Sebastião Belfort Cerqueira. Como num filme de Jacques Tati

Sebastião Belfort Cerqueira. Como num filme de Jacques Tati


Em Monda, o terceiro livro do autor, surge-nos o anti-herói no seu esplendor, chinelando pelos poemas enquanto causa desacatos e motins, desses bem ao gosto popular


Para quê — rosnam alguns — escrever sobre um livro se vais dizer que não presta? Se os versinhos daquele não se aguentam, ou são assim-assim, porque não dar atenção a outro, um desses que não deixam grandes dúvidas, só margem para o espanto e a admiração? Parece haver aqui um princípio utilitarista da crítica, que apenas lhe reconhece algum valor pela capacidade de dar mais ou menos visibilidade ao que se vai escrevendo. Já aqui há uns anos, o poeta Vicente Molina Foix havia reparado que “hoje a literatura se vive num armistício, do qual por vezes lá sai um francoatirador”. Mas das velhas batalhas, acrescenta, só restam uns poucos livros melhor ou pior cicatrizados, traidores da causa, que caíram no campo de honra. “E há os sobreviventes, que se mantêm no que é seu, escrevendo para ser lidos, não para ser lendas.”

A própria juventude parece compadecer-se de si, aguardando a sua vez, numa de mosca, tentando que se dê por ela sem ir ao ponto de chatear tanto que a esmaguem. Mas aquele ânimo absurdo, aquela razão furiosa, descabida, onde ficou? Isso que permitiu a um dos raros poetas que entre nós legislava, pôr a coisa nos termos mais veementes: “Toda a juventude é vingativa.” Sem grandeza nem tragédia, o que vem por aí em nome da juventude não dói nada, nem quer horror nenhum, antes, de tão prudente, e educada, cansa mortalmente. E se formos ver à poesia, há no seu desalento uma forma de cumprir a praxe, um aceno respeitoso aos burros velhos, um modo de falar a velha língua, inexpressiva, que se baba mais do que zurra. É uma sonsice pegada, e o lirismo ou brinca ou se coça. Perdeu-se a fé na poesia como arte com a obsessão do inefável, a tal maçã que se atira para o outro mundo, a ver se o fruto rola de volta trazendo algum conhecimento ou sabor mais fundo.

Então, mas onde quero chegar? No que toca à crítica, às vezes é mais produtivo analisar essas infecções oportunistas que atacam o organismo literário quando este tem as defesas em baixo. Quando se monta já como festa, e se celebra a si mesmo, sem peso nenhum na consciência, sem angústia, e da rosa só fica a gentileza sem resistência nem espinhos. De resto, ainda há a falta de coragem num país que, como disse Sena, é um quarto: “quando se dá um estalo num acerta-se em vinte”. E aí é que se consegue ver 20 juntos, mas nem 20 nem 40 neste ambiente de tão baixa moral dão para organizar uma vingança de temer. Mas o ponto é este: pode ser tão ou mais instrutivo determo-nos sobre os vícios naturais, as deformações para as quais a própria época já nos empurra.

De um mapa literário sem romanos nem bárbaros, é de esperar que a paz seja uma podre forma de conveniência. Assim, da delapidação da juventude, restam apenas os fogachos, a conversada dos novos, dos novíssimos, o render de turnos frente a um deserto já sem ameaça. E porque os talentos mais e menos raros, apesar de tudo, se vão renovando, se a literatura já não propõe odisseias, ainda tem as suas expedições com guia turístico e os seus carnavais. Nisto, é natural que o que melhor atenção reúne hoje seja um autor a quem se elogia o bom comportamento, “a lúdica oficina”.

Sebastião Belfort Cerqueira (n. 1987) é um poeta cheio desse talento fácil de engolir. Diz que chegou à poesia através da música, que às tantas até quis ser rapper, mas lá se contentou com a desusada graça da refrega muda na página. “Monda” – um belo título para um livro de versos, na sugestão que deixa desse esforço de expurgar a coisa de tumultos daninhos, sentimentalidades que aderem como aos muretes dessas poesias de coçar estados de alma corriqueiros – é o seu terceiro livro, depois de “El Segundo” (edição do autor, 2015) e “O Pequeno Mal” (Sempre-em-Pé, 2011). Voltando ao catálogo da marginalíssima Sempre-em-Pé, a edição é de uma pobreza que dá dó, num desleixo gráfico que, curiosamente, fica perto de lhe conferir uma certa graça.

Logo nas primeiras páginas, vem-nos ao caminho a sugestão de uma espécie de orgulho de bicho do mato, uma forma de virtude ronceira de quem diz que chegou à poesia e encontrou tudo num atavio que lhe mereceu as maiores suspeitas, e diz: “Fiquei mal habituado/ De beber só água suja/ E remar contra clichés (…) E num sentido de início/ Achar quase que é normal/ Pegar nas coisas do avesso/ Endireitá-las no peito/ E acabar magoado// Cresci assim desse jeito/ Fiquei mal habituado.”

Todo o livro vai roçando a bazófia, pondo uma pedrinha sobre a outra, enquanto não dá um safanão que, cortando com a moleza de quem canta baixo para si mesmo, aqui e ali nos põe em sentido. De resto, vem à boca de cena dar uma nota como quem houvesse deixado lá atrás a viola, por falta de paciência de afiná-la. Segue num meio-tom, como murmúrio que, sem aviso, como alguém inclinado sobre o braço da cadeira, pode acabar cantando, criando um registo de confiança, bastante cómodo.

Se há uns anos, escrevendo sobre o livro anterior, elogiámos esta poesia “na margem oposta aos baixos ombros, à triste confissão, e livre da denguice que vem tratando o leitor por vossa excelência”, e se a cantoria de um fino tunante a tentar enfiar-se no ambiente de uma fita do Jacques Tati não pode deixar de embalar-nos por momentos, pressente-se nesta poesia um acto de rendição, uma poesia que dá a patinha, pede uma festa. E sim, há as imagens que se atravessam, às vezes, como num rapto, até pela força que se torna inesperada em face da aridez que reina em estrofes que escorregam como licor, como essa de um rio preto que dá um nó na forma como “Todas as pedras do fundo/ Prendem-lhe a voz no lugar”. Mas há, ao mesmo tempo, uma necessidade de vir desfazer, como se o poeta se envergonhasse dos apontamentos mais ferinos, para corrigir, recuando para a pose  do mocetão desligado, demasiado blasé para se importar, para respeitar o aprumo lírimo, antes forçando um desmazelo um tanto farsola.

Nessas alturas, quase desmerece o transpirado vigor de uns versos que fingem a espontaneidade, mas são refrescantes precisamente por serem tudo menos isso. Às tantas, fala em “Trazer no tom/ Não sei quê de água corrente/ E um quê de sol sabido e preguiçoso”… São momentos assim em que nos pomos a sacudir-lhe os versos à espera de outros frutos como este. Só que a escassez parece a receita para este efeito de preciosidade: fazer-nos andar. E se, como é próprio de um número de comédia, finge rebaixar-se, vai sendo verdade quando nos diz: “Cá dentro há meia ideia/ No fim é versos dois preguiça dois”. E uns versos depois, este nosso poeta com um tico de acidez no seu fadinho popularucho, retoma o mote: “Cá dentro uma arte incerta/ De malha larga e lassa/ Sem esperança de resgate”.

Assim, o que desconsola é isto de dizer mal do cavalo, para saltar para cima da mula lírica, ou levá-la pela corda, carregando o fardo de ser esta uma época demasiado cínica para se desenhar horizontes mais largos. Parece até que o rasgo poético se aguenta melhor como rodela de limão no copo meio vazio dos dias. A gota que chega para deixar aquela careta, uma flor sacada de trás da orelha do leitor, nada pretensiosa, dessas que aparecem entre as malvas, como um dedo do meio da natureza, para nos comover com a sua graciosa má-criação. Não lhe falta o apontamento bravio, como um galho que estala, um pendente no meio das silvas que agarra a atenção do leitor de hoje, sempre a mil, sempre tão distraído: “A duas braçadas do fundo/ O susto maior que o sol/ Que é como um candeeiro na noite errada”.
Esta poesia funciona lida entre o ruído do fundo, entre a bandalheira onde a atenção se acha como numa trincheira, a dormir com um olho aberto, ou só meio acordado e a deslizar um palito de um canto ao outro da boca: “Noite debaixo do dia/ Dia sentado que espera/ E que assobia sem saber de nada”. Mas se a coisa avança nesse registo solerte, se é um livro que será salvo pela insistência nos versos mais gingões – aqueles que iremos sublinhar, dando à segunda leitura um tracejado para não perder tempo com a palha –, o que fica à faltar é um fundo menos falso: “Entre a rotina/ Aborrecida/ De um bicho/ E o céu que pode faltar// Sobre o mar/ Como um destroço/ À procura de ir ao fundo/ Da questão que ninguém pôs”.

Quem tenha ainda a insensatez de esperar grandes coisas da poesia, mesmo nos nossos dias, é nestas alturas que sente um formigueiro, aquele ronco do estômago vazio, porque, mastigando esta pastilha, o que se vê é um bailinho de aldeia com os clichés da cidade. E note-se que não estou a recolher aqui a fruta mais tocada, aquela que, com tanta conversa sobre o mar, sabe apenas a água da torneira. Deixo o confronto com esses versos para o leitor que se dê ao trabalho de comprar o livro e o ler. Prefiro antes chamar aqui esses “frutos estranhos” que nos sugerem que, neste poeta, um outro empenho lhe teria permitido arrancar a árvore com raízes e tudo… o choro do vazio na terra também; passar isso a limpo, vendo então chegar os pássaros, possivelmente deixar na página essa estação fora do lugar em que ninguém (nem Deus) tinha pensado.

De resto, há que notar que a consciência está lá, mesmo se tímida, e o disgnóstico, se não alarma, é bastante claro: “Filho de um tempo esquinado/ Fruto esquisito da árvore/ Em que me vi pendurado/ A arder do sul e da sarça/ Não tenho bem destrinçado/ Se é mal do cú ou das calças/ mas esta vida não serve”. Isto é a primeira estrofe do poema; admirável. A segunda é como um rebobinar a cassete, quando estávamos com água no bico, ansiosos por um passo além do ponto onde já tínhamos chegado. “E se este não apertado/ Se me fixou na garganta/ Como uma ideia não deve/ Disfarçar não adianta/ A queda está para breve/ E volta tudo ao princípio.” Volta tudo ao princípio, e é uma pena. Fica a batida, damos por nós a repetir a letra, mas, no fim, a letra não nos leva mais longe.

Seja como for, não se pode apontar ao personagem uma mania da grandeza. Isto se descontarmos os momentos em que puxa pelo orgulho de um poeta Aleixo que veio rir-se dos da cidade: “O meu mal é ter raízes das compridas/ Arraçado de eucalipto/ Sede e sombra/ Quando toda a gente acha que aviões”.

O mal nem está nos versos, mas na atitude que se lhes sobrepõe, essa luz outoniça que cansa a paisagem, e lhe diz que está na hora de se recolher. Assim, além da tentação do poema-piada, do persistente tom de chalaça, pior é a sensação de que a frase um dia ainda abre um negócio, dessas que acabam na t-shirt: um dito espirituoso para toda a gente ver. Lembra-me de ver um aqui há uns anos um com pinta de Tintim no Congo literario e que tinha até um pin preso na camisola onde se lia: “I’m a poet”.

Está prestes a ser só isso: mais uma etiqueta para se ficar na palheta junto ao bar, enquanto outra enfadonha leitura decorre num minúsculo palco com a altura de um degrau ou dois. E os versos mais vivos dão a ideia de um gato escondido com o rabo de fora, um golpe desaproveitado, quase melancólico: “Perdemos um outono/ Que é quando o sol se põe e deixa provas/ E podemos apagar-lhe as pegadas/ Compará-las com as nossas// Vamos saber se é muito/ Se é demais pedir/ Pra sermos entre as árvores e o resto/ Um dia no qual ninguém acredita.” São demasiadas as cedências a um tempo afectado, com os seus críticos e poetas desiludidos, enfastiados, e que nao esperam nada dos mais jovens, nada senão que formem a linha nas suas costas, como um rabicho desfiando-se. Esse ar “De quem se acha poente/ De quem se deita por dentro/ E não se quer levantar”. Dos novos apenas se pede que observem alguma discrição, como se houvessem entrado numa casa mortuária, onde o proverbial defunto é velado. Pede-se que não molestem as viúvas nem os seus velhos animáis de estimação, esses que da poesia fizeram um luto contínuo, esses que dizem que escrevem poemas, como trôpegos músicos de uma corte no quinto dos infernos.  “Porque é que muitos escrevem?” perguntou certa vez Kraus. E respondeu: “Porque lhes falta o carácter para não escreverem.”