Chamam-lhe a diva, a rainha da música da Guiné-Bissau. Chega de sorriso luminoso, passo tranquilo e uma voz cheia que usa há quase 20 anos para fazer cumprir dois sonhos. O primeiro é o de levar o som do seu país – uma das sonoridades menos conhecidas de África – ao mundo. O segundo, e que ela considera ser a sua missão, é o de deixar a vida das crianças um pouco melhor. Já foi embaixadora da UNICEF por isso mesmo e saiu do cargo por se sentir de mãos atadas. Pelo caminho, a música, sempre. O seu quinto disco, Ibra, está à venda desde a semana passada e já foi apresentado pela cantora numa série de lojas Fnac. O concerto de apresentação do mais recente trabalho de Eneida Marta, que se define como “guineense e ponto final”, esse, está para breve. Uma conversa sobre música, sobre a Guiné-Bissau e sobre fé: há sete anos, tinha 40 e quis abraçar o islamismo. Uma escolha que resume numa única palavra: “Convicção”.
Porquê Ibra?
É uma homenagem ao músico Ibra Galissa, o virtuoso da kora [harpa de 21 cordas], que acompanhou a minha carreira desde o início. Ficou comigo durante 18 anos. Infelizmente faleceu na altura em que eu estava a gravar este trabalho, dois dias antes de poder participar no disco. Como não o podia ter no disco pela primeira vez na minha carreira, resolvi fazer essa homenagem dando o nome dele ao álbum.
A Eneida canta em português, em crioulo, em fula, biafada, badjara, manjaco, mancanha, em algumas línguas de Angola como o quimbundo..
Também já cantei, já (risos).
Cantar em tantas línguas e dialetos é uma inevitabilidade ou uma opção?
É um desafio e eu adoro desafios. São línguas que não falo – só falo o crioulo e o português. Mas tenho a versatilidade de poder aprender muito facilmente.
É também uma forma de chegar a mais públicos ou não pensa nisso quando aceita o tal desafio?
Não penso. Penso que estou a cantar numa língua que não domino mas que tenho que fazer passar a mensagem. Mas só aprendo o que tenho que cantar e pronto – a partir daí não sei dizer mais nada.
Já lhe aconteceu virem falar consigo nesses dialetos?
Já. Na Guiné-Bissau há um dialeto que é o fula e muita gente achou que eu fosse fula, graças a Deus, porque cantei muito bem a língua deles e a fonética estava no ponto. Até hoje muita gente dessa etnia fala comigo em fula e diz que eu também sou parecida com fulas.
Sei que o seu pai é de Cabo Verde, mas tem alguma etnia na Guiné-Bissau?
Costumo dizer sempre: eu sou guineense, ponto final. Nasci em Bissau. Tenho muita mistura, sou uma mestiça, digamos assim – não posso dizer que sou deste deste ou daquele. Se formos parar para ver, tenho um bisavô português, nortenho, tenho Cabo Verde, Alemanha, S. Tomé, é uma mistura muito grande.
Existe muito essa questão das etnias na Guiné-Bissau, as pessoas dividem-se?
Não, não existe. Por incrível que pareça, antes de sair da Guiné-Bissau para vir viver para Portugal há 30 anos nunca dei conta do fulano ser isto e do beltrano ser aquilo. Felizmente!
A música da Guiné-Bissau ainda é menos conhecida em Portugal do que a música de outros países africanos…
E no mundo também…
Um dos estilos base do país é o gumbé. Como se define?
É um som urbano. Temos muitos estilos tradicionais e o gumbé é, digamos assim, o tradicional urbano.
Onde nasceu este estilo, consegue-se traçar a sua história?
Até hoje não sei, porque já ouvi o gumbé numa outra parte de África, portanto não arrisco em dizer onde nasceu. Mas o nome gumbé é guineense.
Fazendo aqui uma viagem pelos seus álbuns, que começam em 2001: cantou gumbé, depois com um bocadinho de blues, trouxe as influências cabo-verdianas, em 2011 gravou alguns clássicos da música de Angola e nos seus dois últimos trabalhos (Nha Sunhu, de 2015, e agora Ibra) voltou outra vez às suas raízes. Que viagem tem sido esta?
Bem, não sou realmente cantadora de gumbé. Tenho um tema ou outro no disco. Basicamente tento passar um pouco de cada estilo da Guiné-Bissau de uma forma mais misturada, para poder também abranger outras pessoas, visto que eu – ou nós, neste caso – estamos a tentar dar a conhecer a música da Guiné-Bissau e a cultura em si na world music. Os clássicos de Angola cantei porque o meu pai viveu lá durante 40 anos, até falecer, e, por isso, era uma forma de agradecer esse acolhimento. Infelizmente esse disco não saiu, não sei porquê – está em Angola, nas mãos de alguém. Mas vou seguindo a minha carreira de disco em disco, já estou no quinto álbum, o meu Ibra, sempre a tentar mostrar a cultura e a música da Guiné-Bissau da forma mais fiel possível.
Vivemos um momento em que a lusofonia nunca se ouviu tanto nesta ‘Nova Lisboa’, como lhe chamam. As pessoas também estão mais abertas à música da Guiné-Bissau, sente este interesse?
Infelizmente ainda não senti da forma como gostaria. Mas vamos continuar a batalhar e a dar tempo ao tempo, acredito que as coisas vão chegar onde tanto ansiamos. A Guiné-Bissau musical e culturalmente é bastante rica – talvez seja um dos países mais ricos nesse sentido em África. Tendo essa riqueza toda claro que não vai ficar incógnita, e a música da Guiné-Bissau, se Deus quiser – e não vai tardar nada – vai estar por aí.
Por que acha que é mais desconhecida, quais as razões que levaram, por exemplo, a música de Cabo Verde a disseminar-se mais rápido?
Costumo dizer que na Guiné-Bissau não temos um Joe da Silva [o empresário que lançou Cesária Évora] como tem Cabo Verde. E ponto. No dia em que tivermos um Joe da Silva na Guiné-Bissau, sem dúvida, as coisas vão mudar.
Nasceu em 1972. No ano seguinte Amílcar Cabral foi assassinado. Cresceu num país que estava a firmar a sua independência, que foi muito martirizado pelas guerras civis, antes disso pela colonização. De que forma é que a Eneida é subsidiária desta realidade, como é que isto a moldou?
Por ter nascido nessa data e não ter propriamente vivido o momento, porque a independência foi declarada em 1973, não posso dizer que houve uma moldagem dessa temporada infeliz da Guiné-Bissau para com a minha pessoa. Conheci e cresci num país feliz, livre, independente, o que fez com que eu fosse também uma pessoa livre, independente e feliz. Não senti de todo esse peso ou feridas – se estivesse a dizer aqui o contrário estaria a inventar. Não senti nas ruas, nem em casa. Acho que as pessoas já estavam todas predispostas a essa liberdade.
Começou a cantar em criança?
Sim, nos concursos da escola. Tinha dois sonhos grandes – enquanto as minhas colegas desejavam ser advogadas e médicas, eu dizia “vou ser polícia e, se não for, vou ser cantora”. Desde os quatro anos que dizia isso.
Depois quando vem para Portugal?
Aos 17 anos e com o foco de ser polícia! Vim, comecei a estudar numa escola normal, passaram-se quase dois anos e descubro que estava grávida numa altura em que já me tinha inscrito numa academia de polícia, já estava na fase dos testes. E, de repente, a gravidez deu por estancado o meu sonho de ser polícia.
E trouxe o outro sonho ao de cima, o de cantar?
Não foi imediato, porque primeiro decidi ser mãe. Fui mãe de um, fui mãe de dois, sem pensar na música. Passaram-se dez anos e voltei a pensar.
Tinha que idade?
Quase trinta. Comecei a pensar na música e aquele bicho acordou. E, aí, comecei à procura de pessoas para me ajudar. Com essa minha aposta na música deu-se a separação do meu ex-marido, pai dos meus filhos, era “ou eu ou a música”. Tive de optar. Com os meus filhos pequenos, no início, foi bastante difícil. Ainda tive de os mandar para a minha mãe, que morava em Londres, para perseguir e realizar o sonho. Isto em 97/98, na altura da guerra na Guiné-Bissau.
Durante esse período voltava com frequência à Guiné-Bissau ou durante uns anos deixou de ser realidade?
Vim para Portugal e só 13 anos depois é que consegui voltar. 13 anos. Depois disso, todos os anos fazia questão de ir. E, de repente, já não conseguia passar mais de dois meses fora da Guiné-Bissau, e assim sucessivamente (risos).
E agora, está cá e lá?
Exatamente, estou a viver lá e cá!
Neste disco foi procurar os temas que eram importantes para si e entregou-os ao produtor para os trabalhar. Como foi este processo de se libertar quase até da criação?
Veio na sequência da gravação do meu anterior álbum, Nha Sunhu, que eu própria produzi. Como estive muito mas muito envolvida nesse disco desde o primeiro acorde ao último, fiz questão de entregar o Ibra a outra pessoa e simplesmente pus-me no papel de intérprete. De vez em quando dava algumas, poucas, ideias, mas felizmente o produtor do álbum, o Athanase Koudou, que já trabalhou com o Salif Keita e o Richard Bona, e por aí fora, é uma pessoa muito sensível. Parecia que lia os meus pensamentos e respondeu exatamente como eu queria. Deu-se um casamento muito feliz entre a cantora e o produtor.
Sente-se mais leve apenas como intérprete?
Sim. Senti-me tão leve que só depois, no fim, é que percebi que gravei as vozes quase o tempo todo sentada – estava completamente descontraída. Foi algo mágico, bom, que acho que se consegue sentir no disco.
Neste e noutros trabalhos que tem feito canta o amor pela sua terra, a alegria, as raízes, mas também o martírio do povo. Como se levam estes temas mais difíceis para um estilo de música que, logo pelo ritmo, é uma coisa imediatamente feliz?
Normalmente quando estamos a interpretar temas de intervenção tentamos ao máximo que a melodia prenda logo de início. O que traz isso? Quem não percebe a língua, vai gostar tanto que vai querer saber o que a letra está a dizer, então há este jogo. Por exemplo, há pessoas a pedirem-me a tradução do tema promocional deste disco, o Homis Di Gossi [sobre o abandono paterno das crianças]. Aquilo entrou-lhes tanto, porque musicalmente está tão rico e gostoso de se ouvir que as pessoas estão com uma vontade tremenda de saber o que a música diz e até, quem sabe, de poder cantá-la. Estamos a apostar também nos outros que não falam a nossa língua – é aí que se quebra a tradicional fronteira. Quando se diz que a música não tem fronteiras, é por aí: começa-se pela melodia.
Há palavras intraduzíveis?
O crioulo é muito difícil – há expressões que, para traduzir, é preciso transpirar. Traduzir o Homis di Gossi primeiro para português e depois para inglês foi um Deus nos acuda! O que interessa é que não se perca a mensagem.
É uma mulher profundamente muçulmana. Cresceu com esta religião?
Não, sou uma filha católica (risos). Fui batizada, fui à catequese e por aí fora, mas desde muito pequena nunca me identifiquei. Era um ritual da família e eu era obrigada a ir. E disse desde sempre: vou ser muçulmana.
Porquê?
No bairro onde o meu avô morava havia uma mesquita e eu com 7 anos, quando havia o chamamento para a oração no altifalante, ia a correr ver as pessoas rezarem. Não sei explicar por palavras o que era isso, costumo dizer que é o chamamento, o caminho que devia seguir. Senti isso até decidir converter-me.
Que foi quando?
Aos 40 anos! Foi há sete anos. Dizia sempre que me ia converter, fazia planos, mas o mais engraçado é que no dia em que decidi mesmo, entrei no carro – estava a viver em Belas –, arranquei para ir para a mesquita central de Lisboa e, a meio caminho, deu-me uma crise de dores terríveis. Qualquer pessoa chamava uma ambulância e desistiria no momento. Parei o carro até acalmar as dores, voltei a arrancar e outra vez crise! Fui com toda a persistência até à mesquita, encontrei logo o sheik Munir e disse: “Vim converter-me”. E ele: “Porquê?”. Respondi: “Convicção”. Fiz o que tinha que fazer, saí de lá para o hospital e fui operada. Foi um desafio, senti mesmo que foi Deus a testar a minha convicção.
Como é que uma mulher divorciada é recebida nesta religião, tida como conservadora em certos aspetos?
Acho que todas as religiões são conservadoras, agora depende de como cada um vai interpretar. Há um manual e nós todos sabemos o que é o bom e o mau. O Islão aconselha a mulher a ter um marido – eu acho que é a forma de estar natural da vida. Agora, quando as pessoas vêm interpretar isso como algo rígido, de imposição, não é isso: o Islão encaminha-te para o que é o bom. Estou aqui, sou uma mulher divorciada, mas não é que não queira ter um parceiro – Deus é que ainda não mo mandou. O Islão não diz para uma pessoa se casar só por casar. O Islão é uma religião tão boa, tão saudável e tão em paz que às vezes fico assustada quando fazem dela um bicho de sete cabeças.
Sente-se em paz desde que se converteu?
Não me podia sentir melhor na minha vida. Desde o momento em que me converti que senti que era o meu caminho. Aquilo que podia ser complicado para mim no passado já não é hoje, porque a forma de ver a vida, de encarar, de aceitar as coisas, já é diferente.
É embaixadora da UNICEF para a Guiné-Bissau.
Já fui.
Qual era a sua missão?
No início estava a fazer um pouco de tudo, na mutilação genital feminina, na escolaridade, saúde, por aí fora. Percebi que devia concentrar os esforços numa causa e acabei por escolher o casamento infantil. Tive boas e más experiências como embaixadora da UNICEF. Ganhei um conhecimento que não teria – chegar aos números de certos casos, e por aí fora. Mas também me senti frustrada, porque me sentia completamente limitada. Adoro ajudar, mas sou uma pessoa livre, e a UNICEF, por exemplo, não apoia concertos de angariação de fundos. Até hoje faço esses concertos, compro e levo comida para os orfanatos, e eles também não apoiam os orfanatos, porque defendem que a criança deve ser reencaminhada para a família. Mas eu pergunto: e quando a criança não é aceite na família, como se faz? São coisas das quais discordei. Tinha projetos para trabalhar na causa que escolhi, recebi sempre um não, [com a justificação de] que não havia dinheiro para isso – havia sim para cólera e ébola – e saí. É daquelas coisas: se é para ter o título de embaixador só por ter e não poder fazer, então prefiro não ter título.
Isso vai ao encontro do que diz ser a sua música, ou seja, considera que é quase secundária e que o seu real fim é ajudar.
Quando digo isso é porque vejo a música como o caminho, o veículo que me vai levar ao que tenho de fazer nesta vida. Amo a música, mas o que me faz sentir completa é ajudar os outros, principalmente as crianças. E, para mim, não há sonho maior.