A Vergílio Ferreira devo muito do que sou e neste muito está também a dádiva de dois dos meus mais queridos amigos: Lídia Jorge e Luís Mourão. A Lídia está felizmente perto e ao alcance do meu afeto por ela, mas o Luís, que haverá sempre de viver no meu afeto por ele, está já longe, mas longe de uma lonjura impossível de vencer pelo domínio do espaço que nos separa. Uma cartografia impossível. Esta manhã, enquanto me despedia dele numa igreja de Braga, voltei a sentir a estranheza que de facto foi a minha há vinte e três anos, no dia em que Vergílio morreu: seja o que for que existe ou acontece quando a morte chega ele já o sabe. Isto pensei há vinte e três anos e isto pensei hoje de novo, ao pé do Luís, enquanto conversávamos em silêncio como se, a partir de agora, nada tivesse que mudar no modo do nosso convívio. Luís, vamos fazer como as crianças nas suas lúdicas ficções, olha, faz de conta que eu sou a médica e tu és o paciente, de que se queixa o senhor, dói-lhe o dente? Ah, não se preocupe, a anestesia não custa nada e daqui a pouco vai livrar-se deste dente, podre como o mundo, e tudo voltará a ser como dantes. Mas por mais força que eu fizesse (e foi uma força jurássica, como a dele em tudo), o dente não quis sair e o pano finalmente caiu sobre o palco de Creta: o mundo continua podre, como o dente que o afligia um pouco mais acima da boca (no cérebro, que tantas alegrias nos deu) e o Luís acabou engolido pelo Minotauro.
Quando soube que estava doente, Luís Mourão descobriu-se grego, ou melhor, descobriu a palavra e o sentido para aquilo que nós no fundo já sabíamos: que a doença seria nele uma oportunidade para continuar a aprender e aprender-se, redefinindo-se. Não se desafia o destino nem se negoceia com ele, aceita-se o seu poder e o seu tempo e procuramos adaptar-nos às suas leis obscuras. Mas nós, humanos, temos uma grande vantagem sobre o destino: ele é implacável e não altera nunca a sua rota, mas nós somos feitos de uma plasticidade infinita, pelo que para o Luís todo o impossível foi sempre possível até finalmente deixar de o ser. Cá para mim, o destino teve inveja do Luís, que ao saber-se doente decidiu reinventar-se e dedicar-se sem distrações àquilo que lhe era tudo: a leitura e a escrita, quer dizer, a palavra, em todos os seus estados. Creio que o destino deve ter tido inveja também da palavra fulgurante do Luís e é bem feito para ele, que tem no seu veneno a semente da própria punição: as palavras do Luís serão apenas nossas, sempre nossas e a ninguém mais pertencem, nem sequer ao Fado que maldosamente o subtraiu ao convívio connosco.
Ao Luís Mourão (que raríssimas vezes vi sem um livro e um lápis por perto, mesmo em momentos de convívio alheios ao labor da leitura e da escrita que é o de nós ambos) devo algumas das alegrias intelectuais mais poderosas da minha vida: ele não me deu o Vergílio, mas trouxe-o mais ainda para o pé de mim, quando eu julgava que isso já não era sequer possível. E deu-me a ver o seu Raul Brandão, inevitavelmente outro nas palavras certeiras e luminosas que dedicou aos textos brandonianos. Dizer que Luís Mourão é um ensaísta brilhante é falso, sobretudo porque é inexato; o que é exato é afirmar simplesmente que o autor de Sei que já não, e todavia ainda é um ensaísta, sem mais, porque ensaísta não é quem quer, mas quem nasce. Um ensaísta não é alguém que escreve sobre livros, mas alguém que sabe irmanar no mesmo sentido íntimo de fulguração a expressividade maior do pensamento à da forma literária que o serve. Os ensaios de Luís Mourão são sempre uma massa sólida de sentido e, todavia, não deixamos nunca de nos surpreender com a sua porosidade, porque são textos leves como penas, com a leveza daquilo que vive da substância funda de que é feito e disso mesmo faz a alma da sua alma. Na verdade, não li nunca um ensaio do Luís que não fosse para mim um ovo impossível de quebrar, sobretudo porque não saberia nunca como separar, no todo vulcânico dele, a gema do raciocínio da servidão gelatinosa das palavras, pois que em realidade não há ali nunca servidão, mas consubstanciação e nisso o Luís conseguiu reeditar, com sã e notória propriedade, a lição magistral de Eduardo Prado Coelho.
Mesmo aqueles que não tiveram a sorte de conhecer o Luís mais de perto podem sempre lê-lo, mas leiam-no com cuidado, porque os seus textos levam uma pessoa dentro. Como o seu autor, são textos de uma fundura de abismo e todavia serenos, humildes e autênticos e por isso mesmo tão fundamentais, tão até ao osso, tão belos, tão justos na medida de tudo aquilo que é mensurável e nem tudo é. O Luís Mourão era, para além de tudo o mais, um homem de uma grande ternura, profundamente gentil, tranquilo, humilde e generoso, qualidades que aprecio por sobre quaisquer outras. Ele sabia perfeitamente que o caricato exercício de nos pormos em bicos de pés, além de profundamente deselegante, é sempre um excesso inútil, porque a vida a todos ensina (se estivermos dispostos a aprender) que estamos sempre na retaguarda de tudo, mesmo quando o palco é a nossa condição. Sei que já não e todavia ainda, meu querido Luís, para sempre ainda no nunca mais que um dia nos sobrevirá a todos.