Dizem que Boris Johnson (‘BoJo’), ao contrário de Donald Trump, não é um idiota, é culto; não é grosseiro, é um agente provocador; mas também “um clown amoral sem fé nem lei” disposto a tudo, inclusive mentir compulsivamente, para alcançar o último degrau do poder. Educado em escolas inglesas de elite, dizem-no douto, fascinado pela história do Império Romano (ascensão, decadência e queda, é de presumir!) e pela história da Grécia Antiga. Mas será que este político oportunista, demagogo e populista – que deve ter lido a História da Guerra do Peloponeso que Tucídides escreveu – se recordará do destino, obscuro e miserável, de Alcibíades (450 a.C. – 404 a.C.), com o qual ele hoje tanto se parece?
Este retrato de um tão culto ‘aldrabão de feira’ como Boris Johnson, oportunista e aventureiro imprevisível, foi o pretexto para eu repescar a admirável biografia de Alcibíades escrita pela grande helenista e especialista em Tucídides Jacqueline de Romilly (1913-2010), intitulada Alcibíade ou Les dangers de l’ambition (Editions de Fallois, 1995). Nada melhor terá sido escrito sobre este pupilo de Péricles (que o adoptou em 447 a.C.) e jovem amigo de Sócrates, rico, inteligente e sedutor, que incarnou, através dos séculos, o modelo do político ambicioso, demagogo e sem escrúpulos. Adulado e depois banido pelos Atenienses, Alcibíades não hesitou em passar-se para o lado do inimigo, Esparta, a grande rival de Atenas, tal como para os sátrapas persas, igualmente inimigos dos Atenienses. Marcada por sucessivos “casos”, a sua carreira política e militar prefigura todos os excessos daquilo que hoje designamos por “política-espectáculo” e está ligada, em relação a Atenas, ao “fim da idade de ouro”. Alcibíades morre quando a Guerra do Peloponeso acaba, com a derrota de Atenas: “Ao invés da sua vida, a sua morte obscura e miserável foi tão patética que nenhum melodrama ousou ir tão fundo”.
Alcibíades foi causador e protagonista do desastre da invasão da Sicília, tal como Boris Johnson ameaça ser causador e protagonista do “hard Brexit”, isto é, de um Brexit sem acordo e sem regras. Jacqueline de Romilly escreveu, no princípio do II capítulo, sobre ‘Insolências e Escândalos’, o seguinte: “A juventude dourada nunca foi amiga da ordem; e Alcibíades possuía demasiados talentos para não se deixar inebriar por eles: a insolência, traço do seu carácter, convinha à sua situação. Era seguro de si, e não tencionava deixar-se deter por quem quer que fosse”. Parece o retrato premonitório de Boris Johnson, com os seus dons, as suas ambições, o seu desprezo pelas regras e as suas insolências. Eleito como sucessor de Theresa May por cerca de 160 mil membros do Partido Conservador, ou seja, cerca de 0,3 % do eleitorado, ‘BoJo’ promete um ‘futuro radioso’ e uma nova ‘idade de ouro’ aos 66 milhões de cidadãos britânicos, impacientes e esgotados por mais de três anos de confusões e expectativas goradas, desde o referendo sobre o Brexit realizado em 23 de Junho de 2016. E até os seus mais fiéis apoiantes sorriem, descrentes das promessas de ‘BoJo’, que já foi ao ponto de vibrar um golpe profundo no sistema político britânico, ao suspender o Parlamento durante um período mais do que suficiente para impedir o normal funcionamento da democracia.
Sir Ivan Rogers, antigo representante permanente do Reino Unido junto da União Europeia (UE) e conselheiro de Tony Blair, David Cameron, Theresa May e de Boris Johnson quando foi ministro dos Negócios Estrangeiros, diz dele que, “não sendo de modo algum um idiota, não procura sequer dar provas de consistência nem de seriedade” na prática política. A ‘BoJo’ pouco interessam os números, diz que não acredita neles: “os seus raciocínios não passam pelo exame dos factos ligados ao comércio, ao investimento e ao impacto que uma saída brutal poderá ter sobre a produtividade”. E no entanto, mesmo antes de se tornar efectivo, o Brexit já está a custar bem caro aos Britânicos – refere Marc Epstein no semanário L’Express. Só alguns exemplos: desde o referendo, a libra esterlina perdeu 1/5 do seu valor face ao euro e o investimento caiu brutalmente na indústria (menos 70 % no sector do automóvel, entre Janeiro e Junho de 2019). Também na City o efeito negativo não se fez esperar, com as entradas de capitais reduzidas a 1/3.
E é claro que o que se passa no plano político ainda é pior. Como salienta Epstein, o Brexit progride como um vírus informático no seio da democracia, ao ponto de ameaçar seriamente a coesão e unidade do Reino Unido. Na Escócia, onde 62 % dos eleitores se pronunciaram contra a saída da UE no referendo de 2016, e Boris Johnson é olhado como “um menino mimado da alta burguesia inglesa”, nunca foi tão forte como agora a tentação da independência. Ao mesmo tempo, na Irlanda do Norte, os separatistas nacionalistas ameaçam retomar a luta armada, o que constitui séria ameaça, em paralelo com a enorme tentação independentista dos escoceses. A tudo isto acresce a cada vez mais frágil maioria parlamentar deste Governo conservador radical. Daí a atitude antidemocrática do primeiro-ministro ao bloquear o Parlamento, suspendendo-o. Esta espiral populista – como outras na Europa e nas Américas – vai de mal a pior além-Mancha!
O que dizer da ligeireza, irresponsabilidade e falta de respeito pelas regras duma democracia parlamentar tão antiga e tão notável como a britânica? Torno a citar, por fim, Jacqueline de Romilly: “Alcibíades, como figura da ambição individualista numa democracia em crise, ilumina com as suas seduções e os seus escândalos as nossas próprias crises – mesmo quando não se consegue discernir a existência de um Alcibíades entre os políticos modernos”. Mas é verdade que, assim como o destino de Alcibíades o destruiu arrastando Atenas com ele, também o destino de Boris Johnson o pode destruir arrastando com ele a desintegração do Reino Unido. Como diz Romilly: “Tudo começa com pequenos escândalos de um individualismo insolente para prosseguir com as intrigas de uma política aventureira – até ao dia em que os escândalos refluem sobre si próprios violentamente. Em democracia, o escândalo sempre tem sido e continua a ser um perigo”. Publicada em 1995, esta notável biografia devia ser leitura obrigatória para políticos…