Esta edição do Doclisboa é uma daquelas em que o forte pendor político que tem caracterizado o festival se torna ainda mais evidente do que noutras. O 30.º aniversário da queda do Muro de Berlim pareceu-vos a ocasião perfeita para olhar para onde está a Europa neste momento?
Esse pendor político tem a ver, por um lado, com a identidade do festival, mas, por outro lado, com o presente: os 30 anos da queda do muro colocam, em si, imediatamente uma questão, que é onde é que estamos.
E estamos mal.
Estamos mal. Há cada vez mais muros. Portanto esta retrospetiva tem muito a ver com, por um lado, olharmos para um cinema de território que não conhecemos assim tão profundamente, que é o cinema da República Democrática Alemã, e, através desse cinema, pensarmos o que ali se passou. E, por outro lado, perguntarmo-nos precisamente para onde é que caminhamos nesta Europa que, quando o mundo cai, se constrói e se assume num ímpeto de união e de solidariedade entre países e que hoje está a ser ameaçada por projetos e programas muito claros de ataque a essa possibilidade do Estado Social, da solidariedade, da livre circulação, da livre expressão, de uma série de valores que a Europa representava. Esta retrospetiva vem assinalar essa inquietude.
A par daquela que é dedicada à realizadora libanesa Jocelyne Saab.
Na mesma época em que cai o Muro de Berlim, há outro território, a zona do Médio Oriente, que também sofre profundas transformações. Quando a Jocelyne Saab começa, no Líbano e em Beirute, a trabalhar como repórter de guerra, acaba por começar a construir um corpo de trabalho que tem muito a ver também com as feridas do globo – tanto as associadas àqueles territórios como depois a outros, como o Saara Ocidental, etc. No fundo, mais uma vez, no Doclisboa, voltamos a esta perspetiva de pensar o presente olhando para alguns momentos-chave da História que nos transformaram. E, sim, esse pendor está presente por todo o programa. Estou a pensar num filme sobre o Brexit, o Brexit Behind Closed Doors [Lode Desmet, 2019] ou noutro [The Brink, de Alison Klayman, 2019] sobre o Steve Bannon.
Nessa lógica, também o brasileiro A Nossa Bandeira jamais será Vermelha, na secção Cinema de Urgência.
Exatamente. É um filme que tem ressonâncias com as questões da alt-right e de Steve Bannon. Se virmos esse filme em diálogo com, por exemplo, o Chão, da Camila Freitas, sobre o Movimento dos Sem Terra, ou com o Retratos de Identificação, da Anita Leandro [ambos na secção Da Terra à Lua], percebemos que há um fantasma da ditadura que cada vez se adensa mais, por um lado, e, por outro, um claro projeto de destruição de um tecido social e de uma relação com a natureza, com a paisagem e com a terra, que vem também de um projeto capitalista e económico muito claro. Com o programa, não queremos nunca apresentar conclusões sobre absolutamente nada. Um festival de cinema não é um tribunal ou um lugar para se fazer declarações ideológicas puras e duras nem para julgar os nossos companheiros humanos, mas é um lugar para se olhar para o mundo criticamente.
O título de um dos filmes programados na retrospetiva ao cinema da RDA parece falar-nos um bocadinho sobre isso: Why Make a Film About People Like Them? [Thomas Heise, 1980].
Sim. Aliás, a retrospetiva da RDA é muito interessante por isso. Porque tem por um lado muitos retratos – retratos da vida, retratos das mulheres, retratos da juventude, há imensa juventude pela retrospetiva, aliás uma questão que este ano está, de maneira subterrânea, muito presente em todo o festival – e, por outro, muitos filmes também sobre o trabalho, sobre o acesso ao conhecimento, sobre feminismo. Aliás, vai haver uma mesa redonda sobre isso:o feminismo na Alemanha de Leste, que foi de facto, um feminismo de vanguarda, à frente da época, numa sociedade em que as tradições patriarcais não eram vistas como tão estruturantes para aquele que era o modelo de sociedade. As mulheres trabalhavam, as mulheres tinham uma voz. Mas depois vamos mostrar também outras coisas, como filmes censurados e proibidos.
Na RDA, como este de que falei, que é um deles.
Sim. Por exemplo, filmes da Helke Misselwitz [n. 1947] em que ela faz, do ponto de vista feminino, uma crítica ao regime. É evidente que nada disto é contínuo ou pacífico, mas o nosso interesse também não era esse. O nosso interesse era olhar para aquilo como um período interessante da História, cheio de contradições e cheio de nuances que interessa trazer à tona.
É também interessante tentar perceber o lugar com que este cinema fica na História. Falava sobre como este cinema da RDA é pouco conhecido em Portugal e essa tem sido uma das grandes preocupações do Doclisboa: apresentar ao seu público aquilo que ele ainda não conhece.
Acho que a função de um festival de cinema não é mostrar aquilo que as pessoas já conhecem. Para isso, estão aí outras estruturas que podem fazê-lo. A função de um festival de cinema é mapear o cinema que o público desse festival não conhece ainda – ou que não conhece devidamente. Nesse sentido, o Doclisboa assumiu desde sempre este caráter pedagógico – mais do que pedagógico, investigativo, de mapear o cinema documental e aquilo que tem sido a não-ficção ao longo da História nos diferentes territórios. Isso é verdade, e é um imenso orgulho. Temos feito retrospetivas de facto muito novas. OŽ[Zelimir]ŽZilnik, por exemplo, era um autor quase desconhecido em Portugal. Da Chantal Akerman conhecíamos muito pouco.
E hoje em dia…
… hoje em dia conhecemos bem a obra dela e aparecem realizadores jovens, que estão a começar a fazer filmes, que dizem que para eles foi muito importante ver essa retrospetiva. ODoclisboa também tem essa função: inspirar as novas gerações de realizadores e abrir os horizontes críticos ao seu público.
Mas é difícil programar um festival com estas características.
Muito mais difícil. Quando programas realizadores e temas e filmes que ninguém conhece tens de fazer um trabalho de comunicação que não é pôr cartazes na rua: um trabalho de comunicação real, de construir discurso, de criar contexto. O contexto cria-se muitas vezes com outros filmes relacionados, com textos, com secções, etc. É, no fundo, um trabalho de retirar aquela carga de nicho que às vezes estas coisas, que parecem não ser para todos, têm e dizer às pessoas que, sim, é para todos. E que podem vir, que não se vão sentir excluídas, que aquilo lhes vai interessar. Isso é um trabalho imenso, às vezes frustrante. Às vezes temos filmes extraordinários, peças da História absolutamente fundamentais que sabemos que vamos mostrar para 50 pessoas. Mas, pronto, não faz mal, porque aquelas pessoas viram e, de alguma forma, isso vai produzir resultados, nem que seja espirituais, ao longo do tempo.
Esta sensação de que o festival é um festival tão político também vem disso, dessa obsessão com estar constantemente a contextualizar, a colocar os filmes num mundo em que, afinal, todos nós vivemos?
O festival é político começando precisamente aí. Um festival político não é um festival que faz grandes statements políticos e que mostra cinema militante, não é. É um festival que inscreve os filmes na realidade e que dá às pessoas espaço para elas os descobrirem e para se sentirem bem nessa descoberta. Todos os anos essa é uma questão que temos e que trabalhamos imenso. Diria que é essa a grande função e a grande dificuldade de um programador. Um programador que diz que não mostra um filme que acha fundamental porque o seu público não o vai querer ver é um programador preguiçoso. Se há um filme que é fundamental, o trabalho do programador é esse.
A propósito disso, quando entrou para a Escola de Cinema, lá atrás, o objetivo era já este, de um dia se tornar programadora? Ou era vir a fazer filmes um dia? É uma parte do seu percurso bem menos conhecida.
Fui para a Escola de Cinema porque gostava de cinema. Não queria especialmente ser realizadora, mas também não sabia muito bem o que queria.
Mas Escola de Cinema de Lisboa é sobretudo orientada para esse lado mais técnico.
Sim. Tive aliás uma má relação com a escola muito por causa disso, acho que houve um grande desencontro. Não há de facto em Portugal uma escola que alie essa dimensão técnica – porque o cinema é uma arte técnica – à dimensão teórica, à dimensão criativa, à liberdade e à experimentação. Sobretudo à experimentação. Na Escola de Cinema não havia experimentação. Apresentávamos projetos e, se os projetos estivessem ainda demasiado incipientes, não passavam, nunca chegavam a ser filmes.
Eram tentativas.
Sim, eram só tentativas. Se fosse uma coisa muito experimental em que dissesses “não sei no que é que isto vai dar mas preciso de experimentar”, não fazias. O teu projeto ficava logo ali. Eu na altura não sabia muito bem o que queria. Sabia que gostava muito de cinema. Houve coisas muito boas, ter tido aulas com pessoas como o Seixas Santos, o Paulo Rocha e o Fernando Lopes foi extraordinário, mas precisei de ir para Filosofia para depois me reconciliar com o cinema.
Finalmente havia espaço para pensar?
Foi em Filosofia que senti que pensava, Que, finalmente, pensava. Portanto a programação para mim é muito mais próxima, se quiseres, da Filosofia, embora naturalmente seja necessária uma carga de conhecimento da História do Cinema e daquilo que é a disciplina do cinema. A tese em que comecei a trabalhar em Filosofia, que não cheguei a acabar, era sobre a noção de “contemporâneo”. Uma noção de contemporâneo que é extremamente diferente da noção de presente: estar no tempo com. Acho que programar um festival de cinema é exatamente isso:é não estar fechado no presente, mas estar no contemporâneo e expressar o contemporâneo através dos filmes e das relações que eles têm uns com os outros. Por isso é que no Doclisboa o cinema histórico nunca é apresentado de uma forma didática, historicista, mas sempre num diálogo com o cinema atual, estabelecendo esse espaço do contemporâneo, onde todos existimos.
Além da questão da juventude, que já mencionou, também a das mulheres está muito presente nesta edição. Jocelyne Saab, a quem é dedicada uma das retrospetivas, foi uma cineasta quase acidental.
É muito giro porque numa das entrevistas ela até diz que para os pais dela o cinema não era uma coisa séria, que não se estudava. Foi estudar Economia, pronto, para estudar, mas que aquilo de que ela gostava mesmo era de cinema.
Isso ainda antes de se ter tornado realizadora.
Sim. Ela acaba por ser acidental no sentido em que, quando vai como repórter de guerra para o Líbano, começa imediatamente – e isso é muito bonito na obra dela – a encontrar princípios de ficção e o desejo da construção poética. Esse início do trabalho dela é muito isso: por um lado, uma necessidade de contar e documentar o real, por outro, um contar muito na primeira pessoa e essa descoberta do cinema como gesto, mesmo, do cinema como gestualidade e convivência. Era, de facto, uma mulher extremamente corajosa. Estamos a falar de uma época em que as mulheres realizadoras não tinham propriamente a vida facilitada. A Jocelyne Saab foi de facto alguém que sentiu que era aquilo que tinha de fazer. E foi absolutamente determinada na sua escolha.
Este ciclo que o Doclisboa lhe dedica é também interessante, tendo em conta as características do trabalho dela, e a forma como evoluiu, para pensarmos um pouco sobre todas estas fronteiras: onde acaba a reportagem e começa o documentário, onde acaba o documentário e começa a ficção, etc.
Sim, todo o trabalho dela é extremamente rico por causa disso. Os filmes dela estão sempre a sofrer mutações, há sempre este princípio de real e, de repente, uma imagem, qualquer coisa que acontece faz com que o filme de abra a outra coisa. É muito interessante quando se encontra realizadores profundamente imaginativos mas que mantêm sempre uma enorme atenção ao real. Nela existe sempre esse encontro, portanto essas fronteiras entre reportagem, documentário, ficção, documentário quase de ensaio estão todas a ser trabalhadas permanentemente. Mas com uma liberdade enorme. Ela não estava a construir uma teoria, estava só a fazer, e nesse fazer transgredia todas as fronteiras. «
No final desta edição, deixa a direção do Doclisboa, para assumir a do Sheffield Doc/Fest, no Reino Unido. Como figura que tem tido um papel tão ativo na reivindicação de mais e melhor para a Cultura, em especial para o cinema, tanto enquanto diretora do Doclisboa como da Apordoc – Associação pelo Documentário, como de porta-voz da Plataforma do Cinema, como é que parte?
Acho que são duas coisas diferentes. Uma coisa é deixar de ser diretora e de trabalhar no Doclisboa, que deixo com imenso amor e com imensa alegria. Ninguém é insubstituível. No dia em que achamos que somos insubstituíveis, estamos a incorrer num enorme erro de narcisismo, que é o princípio da destruição.
E tudo funciona por ciclos.
Funciona por ciclos e é preciso dar espaço a outros. Isso eu sempre quis garantir: que quando chegasse o momento de sair, saía sem amargura ou qualquer tipo de necessidade de controlo do que fica ou do que vai ser o Doc. A direção da Apordoc vai anunciar a nova direção no encerramento e estou muito orgulhosa do que construímos, do que fica para a frente e do que se pode fazer ainda, e com curiosidade. Outra coisa é a minha participação política, como cidadã e como membro da direção da Apordoc também, porque esse é um cargo político, precisamente. Como cidadã, não sou capaz de não participar. Vou manter-me profundamente atenta e, se calhar, até mais participativa, porque não vai ser Portugal que me vai pagar o salário. Sinto-me profundamente livre para intervir sempre que entender necessário ou relevante sobretudo na política cultural. Isso não vai deixar de existir.
Depois destes últimos anos conturbados para o setor, de uma grande luta da Apordoc e da Plataforma do Cinema, em que lugar lhe parece que estamos? E quais são agora os grandes desafios?
Acho que estamos muito mal. Ainda não apareceu um governo que, de facto, sinceramente, concretamente e com conhecimento de causa, tivesse um projeto realista, consistente, inteligente e visionário para a Cultura em Portugal. Aquilo que vemos são sucessivos governos que tratam a Cultura como uma espécie de coisa que tem que estar ali mas à qual não reconhecem a importância que ela tem. O que é um absoluto erro estratégico, uma estupidez, porque a Cultura é um dos pilares fundamentais da democracia.
Ao lado da educação…
Da educação, da saúde… A Cultura é um deles. Quando tens um povo que desconhece e desvaloriza aquilo que é uma boa parte da sua identidade, tens um povo cujo pensamento crítico está muito pouco estimulado, um povo que está preparado para qualquer coisa. Acho que estamos muito mal porque este Governo da geringonça foi uma desilusão absoluta em relação à Cultura. Tivemos ministros da Cultura sucessivos, tivemos a DGArtes num caos, no cinema, o ICA a ser quase privatizado – o PS tentou ir ainda mais longe do que a troika e a PAF na privatização do setor. Quando digo privatização, falo numa abertura de portas, escancaradamente, aos interesses privados, das empresas.
Que inicialmente prometeu reverter.
Exatamente. E, de repente, vem o António Costa anunciar 2% para a Cultura. Isto parece a gozar. Já não levo a sério, não levo mesmo. Fiquei extremamente orgulhosa por Portugal ter tido uma geringonça, e ainda estou: acho que, apesar de tudo, reverteu políticas extremamente violentas, deu passos importantes do ponto de vista social, mas na Cultura foi miserável. É a palavra que me vem à cabeça. Portanto, os desafios são todos. Na Europa, tens o CNC a ser entregue a um neoliberal macronista assustador; em Espanha, a extrema-direita a subir, como sabemos; no Reino Unido, o caos que está. Tudo isto afeta as políticas culturais, portanto não estou muito esperançosa.
E Portugal?
O que acho é que Portugal, apesar de tudo, ainda é um bocadinho a aldeia dos gauleses: por sermos pequeninos, ainda temos capacidade para ter algum tipo de políticas que vão contra a corrente, ou ao lado da corrente, da maioria europeia, e acho que a Cultura era um lugar maravilhoso para o fazer. As artes plásticas, então, são a área mais calamitosa na Cultura em Portugal. É uma desvalorização escandalosa. Há artistas plásticos extraordinários que estão a morrer à fome, que não têm, literalmente, dinheiro para comer ou para alimentar os filhos. E isto é uma questão de cidadania. Nós, como cidadãos, deveríamos estar a exigir que os governos valorizassem os artistas. Porque, quer dizer, já não somos católicos, já não vamos à missa, alguém tem de tornar isto mais respirável e, de facto, os artistas fazem esse trabalho ecológico de limpar um bocado o ar. Se perdemos isso, perdemos uma boa parte daquilo que é a nossa vida.
É esse o problema que tem que ser resolvido antes de todo o resto?
Ainda não vi um ministro da Cultura com a coragem de chegar, tomar posse, e no seu primeiro discurso dizer que quer enfrentar, na realidade e com frontalidade, esse problema da precariedade. Da pobreza na arte e na Cultura. Se não fazem isto… Podem inventar bienais de Veneza com escolhas de curadores e de artistas, podem dizer que fomos a Berlim com um filme, e podem ir lá todos cortar a fita e tomar champanhe, podem fazer isso tudo. Mas eu, como cidadã e como parte interessada, porque sou aquilo a que se costuma chamar um agente cultural, não me esqueço que ao mesmo tempo que isso está a acontecer há artistas que não têm para comer em casa. Pessoas que estão a produzir riqueza para o país, riqueza simbólica, que estão a exportar o país, em muitos casos. E, mesmo os que não estão ainda a exportar, estão a produzir património, que vale dinheiro, que é um capital simbólico, um capital para o futuro que está a ser produzido, sem estarem a receber nada em troca. Estão a receber migalhas e a ser profundamente desvalorizados e insultados. Portanto, para mim, todos os ministros da Cultura dos últimos tempos são absolutos incapazes e cobardes. Não quero que inventem mais programas. Depois, é preciso, sim. Mas, antes disso, enfrentem isto.