Está o “abominable mystery” de Darwin  perto de ser desvendado?

Está o “abominable mystery” de Darwin perto de ser desvendado?


É um dos maiores mistérios na comunidade científica: como surgiram as plantas com flor? A resposta poderá estar numa nova descoberta com participação de um investigador português.


Corria o ano de 1879 quando Charles Darwin cunhou, numa carta ao seu amigo Joseph Hooker, uma expressão que os anais da História não apagaram: “abominable mystery”. Referia-se o pai da teoria da evolução àquele que é, ainda hoje, um dos maiores mistérios da botânica: qual a origem das plantas com flor? Graças a um investigador do MARE – Centro de Ciências do Mar e Ambiente da Universidade de Coimbra e à sua equipa, talvez estejamos mais perto da resposta. Mário Mendes, em colaboração com investigadores do Instituto Paul Scherrer, em Zurique (Suíça), descobriu estruturas femininas e masculinas de plantas fossilizadas até agora desconhecidas da comunidade científica que levaram à criação de um novo grupo de plantas, batizado BEG.

“Desde 2008 que começámos a encontrar estruturas de plantas que não compreendíamos muito bem o que eram”, recorda ao i Mário Mendes, que é também professor na Universidade de Coimbra. Para já, o investigador encontrou apenas estruturas femininas e estruturas masculinas, em locais diferentes. “Enquanto as estruturas femininas – sementes – foram encontradas na jazida de Catefica, as estruturas masculinas foram encontradas na jazida de Vale de Água. Infelizmente, ainda não tive a sorte de apanhar a planta, mas ainda espero apanhá-la”, afirma.

O estudo mais detalhado das estruturas permitiu perceber que as descobertas partilhavam características de várias ordens de plantas, o que explica o nome do grupo – BEG são as iniciais de Bennettitales, Erdtmanithecales e Gnetales. “As plantas do grupo BEG são contemporâneas das primeiras plantas com flor, que apareceram no Cretácico Inferior”, esclarece o investigador. As Bennettitales e as Erdtmanithecales estão extintas, mas as Gnetales ainda têm, atualmente, um representante – a Ephedra, um arbusto.

Mas como é que as estruturas encontradas podem ajudar a desvendar o “mistério abominável”? É que, a partir da análise às várias amostras recolhidas no campo, os investigadores suspeitam que o grupo talvez possa tratar-se de um grupo de transição, o que pode explicar como surgiram as angiospérmicas (plantas com flor). “Ao analisarmos com detalhe aquelas estruturas reprodutoras, começámos a perceber que talvez este grupo, além de novo, poderia até ser um grupo de transição entre as gimnospérmicas e as angiospérmicas. Na verdade, as plantas do grupo BEG até estão mais associadas às gimnospérmicas – nós, aliás, catalogamo-las como sendo gimnospérmicas –, mas as suas estruturas reprodutoras apresentam algumas analogias com as estruturas reprodutoras das plantas com flor, as angiospérmicas”, o que leva a equipa de Mário Mendes a suspeitar que possa ter havido “uma transição gradual” de um tipo de plantas para as outras.

Como elucida o investigador do MARE da Universidade de Coimbra, o aparecimento de uma nova espécie ocorre em circunstâncias normais de forma gradual, mas no caso das plantas com flor não se sabe exatamente o que aconteceu e persistem muitas dúvidas relativamente à sua origem, que é descrita como repentina. “O grande mistério que há na comunidade científica desta área é perceber como é que as angiospérmicas aparecem tão rapidamente no Cretácico Inferior e outros grupos de plantas se extinguem. Como é que estas plantas aparecem tão subitamente? Bem, se calhar não foi assim tão subitamente quanto isso. E esta nossa investigação levanta a hipótese de, afinal, ter havido ali uma fase de transição”, explica Mário Mendes.

As descobertas, de resto, já foram dadas a conhecer à comunidade científica, em artigos publicados nas revistas Review of Palaeobotany and Palynology e Grana.

Passo a passo até à grande descoberta

A confirmar-se que se trata, de facto, de um grupo de transição, a descoberta pode abrir horizontes para o nosso conhecimento botânico.

Mas não foi fácil chegar aqui e a investigação envolveu vários passos pelos quais tanto as estruturas femininas recolhidas na jazida de Catefica como as estruturas masculinas encontradas na jazida de Vale de Água passaram. “Os restos encontram-se conservados naqueles níveis argilosos mais escuros da jazida. Recolhemos alguns blocos e levámo-los para o laboratório”, explica ao i Mário Mendes. A seguir, o primeiro passo foi secar completamente a argila. Já seca, a equipa colocou-a dentro de um recipiente com água, para conseguir desintegrá-la. Como se consegue essa desintegração? “Forma-se uma espécie de uma papa e tudo o que é material incarbonizado [processo de fossilização] dispersa”, esclarece o docente da Universidade de Coimbra.

Depois, usando um chuveiro e um crivo com uma malha de 250 micra, “despejámos o recipiente com a argila, que é filtrada pela malha, onde fica retido o material fossilífero que houver”, explica o investigador. Esse material foi depois seco ao ar – não pode secar na estufa para evitar fragmentar o carvão, uma vez que as partículas incarbonizadas são particularmente sensíveis. Já seco, foi observado à lupa binocular. De seguida, o material foi então bem lavado com ácido florídrico, “para eliminar todos os restos de material mineral que pudessem estar agarrados e ficar completamente limpo”. Só aí foi possível aplicar a técnica de microscopia eletrónica de varrimento, que permite ver praticamente tudo. “É possível, por exemplo, ver a estrutura das sementes, se há pólenes, de que tipo são, entre outras características”.

Este método, contudo, não deixa ver o interior, mas o avanço da tecnologia possibilitou a criação de uma outra técnica que o permite: a microcenografia de raio-X por radiação de sincrotrão. O nome é difícil, mas Mário Mendes descodifica o mecanismo: “É como se fosse uma TAC, é uma técnica não destrutiva. O melhor aparelho que existe na Europa – só existem dois – está na Suíça, no Instituto Paul Scherrer. O aluguer é muito caro, na ordem dos milhares de euros, mas é um passo muito importante na análise”, conta ao i. E como funciona? A amostra recolhida é colocada na máquina, que acelera as partículas e vai transmitir energia aos eletrões e aos protões, possibilitando a visualização de toda a estrutura no seu interior sem que o espécime seja destruído.

Estudadas estas estruturas, o investigador anseia agora, numa primeira fase, por encontrar estruturas masculinas e femininas no mesmo local – depois, encontrar a planta fossilizada, idealmente com as estruturas femininas e masculinas in situ.

Um grupo de plantas quase exclusivo do país

Os espécimes que se enquadram neste novo grupo agora descrito só têm vindo a ser encontrados, em grande quantidade, em Portugal e nos Estados Unidos (EUA), no Grupo Potomac. Além disso, poucos mais registos existem: “Já foi descoberta uma semente na Dinamarca e, na zona da Europa central, julgo que já apareceu qualquer coisa também, mas não com esta intensidade”, destaca Mário Mendes. E como explicá-lo? “Pode ter que ver com as condições ambientais mas, na verdade, ainda não percebemos exatamente o porquê de se encontrarem com maior intensidade nestes dois locais”, responde o investigador.

O facto pode impressionar quem não esteja por dentro da matéria mas, como Mário Mendes assinala, o país tem uma grande vantagem em relação a outros: é que, em Portugal, o Cretácico “está muito bem representado”.

“Temos toda a sequência, desde a idade Berriasiana até à Maastrichiana, todo [o Cretácico] está representado. Nos outros países há hiatos, há andares que não estão lá. Não é por acaso que os estrangeiros vêm cá, levam o nosso material e, depois, nós ficamos prejudicados e ninguém quer saber”, lamenta.

No ano passado, Mário Mendes já tinha denunciado o problema ao i: em Portugal, ao contrário do que acontece com os vestígios arqueológicos, não há legislação que proteja as descobertas feitas no âmbito da paleontologia [ciência que estuda os fósseis de animais e plantas]. Por isso, nada impede que os investigadores estrangeiros transportem para os seus países fósseis que são património português.

Além de um novo grupo, uma nova espécie

Este ano, o investigador português já fez mais do que uma descoberta: além de um novo grupo, Mário Mendes descobriu também uma nova espécie. “Foi descoberta por mim, recolhida em janeiro deste ano. Quando olhei para ela parecia-me uma flor, parece que tem três carpelos [folha floral feminina que produz os gâmetas femininos – óvulos], mas não são, são conjuntos de três sementes. E não só é nova espécie como também é novo género”, explica.

Ainda não foi publicada – de acordo com Mário Mateus, “sairá em breve na revista Cretaceous Research” –, mas já tem nome: Battenispermum hirsutum. Porquê? “O nome do género, Battenispermum, é dedicado a David Batten, professor emérito da Universidade de Manchester que morreu vítima de cancro, em fevereiro”. Quanto ao nome da espécie, hirsutum (hirsuto, em português, que se diz sobre o que tem pelos longos), justifica dizendo que “tem uns pelos muito bonitos cuja função ainda não se percebeu bem qual é, mas parecem envolvê-la”.

O problema do financiamento

Apesar de ter um português envolvido, esta investigação foi financiada pelo Swedish Research Council. É que, se lá fora a investigação fundamental, a dita clássica, é considerada tão prioritária quanto a investigação aplicada – que tem retorno financeiro direto, como a medicina ou a indústria farmacêutica –, por cá, a visão existente é ligeiramente diferente. “Desde que foram criadas áreas prioritárias, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior financia essencialmente investigação aplicada, porque tem retorno financeiro direto, quantificável e tangível, e deixa à margem a investigação fundamental, que é extremamente importante. Isto não acontece em países como Espanha, França ou EUA, que investem seriamente neste tipo de investigação. Eu sei que a investigação é cara, mas acredito que a ignorância é muito mais cara”, avisa Mário Mendes.

O investigador destaca, no entanto, “a sensibilidade” de algumas entidades que se têm disponibilizado a financiar alguns dos seus trabalhos em paleobotânica – como é o caso, por exemplo, da Fundação Millennium BCP e da Fundação Amadeu Dias. “Se continuarmos a caminhar neste sentido, o que vai acontecer é que determinadas áreas do saber, daqui a uns anos, vão desaparecer e vamos ficar prejudicados em relação a outros países”, alerta o docente da Universidade de Coimbra.