Mahmoud Darwich tinha 43 anos quando sofreu o primeiro enfarte. O seu amigo e escritor Tahar Ben Jelloun lembra-se de ter ido ao encontro dele no hospital em Viena, e de o apanhar com um cigarro por acender nos dedos, em busca de um isqueiro. Numa crónica que lhe dedicou, depois da sua morte, em 2008, conta o diálogo que tiveram: “Mas tu não tens permissão para fumar, o teu coração está frágil!” Ao que o outro respondeu: “O médico interditou-me os cigarros, o álcool e tudo o resto; eu disse-lhe que isso é a vida de um burro, coisa que não me interessa.” Dessa vez, chegou a estar clinicamente morto cerca de minuto e meio antes de ser reanimado, com recurso ao desfibrilhador. E desse raspar de cotovelos com a morte ficou-lhe a ideia de que não é nada que deva assustar-nos, que é um sono leve e indolor, nem alto nem baixo, nem uma coisa nem o inverso, mas como ser-se levado para lá do tempo e de qualquer emoção. Jelloun relembra que viria a ter outro enfarte, em 1998, e que manteve o mesmo ânimo em não deixar de saborear fosse o que fosse, não se preservando.
Mais de duas décadas depois, aos 67 anos, morreu a 9 de agosto de 2008, num hospital em Houston, no Texas. Três dias antes, tinha-se submetido a uma cirurgia de peito aberto, e antes havia assinado um documento em que pedia para não ser ressuscitado no caso de entrar em morte cerebral. Apesar de todos os problemas cardíacos, não foi a urgência que obrigou a que a intervenção fosse feita naquela data. Foi Darwich que escolheu o dia 6 de agosto pela sua ressonância histórica. Era o aniversário do bombardeamento de Hiroshima, e foi nesse dia que centrou o mais célebre dos seus livros de memórias, “Dhakirah li-al-nisyan” (Memória do Esquecimento), que relata a invasão do Líbano por Israel, e o cerco de 88 dias a Beirute.
Serve isto para assinalar como há muito Darwich tinha ganhado uma perspetiva um tanto irónica da realidade, movendo-se graciosamente entre a História e o mito. Sabia a importância muito relativa que devia dar-se a esta “estreita cápsula”, e preferia tomar a vida como um balanço que vem de trás, e chega mais longe, buscando a beleza entre os lençóis do visível e do invisível. (“Lês sem compreenderes o que lês, portanto lês mais, desfrutando do talento das palavras para o desvio do mundano”, lê-se a certa altura, no livro de que vamos tratar.) Depois daquele primeiro enfarte, outra das coisas que disse a Jelloun foi “não temos Estado, mas o que não nos falta é humor”. E da última vez que apareceu na nossa língua (que calhou ser também a primeira), na breve antologia “O Jardim Adormecido”, com seleção e tradução de Albano Martins, a certa altura tinha este momento de auto-reflexão: “Eu sou o que se designa como ‘o poeta da Palestina’ e requer-se de mim que fixe o meu lugar na língua, que proteja a minha realidade do mito e domine uma e outra, para ser ao mesmo tempo parte da História e testemunha do que ela me fez sofrer. É por isso que o meu direito a um futuro implica revolta contra o presente e defesa da legitimidade da minha existência no passado. A minha poesia está assim transformada em prova de existência ou de nada.”
Nascido na aldeia de Al-Birwe, na Galileia, em 13 de março de 1941, Darwich tinha sete anos quando o Estado de Israel foi criado. Perante o avanço das tropas judaicas, a sua família fugiu para o Líbano, enquanto outros foram enviados para os campos de refugiados de Sabra e Chatila. Al-Birwe conta-se entre as mais de 600 localidades que os colonizadores apagaram do mapa, dando lugar a um kibutz ou uma moshaw. Um ano depois, quando regressou com a família, chegou tarde de mais para ser incluído num recenseamento entretanto realizado pelas novas autoridades. Como explicou Margarida Santos Lopes, numa recensão no “Público” a “O Jardim Adormecido”, sem bilhete de identidade, Darwich ficou a residir em Deir al-Assad, também na Galileia, onde viveu escondido durante muito tempo até encontrar um estratagema que o retirasse da posição incómoda de ‘ausente-presente’ – como são classificados pessoas e povoações não registadas por Israel. Por fim, lá conseguiu convencer o governo de que não era “um infiltrado” e que não se recenseara porque estivera com beduínos no deserto, tornando-se um “palestiniano de cidadania israelita”.
“Na Presença da Ausência”, a autobiografia poética que Darwich publicou nem dois anos antes da sua morte, chegou-nos em outubro do ano passado, numa cuidada edição da Livraria Flâneur (Porto), com tradução de Manuel Alberto Vieira – não se sabe se do original, em árabe, ou se em segunda-mão. Escrito em prosa como uma longa oração fúnebre dedicada por Darwich a si mesmo, a partir do barzakh – uma espécie de limbo, referido no Corão como um espaço transitório entre a vida e a morte, onde a alma descansa enquanto aguarda o Juízo Final. Ao longo de 20 capítulos, o poeta reflete sobre a sua existência terrena entre o berço e o túmulo, e este texto, como mostrou Tetz Rooke, professor de árabe na Universidade de Gotemburgo, Suíça, assume um duplo caráter de previsão e testamento. Se o livro muitas vezes foi descrito como uma obra “saturada de morte”, onde o autor parece enfrentar a sua morte iminente, Rooke veio defender que se trata de uma obra que adquire novos significados a partir da morte do autor, e que, por isso, “Na Presença da Ausência”, mais do que o título de um livro, é uma instrução de como este deve ser lido.
O poeta sente-se como que adormecido, aguardando “uma segunda vida prometida pela língua”, e fala no há muito ansiado encontro com a morte, dirigindo-se a um leitor que sobrevivesse à colisão de um cometa com a terra, e assim, enquanto a sua consciência descansa, vislumbra esse outro corpo de signos, “são e salvo como prosa cristalina numa pedra que poderá verdecer ou amarelecer na tua ausência”.
Nuns momentos candente, noutros mais grave, quase solene, o tom ora vitalista ora desafiante deste livro é conseguido pela tensão que começa por ler-se no subtítulo que tem no original – “nass”, uma forma textual que, no árabe, sinaliza a libertação face à “tirania do género literário”, e à subversão das fronteiras estritas entre prosa e poesia. Como esclarece Rooke, nesta elegia o poeta moderno entrelaça narrativa e verso num texto que balança delicadamente entre a mundanidade e o lirismo, num movimento que configura a poética do autor. Darwich diz-nos que a prosa é a vizinha da poesia, e essa montada que o poeta escolhe soltando a rédea, por prazer, adiantando que “poeta é aquele que não se consegue decidir entre a prosa e a poesia”.
E se há livros cuja leitura, mais do que um entendimento, exige um acto de compromisso, este é certamente um deles. Como um testemunho que se oferece entre o desabafo e a oração, os ritmos e as imagens vão concatenando os sentidos e as impressões, momentos mais contemplativos seguindo-se ao relato de episódios marcantes na vida do poeta, sem abdicar do constante diálogo com a tradição literária árabe, uma vez que Darwich entendia que a renovação só seria profunda se ecoasse a própria história da literatura em que se insere. Um livro destes teria naturalmente de escapar à atenção daqueles que foram para as listas dos melhores do ano como quem vai para as corridas de cavalos, apostando nas exaustas pilecas nacionais. E isso não deixa de ser uma forma de justiça face a uma obra que não pode ser lida de uma vez, para depois se fechar para sempre, mas que se vai abrindo, lendo e caindo em nós como pétalas de uma ausência que vai pesando cada vez mais até que o vazio se torne como uma melodia que nos colhe nos momentos mais imprevistos. Como naquela recordação que guarda de Beirute indo dormir, para sonhar com um novo dia, sabendo que o de amanhã a obrigará a contar os seus mortos e feridos. “Deitas-te num silêncio ensurdecedor. Num silêncio universal, prenhe de violenta desolação (…) O silêncio tem paredes intriguistas – o vazio que difama o vazio. O silêncio tem o som da escuridão que se infiltra e alastra com o sigilo de um exército em posições secretas. O silêncio tem o sussurro de um dos cinco sentidos que em sonho se julga outro. O silêncio é um loquaz tartamudeio entre elementos que ainda não dominam o discurso. O silêncio é a gargalhada de uma tempestade que nos alcança depois de cumprida a sua absurda tarefa. O silêncio é um zumbido que transforma o quarto num bosque de fantasmas.”
É um texto que espera, não esses leitores de ocasião, os que vivem em pontas, molhando o pezinho curioso em pequenos charcos, mas o leitor que, mais do que saber juntar letras, sabe ler música, encher a cabeça de um concerto em que um maestro mobiliza impetuosamente as diferentes secções de uma orquestra. O que quero dizer com isto? Talvez Thoreau tenha sido mais claro em “Walden”, dizendo que diante de obras assim “temos de investigar laboriosamente o significado de cada palavra e de cada linha, conjecturando – a partir da sabedoria, da coragem e da generosidade que tivermos – um sentido mais amplo do que o permitido pelo uso comum”.
E é significativo que um título destes, que surge em grandes catálogos nos países aqui à volta, onde o meio editorial não cedeu tão artificialmente à actual crise de identidade como acontece por cá – em que a fuga para a frente, e os tantos livros que se publicam anualmente apenas atestam a incapacidade dos editores de gizarem planos, estratégias ou buscar um caminho certo, organizando um percurso e uma forma de ler com os seus catálogos –, um título destes tenha aparecido entre nós como o segundo título de uma livraria criada por dois livreiros que se cansaram de acatar as directivas comerciais da maior cadeia livreira do país, e chamaram a si a responsabilidade de mostrar que, apesar das maiores dificuldades, ainda há margem para actuar de forma decisiva, ainda há espaço para outra coisa que não os tão frequentados muros de lamentação: há margem para velhas e novas formas de rebelião.
Darwich é, de resto, um maravilhoso exemplo para qualquer projecto que busque opor-se a partir de uma posição desfavorável, minoritária. Nunca tendo renunciado à sua missão de poeta nacional palestiniano, se não era desses que passam desmaiados nos braços de fuminhos e incensos, de grandes ilusões ou ingenuidades persistentes, se não via como o poema pudesse mudar o mundo de forma directa, tinha claro que o que faz é “mudar a nossa forma de ver o mundo”. Tomando a poesia como uma arte própria das minorias, mostrou como este tão antigo artefacto verbal tem ainda a capacidade de comover sociedades inteiras. Num obituário no “El Pais”, Ana Carbajosa falava da importância que a poesia assume para uma nação que, há 60 anos, lida diariamente com a perspectiva da sua extinção: “Para uma nação que há 60 anos luta para ter um Estado, as histórias, os poemas partilhados e a cultura, em geral, adquirem uma importância vital; convertem-se em aspectos cruciais na busca de uma identidade comum. Como Darwich escreveu nestes seus famosos versos: ‘Viajamos como todos, mas ao regressar não temos nada. (…) Não temos senão um país de palavras. Fala, fala para que possamos conhecer que fim tem esta viagem’.”
Tendo começado a escrever nos anos 60 uma poesia militante e cuja mensagem directa exprimia de forma pungente o sofrimento físico e psicológico dos palestinianos que vivem sob a alçada do Estado de Israel, na sua trajectória literária Darwich não se contentou em ser uma figura nacional, e esforçou-se por libertar-se da etiqueta de “poeta da resistência”, entre outras, reivindicando, como notou a sua tradutora espanhola, María Luisa Prieto, a sua individualidade, a sua solidão. E conseguiu-o sem se evadir da realidade, mas percebendo que para lhe ser fiel é preciso buscar uma compreensão que ultrapassa a descrição emocionada dos factos. (“Estavas num lugar remoto e desconcertou-te o fio rompido entre realidade e imaginação, entre guerra narrada e guerra testemunhada”, lê-se a certa altura, em “Na Presença da Ausência”). Assim, e por detrás do aparente luxo do que parece elaborar-se como pura estética, subjaz “uma vocação de resistência profunda”, diz-nos Prieto, “de rebelião contra o opressor que pretende impor a sua voz, cercear toda a esperança, roubar o direito a viver uma vida normal, sem se ser herói nem vítima”. Como notou Darwich, “a ocupação israelita que nós sofremos é profundíssima. Inclui a língua, a palavra, estão ‘ocupadas’, no sentido em que acabamos por não falar em nada a não ser de actualidade política. Eu tento escutar o meu coração para resistir a esta clausura”.
Em 1970, o poeta partiu para o exílio, e andou pelo Cairo, Tunes, Moscovo, Beirute e, após ser obrigado a deixar o Líbano na sequência da invasão israelita em 1982, foi já no largo período que passou em Paris que atingiu a sua maturidade artística, e obteve o reconhecimento internacional como um dos nomes mais destacadas da poesia árabe. Aí viveu em pleno a experiência do exílio, marcada tanto por “um exercício de contemplação daquilo que não é teu, de admiração daquilo que não te pertence”, como pela dor de quem não consegue deixar de olhar para trás: “Sabes exactamente o que deixaste para trás: um passado que não figura em canções sobre os novos troianos, dos quais nada é dito a não ser o que os inimigos relatam. Mas eles não raptaram Helena nem causaram a guerra. Eram bondosos e pacíficos, o seu único crime foi terem nascido em encostas comparadas às escadas que conduziam a Deus. Eram corajosos sem espada, espontâneos sem retórica, pelo que alquebraram diante dos tanques, foram deslocados e espalhados pelo vento sem perderem a fé no dia em que a ferida da História sararia.// Portanto, quem és tu nesta viagem? Um poeta troiano que escapou ao massacre para contar a história, ou uma mistura de troiano e grego que se perdeu a caminho de casa?”
Antes que se deixasse convencer pela “propensão da metáfora para transformar ‘a minha pátria não é uma mala’ em ‘a minha pátria é uma mala’, em 1995 regressaria aos territórios ocupados da Palestina, um lugar que, desde os sete anos, foi sempre para ele um grande cárcere, mas apesar de se sentir como um exilado na sua própria terra, Darwich estava consciente de que “nenhuma tribo triunfou sem poeta e nenhum poeta triunfou sem ter sido derrotado no amor.” A sua resistência nunca foi tímida (“Ainda estamos vivos e podemos emendar o texto grego. As possibilidades do último capítulo, do final, são infinitas!”), e nunca se contentou com migalhas. Foi militante do partido comunista, editor da revista “Al-Karmel”, dirigente da OLP e redactor principal, em 1988, da Declaração de Independência da Palestina, proclamação que ele mesmo viria a considerar uma farsa: “Que tipo de argúcia verbal ou linguística pode formular um tratado de paz e boa vizinhança entre um carcereiro e o seu preso”, perguntou-se. Em 1993, abandonou a OLP em protesto contra a assinatura dos acordos de Oslo, entre outras razões porque estes não contemplavam um claro compromisso da parte de Israel quanto à retirada dos territórios palestinianos ocupados.
Em “Na Presença da Ausência” deixa claro que o sofrimento dos palestinianos não é só deles, mas exprime uma oposição bem mais vasta nas sociedades modernas. Que imagem poderia ser mais fiel à desolação que conhecemos, hoje, uma maioria que se sente minoritária, aprisionada num modelo social que constrói falsas oposições para nos negar a evidência de que vivemos contra nós próprios e em benefício de muito poucos, que imagem poderia ser mais forte que esta: “A árvore solitária ergue-se à porta do edifício para saudar o amanhecer que traz notícias de uma eternidade que não interessa a ninguém nesta hora supérflua.” Contudo, o poeta deixa um aviso ao opressor, lembrando que seja qual for o desfecho “não tem como afastar de si o fantasma. Colapsa: o assassino cai no túmulo do assassinado!”