Adam Driver) e Nicole Ryder Barber (Scarlett Johansson) vão acedendo às palavras que exprimem sentimentos recalcados, e quando finalmente falam ficam obrigados “a pagar o alto preço (tanto literal como emocionalmente)” dessas revelações íntimas. 

Brody nota que, na verdade, todo o filme é como um duelo de monólogos, entre o que se diz e o que se cala: duas horas trocando falas afiadas, penosas, graciosas e elegantes, mas que não deixam de fazer sentir mais agudamente o problema da incapacidade de comunicação. Esquivando a uma moral, a perspetiva escorrega, o sentido que parecíamos ter agarrado defrauda-nos, uma mesma cena consegue agraciar-nos com um humor subtil ou nervoso, e, ao mesmo tempo, encaixar um golpe tristíssimo. “Baumbach mostra-nos a natureza elusiva do amor, a inefável centelha que está no seu âmago e o reino dos aspectos pragmáticos que acabam por defini-lo e dar-lhe forma”, escreve Brody. “Ele oferece testemunho à frase de Pierre Reverdy que ficou famosa na boca de Jean Cocteau: ‘O amor não é coisa que se ache, tudo o que dele temos são as provas trocadas entre amantes’.”

Começamos pelo fim, pela tremida noção de que não há mais caminho, e, no entanto, logo na primeira cena dois monólogos detalham a consciência desse amor, as provas que o reconhecem. Antes que o drama se imponha com a sensação de se ver puxado para a vulgaridade desses truculentos desacertos, a desarmonia que mostra o cansaço da música de dois, há uma espécie de inventário de tudo o que irá perder-se. E logo fica claro que, por melhores que sejam as intenções, no amor a arte da perda é muito difícil de se dominar. A ideia de uma separação amigável, quase por acidente, pela vertigem do próprio divórcio – essa catástrofe demasiado natural sobretudo entre os que mais intensamente se amaram -, vai ficando à mercê de uma outra vida, que precisa enterrar e fazer o luto da anterior. E, então, o primeiro triunfo deste filme é a forma como logo nos torna testemunhas da intimidade partilhada entre Charlie e Nicole, um casal de artistas que vivem em Brooklyn com o filho de oito anos, Henry. Os dois trabalham numa companhia de teatro experimental, e Nicole trocou Hollywood, e a celebridade depois de protagonizar um filme de adolescentes, para se tornar a estrela do grupo que Charlie dirige.

Em parte, o conflito nasce da sobreposição da vida íntima e do projeto profissional que os liga, com Nicole cada vez mais diminuída, sentindo-se como um peão ou um refém da carreira de Charlie. Sem ter bem claro tudo aquilo que já não aguenta, vemo-la libertar-se dessa canga que arrastam as musas, descer do pedestal que se parece cada vez mais com uma gaiola, e encontrar uma expressão para todo o desconsolo que não quadra com o seu tão admirável quanto limitado papel. No fim, a musa despede-se, e o artista mal pode acreditar. Aos poucos, e à medida que se separam, é como se Nicole e Charlie se vissem apagados da história que contavam para se tornarem “personagens de um drama que nenhum dos dois controla”. É aí que, como vinca A.O. Scott, se percebe que o aspeto mais árduo de um divórcio é a forma como se traduz numa forma de revisionismo, com as idiossincrasias a serem tomados como traços patológicos e simples erros tratados como crimes. O crítico do New York Times cita então Theodor Adorno, para quem “o divórcio, mesmo entre pessoas de boa natureza, amigáveis, educadas, consegue levantar uma nuvem de cinzas que cobre e descolora tudo aquilo em que toca”. É uma frase que parece ressoar nuns versos de Eliot (poeta que, de resto, submeteu a primeira mulher a um divórcio de uma frieza implacável): “És toda a cinza deixada pelas rosas queimadas./ Pó suspenso no ar/ indica o lugar onde acabou uma história.”

Adorno explica que “a esfera da intimidade se transforma num veneno mortífero assim que que a relação em que este floresceu entra em rutura”. Por isso, comparada com o divórcio, a morte é uma limpeza. Faz viúvos ao invés dessas assombrações de carne e osso que passam de aliados a antagonistas capazes de mútua destruição. Revirando a intimidade, invertem-se de súbito os sinais na equação que sustentava o casal, e dela extraem-se terríficos segredos de guerra. A linha que demarcava o território dos amantes serve agora as coordenadas para bombardeamentos de parte a parte, num esquema que lembra a guerra moderna: os generais de roda de uma mesa, divisando os alvos num mapa antes de darem a ordem para que os céus desabem do outro lado do mundo, insensíveis aos danos que provocam. E apesar do peso das coisas que são ditas depois de se ter perdido a confiança, é decisivo o papel dos advogados, que conseguem antecipar o desfecho de uma guerra que eles municiam. De resto, Laura Dern, Alan Alda e Ray Liotta, que interpretam os advogados, conseguem sempre roubar a cena, também porque, como sublinha A.O. Scott, nestas circunstâncias eles estão no seu elemento, ao passo que Charlie e Nicole estão a desfazer-se.

O filme é tão forte quanto é difícil de aguentar. A memória fica assoberbada de tantas imagens, das nossas próprias falas que completam ou ficam aquém do sentido, das coisas que podiam ter sido ditas, ditas melhor, dos versos que se sublinham a si mesmos, de todos os filmes que participam num desvio doloroso: a vida sem história não pega; tudo são cacos, e não há como pôr em ordem o que fica desta catástrofe demasiado natural.