O digital atingiu-nos como um cometa radiante, e com a profunda transformação tecnológica que desencadeou, os livros em papel surgiram em quase todas as listas das espécies ameaçadas. Seriam preservados, naturalmente, uns poucos espécimes mais nobres, amparados por um culto de pequenas seitas de resistentes, adorando esses ícones sagrados da era antediluviana. Mas, de acordo com as profecias, o livro digital já deveria ter tomado conta do habitat do outro, apagando os vestígios de uma desnecessária ocupação do espaço. Nem faria muito sentido que continuassem a existir espaços como as livrarias. No entanto, certos hábitos criam uma ferrugem nos próprios sentidos, e o certo é que se imprimem hoje mais livros em papel do que nunca.
Como notava o romancista espanhol Antonio Muñoz Molina, o livro impresso, tangível e que tanto preenche a prece das mãos, conta “com um desenho muito prático, ao mesmo tempo resistente e flexível, barato de produzir – é uma obra prima da simplicidade e eficiência, como uma colher ou um copo ou um veleiro”. E acrescenta que não lemos apenas com o olhar, do mesmo modo que não nos pomos diante de um quadro ou de um edifício para o apreender apenas com os olhos: há o tato, a leitura absorvida com a ponta dos dedos, o corpo inteiro que se envolve e faz parte das nossas ferramentas cognitivas.
Não vale a pena, no entanto, fingir que o livro soube ser um obstáculo a um avanço que tem marcado uma alteração brutal no regime da nossa atenção. Em certo sentido, o livro foi adaptado, e pagou um alto preço pela sua sobrevivência. Cada vez mais, como nota “o mais indómito e polémico crítico cultural italiano”, Alfonso Berardinelli, o risco mais frequente na vida de um leitor é perder tempo com livros que o melhor era que nem fossem lidos, nem publicados ou escritos sequer. Lembra que o livro, face aos critérios editoriais hoje em voga, já não tem inscrito em si nenhum valor – este valor só o ganha se a sua leitura vale a pena. “No caso atual, de sobreprodução de livros, os piores inimigos daqueles livros que vale a pena ler são os inumeráveis exemplos daqueles que os sepultam, e dos quais nos esforçamos por defendê-los.”
Nabokov pressentiu o que aí vinha, e disse: “Fujamos, o ruído acabará derrotando o mundo.” Ler de forma criativa é em si mesmo uma forma de escapar aos ímpetos consumistas que a época tanto espicaça, mas sabemos também que “não há nenhum outro setor da produção e do comércio tão necessitado de uma revolução, de uma destruição que faça tábua rasa da ordem existente” como o do livro. A reinante lógica mercantilista está-se nas tintas para o prestígio que este objeto acumula, custosamente, ao longo dos séculos, e os ‘criativos do marquetingue’ não têm o menor pejo em aproveitar a boleia do seu capital simbólico, e por isso não faltam campanhas de apoio à leitura em que o lixo editorial assume destaque e se impõe, “canibalizando” as obras que teria valido a pena ler. Resta assim ao leitor que não se limite a fazer de peixe morto, deixando-se empurrar pela corrente, a desmontar o artifício, suspeitando de tudo o que tão facilmente lhe chega às mãos.
Jean Cocteau notou há algumas décadas que o culto da velocidade estava a causar uma degradação da sabedoria sensível e artesã, ao ponto da paciência e mesmo da destreza manual, essenciais à criação do que temos de melhor, estar a desaparecer. “Ler foi em tempos uma fabulosa habilidade. Está a cair em desuso. As pessoas apressam-se, saltam linhas, vão ao fim saber como a história acaba”… Assim, se hoje encaramos a leitura como uma forma de insubmissão, isto não pode ser separado da reivindicação de um tempo próprio. Há uma lentidão frutuosa neste trajeto que se vai distanciando do mundo e do seu ritmo tão impositivo. Passadas umas horas, todo o leitor sente que naufraga, colhendo os destroços que lhe são inúteis, reunindo do mundo as partes que lhe interessam numa jornada íntima. É como um ato de exceção que a leitura vai roendo essa estrutura que nos prende e submete a uma razão partilhada. O escritor francês Daniel Pennac fala mesmo num “paraíso da intimidade” que os livros proporcionam”, e frisa que uma das suas funções essenciais consiste “em impor uma trégua ao combate entre os homens”.
É nesta paz, por vezes tão árdua, que cada um de nós vai cultivando uma consciência capaz de uma vital insubordinação, dessa forma de desafio que nos leva a repudiar os lugares comuns, e, enfim, de pôr em causa essa azucrinante narrativa que tanto sufoca a própria imaginação. “Ler é atraiçoar as versões mais precárias de nós mesmos”, diz-nos Karina Sainz Borgo. Numa resenha a um volume reunindo vários ensaios de Berardinelli publicado em Espanha – Leer es un riesgo (ed. Círculo de Tiza, 2016) -, a jornalista cultural e romancista de origem venezuelana lembra ainda que “ler só é possível graças ao silêncio”, do qual, por sua vez, só gozam “os homens e as mulheres que são capazes de defender essa solidão que o torna possível”. Mas o curioso, como ela refere, é que esta é uma solidão que se entretece acompanhando tantas outras e gerando assim um espaço de comum acordo.
Vale a pena citar o parágrafo inicial daquela obra de Berardinelli: “Ler é um risco. Ler, querer ler e saber ler são costumes a que nos entregamos com cada vez menos garantias. Ler livros não é algo natural e necessário como caminhar, comer, falar ou usar os cinco sentidos. Não é uma atividade vital, nem um plano fisiológico ou social. Vem depois, implica uma atenção especialmente consciente e voluntária a si mesmo. Ler literatura, filosofia e ciência, se não é feito por obrigação, é um luxo, uma paixão nobre ou ligeiramente perversa, um vício que a sociedade não censura. É tanto um prazer como um desejo de melhorar-se. Requer um certo grau de capacidade, de introversão e concentração. É uma forma de se sair de si mesmo e do ambiente que nos rodeia, mas também um meio de se conhecer melhor, para nos tornarmos conscientes da nossa ordem e desordem mental”.
Quando o crítico fala num vício que a sociedade não censura, recordamos os tantos momentos históricos em que a influência de certos livros foi de tal modo ameaçadora, que podiam desestabilizar os códigos sociais e morais – eram então proibidos, até queimados. O fogo dos nossos dias é o ruído. Por isso todas as campanhas de leitura são inúteis, os melhores esforços acabam abafados. A ideia de tentar dar visibilidade ao que há de melhor esbarra e acaba humilhada face ao toque de clarim das campanhas de venda com que as “bestas céleres” chegam ao mercado. Neste contexto, se a crítica literária não se curva e não se limita a seguir essa histérica romagem, mas se obstina em cumprir o seu papel, é tida como uma impertinência, algo que se enxota como uma incómoda mosca. Para Berardinelli, nos nossos dias, o crítico cultiva a sua independência e até faz melhor o seu trabalho se tiver algo de misantropo. E a misantropia aqui, como explica Savador Cobo, o filólogo responsável pela reunião e tradução do volume de ensaios já referido, serve como “um notável antídoto para se usar contra as sociedades modernas, nas quais a socialização nos coage a uma participação conformista, a fazer o que todos fazem, a dizer o que todos dizem, a ter gostos que todos têm”. É este o terrível veneno que leva a que tantos leitores apenas procurem esses livros que fazem pandã com esta ordem determinada em implodir a solidão e dominar com o seu ruído o silêncio de cada um de nós.
Com uma atitude ferozmente pessimista em relação à tecnologia, e convencido do impacto negativo que esta tem tido na produção artística, o romancista norte-americano Jonathan Franzen defende que a tecnologia e o consumismo parecem alimentar-se um ao outro para criar a vertigem que tomou conta das nossas vidas. Nota como conseguem ser sedutores e invasivos produzindo, ao mesmo tempo, uma sensação crescente de vazio, uma insatisfação permanente. E defende que é isso que nos faz recorrer mais e mais a eles, tornando-nos dependentes. “Essa forma de pensamento em colmeia da internet e os constantes estímulos dos aparelhos eletrónicos começa a erodir a própria noção de um indivíduo que é capaz de construir algo como um romance.”
Franzen assume a sua irritação sempre que vê o empolgamento das pessoas diante algum novo pequeno milagre tecnológico, afirmando que os computadores estão a transformar até a nossa noção do que significa ser-se humano. “A implicação de toda esta gente radiante com estes avanços é que estamos a mudar para melhor. Pela minha parte, quando olho para as redes sociais, o que vejo é um mundo onde o que os adultos se comportam como um bando de putos do oitavo ano no refeitório do liceu.”
Também muito crítico da utilização das novas tecnologias, Berardinelli assume-se um nativo do passado, alguém que prefere desenhar a sua resistência recorrendo a todo esse arsenal tornado obsoleto, mostrando-se orgulhoso da sua desconexão. “As tecnologias e telemáticas são a minha besta negra, ou melhor ainda, os meus moinhos de vento. Não são inimigos a combater. Eles venceram desde o princípio, e domesticaram também a mente humana que pensa que as criou para ‘usá-las’, para tê-las ao seu serviço”, escreve o crítico literário que, em 1995, agitou as estagnadas águas da Academia renunciando à sua cátedra depois de duas décadas a dar aulas. Beradinelli voltou as costas ao ensino por muitas das razões que tantos outros professores no ensino superior denunciam e lastimam mas para as quais, afinal, contribuem, submetendo-se. Cansado da burocracia e das suas corrupções, farto de dinâmicas educativas em que tudo tende para o “embrutecimento”, para rotinas “degradantes”, em que as universidades, em lugar de serem lugares de saber, se tornam linhas de montagem infernais em que o sistema de avaliação se impõe a tudo de forma obtusa. E a questão da educação, seja o secundário ou o ensino superior, é uma batalha tão perdida que Berardinelli não hesita em assinar a sua sentença, afirmando que não há outro recurso senão a via auto didata. E se, nesse aspeto, a internet e as novas tecnologias são vistas por muitos como uma forma de alargar horizontes, e ter todo um manancial de saber a alguns cliques de distância, o crítico diz que não acredita que o mais importante seja ensinar os jovens a utilizá-las com critério e equilíbrio. “O gigante tecnológico que inventámos para nos tornarmos ubíquos, omniscientes e mais rápidos do que a luz, já começou a brincar connosco ao jogo do gato e do rato. Não somos os seus amos, somos os seus escravos”, diz num artigo com o título “Contra a desmemória 2.0”.
Neste texto, Berardinelli defende que a acumulação de dados, de informação, de saber disponível, não conduz a um conhecimento em profundidade, e que é a quantidade que se está a impor à qualidade, com o cérebro a habituar-se a uma dependência que conduz à letargia diante da luz brilhante de tantos ecrãs, acabando por delegar “na máquina um número cada vez maior de funções cerebrais”. Face a isto, questiona: “Em que estado acabará a memória, mãe de todas as musas; a vontade, que permite levar a cabo escolhas; a sensorialidade, que te vincula ao ambiente físico; a capacidade manual, que caracterizou o Homo Habilis, a capacidade de se orientar no espaço, etcétera?”
E no ensaio “Eu já não leio, sou digital”, o crítico deixa a seriedade e lança-se numa formidável sátira contra o leitor digital: “Não sou passivo, sou interativo. E tudo isto sem abrir um só livro. Sei mais (virtualmente posso saber tudo) de literatura latina que um velho filólogo. Não tenho memória. E, não obstante, a minha memória é infalível. (…) Além do mais, o autor é autoritário. Quer que aceite a sua maneira de fazer avançar a história, a sua forma de a iniciar e concluir. Impõe-me os seus gostos. O livro é antidemocrático, é anacrónico. Deixem de dizer que lemos pouco! Cada vez leremos menos. Somos mais livres. E virtualmente saberemos sempre mais.”