O medo de andar de avião nem sempre é um receio de ver aquela maravilha revestida a lata interromper-se a meio do voo e vir por ali, a pique, estampar-se em terra ou no mar. Talvez seja mais a inquietação diante de um milagre frio, desses que a técnica tornou tão comuns nos nossos dias, e que provocam mesmo nos espíritos finos as maiores suspeitas. Por inquietação dos instintos, esses em que confia o animal para quem são precisas algumas gerações antes que a incompreensão se dissolva, assim, ele dá por si, num voo ansioso, aleijando-se muito sempre que um balanço estranho lhe eriça os pêlos da imaginação, e desata nuns filmes em que se vê como um Dante montado na espantosa lata a ser conduzido pelo inferno. Para exemplo disto servem bem os versos que vieram à pena de Vitorino Nemésio na sequência Canada-Flight, de "Limite de Idade" (1972): "Pode-se estar no Mundo acaso pairando num canudo/ Blindado de asas, recheado de decúbitos na oblíqua?" Ou aqueles outros, em que algum poço de ar o lança na contemplação da morte: "Os reactores do avião serão sucata um dia,/ Nós seremos chumbados a maçarico/ Pelos hospedeiros da funerária,/ A viagem terá seu termo ou não, biosférico,/ E tudo finalmente se arranjará/ Na rosa dos ventos elíseos/ A 1400 Km à hora, com um empurrãozinho à cauda".
Depois da dificuldade de atravessar o Atlântico, foi o medo de viajar de avião que, mesmo quando a TAP começou a ter voos directos para a Terceira, levou a que só relutantemente Nemésio tenha regressado à sua ilha, tornando-se dela um visitante de circunstância, que permanecia por curtas estadias. E, no entanto, ele imaginava-se a regressar em definitivo, quando as obrigações para com o mundo e a vida civil estivessem cumpridas, teria o seu dia de “libertação íntima”, o dia em que haveria de fechar-se “nas minhas quatro paredes da Terceira”, dia que foi sendo adiado e não chegou, mas para que tinha já delineado um plano. O poeta pretendia então dedicar-se a um ensaio sobre a sua açorianidade subjacente contando com o desterro para lhe afinar e exacerbar essa consciência de si embalado de novo pelas suas raízes, como quem se abeira da morte fazendo tenções de renascer.
Um autor imenso, naquela deriva natural entre os registos da criação literária que expõe ao ridículo a tentação de saber ao certo o que é do poeta e não do ficcionista, do dramaturgo ou do ensaísta, memorialista e cronista. Certo é que se tornou uma das figuras centrais da cultura portuguesa, apresentando na RTP ao longo de uma década o programa literário “Se Bem Me Lembro”, o que o tornou, evidentemente, um rosto conhecido do país inteiro, num esforço sério de “democratização da cultura”, que, se lembrado aos de hoje, não pode senão envergonhar-nos mais dessa trupe “ferozmente serventuária”, que se afadiga saltitando entre as várias dominações mediáticas para gáudio e proveito de uns, e para escarmento geral.
Quarenta anos depois da morte de Vitorino Nemésio, a Companhia das Ilhas, uma pequena editora sediada no Pico, e que tem sabido chamar a si os apoios para reeditar as obras de alguns autores marcantes do arquipélago, propôs a Duarte Azinheira, diretor editorial da Imprensa Nacional, que se fizesse uma antologia da obra que se encontra, em grande parte, indisponível. Datando do final dos anos 80 a iniciativa da edição das “Obras Completas de Vitorino Nemésio”, dos cerca de 30 volumes em que se reuniam os 40 títulos do autor muitos apenas se encontram em alfarrabistas, e, por essa razão, Duarte Azinheira achou que era altura de recuperar Nemésio e entregá-lo, renovado, a uma nova geração de leitores.
O filólogo Luiz Fagundes Duarte assumiu a coordenação editorial do novo projecto, que deverá compilar em cerca de 20 volumes a obra de Nemésio. Também ele açoriano, da Terceira, numa entrevista dada ao “Prelo”, o site da Imprensa Nacional, Fagundes Duarte ao descrever o propósito desta nova reunião começa por dizer que “ a edição existente não era popular, não tinha acesso ao grande público nem o grande público tinha acesso a ela”. E um indício de trapalhada começa aqui, com a ideia de que vamos melhor desta feita, não assustando o público, e que o melhor será prescindir do necessário aparato crítico que possa elucidar-nos sobre um autor que – e não nos enganemos a este respeito – não terá qualquer futuro se não se elevar o nível da erudição e frequentação literária da “população média portuguesa”. O director da colecção, por seu lado, parece convencido (ou estará a tentar convencer-nos?) de que há um público mais vasto, “que não está — nem tem de estar — habituado a ler edições eruditas”, um público constituído por leitores indiferenciados, que ficará radiante com estas edições, preferindo-as “simples”, ou seja, expurgadas de um trabalho de contextualização como aquele que se encontrava na primeira edição das Obras Completas.
A avaliar pelo primeiro volume, “Poesia (1916-1940)”, o preço bem como o cuidado gráfico posto no objecto é o aspecto mais saliente e meritório desta reedição. A 18 paus, um livro com 350 páginas, bastante portátil, e com capa dura, chega a ser uma pechincha se o compararmos com volumes semelhantes de outras editoras e, também, com os livrinhos de poesia agrafados e desenxabidos a que a Companhia das Ilhas nos habituou. Felizmente, desta co-edição entre a INCM e a editora do Pico, vingou o apuro e a sobriedade gráfica da renovada colecção Plural, bem como o cuidado material e o geral investimento no livro enquanto objecto que dá gosto ter na mão e não desaponta coleccionadores. Se é natural que uma editora com mar por todos os lados vá metendo alguma água, é triste constatar como, na sua ânsia de se afirmar, publicando largas dezenas de títulos negligenciáveis a cada ano, não se pode contar com o seu catálogo para uma orientação firme e clara, apta a separar o trigo do joio. Dispersa-se com tantos livrinhos de aspecto barato, mas que não deixam de sair caro, tiragens mínimas, e sem deixar que respirem. Assim, esta reedição, reaparece no catálogo da Imprensa Nacional com a maior das naturalidades, mas chega à outra como jóia de uma terra sem coroa. E o reparo é extensível a tantas outras das pequenas editoras que têm surgido, e que se recusam a beneficiar da diferença que lhes é própria, para se ancorarem minimamente, preferindo pôr-se a copiar em ponto pequeno os vícios das maiores. Nesses casos é sempre curioso detectar em formigas problemas de elefantíase.
Com a nova arrumação editorial, este primeiro volume das obras poéticas – que passam a dividir-se em três, mais um para a obra póstuma – não é coincidente com o primeiro volume da reunião feita por Fátima Freitas Morna, ficando para o segundo o livro “Festa Redonda”. Mas se os volumes nesta edição beneficiam de um aspecto bem mais atraente, voltando à questão do aparato, há uma perda irreparável ao passar do magnífico prefácio de Freitas Morna para a exígua nota editorial que assina Luiz Fagundes Duarte. Perde-se também a exemplaríssima cronologia da primeira, e, nesse confronto, é evidente o vazio que fica, num volume que não situa minimamente o leitor no que toca à construção desta obra tão marcante precisamente pelos “saltos abruptos e hiatos” entre os livros e que torna tão relevante e curiosa a figura de Nemésio, como assinalou Jorge de Sena, “não só por si mesmo, mas pelo que, através dele, se pode compreender de algumas tendências da literatura portuguesa”.
Sem ser extenso, e, muito menos, fatigante, o prefácio de Freitas Morna provou ser um dos ensaios cruciais da recepção da obra nemesiana, ao tentar “tirar partido da dissonância interna” daquele universo poético. Como sublinhou, um dos principais efeitos da leitura desta obra é “uma espécie de desarmonia, às vezes de poema para poema num mesmo livro, outras vezes dentro do mesmo texto, sentida como diferença de registo verbal”. Ora, sem o menor esforço para nos dar conta da surpresa com que os leitores de Nemésio foram recebendo cada novo livro como um capítulo novo, tantas vezes em rompimento com o anterior, revigorando os seus espelhamentos, perde-se a própria história “de um edifício cujo corpo é tempo”, e escapa-nos também a forma como essa história se cruzou com a da literatura em que se insere.
Estamos a falar de um elo radiante, não uma mera juntura mas uma obra cuja gravidade e força de atracção organiza o espaço envolvente. Com o seu sentido da tradição e da inovação, esta obra que se impôs como “um incomparável mo(nu)mento criador do nosso século XX” (Vasco Graço Moura), faz-se valer daquele hábito de lidar com os elementos impossíveis, capazes da maior serenidade ou desordem, e partir da solidão e do isolamento, desse lugar tantas vezes exasperante, para se achar numa relação íntima com “a grandeza do mar”. E o mar, como é evidente, é um excelente exercício para quem se mostrou depois tão à-vontade entre as experiências mais nuviosas e radicais do modernismo, alguém que via os poetas como “caçadores do inefável saídos aos campos de Deus”. E que evidentemente devia a sua monstruosa erudição, bem como uma memória que hoje já não se usam, não a um raso empenho livresco, mas ao ânimo de um miúdo que, vindo da fome, deu por si numa cozinha imensa, um insaciável provador dos muitos tachos de sopa ao lume, e que, sem nunca perder o seu tão particular gosto, soube fazer-se valer do seu conhecimento para formular no seu próprio tacho as mais inusitadas combinações de sabores, entre o detalhe de competência molecular e a expansão de um verso que parecia encontrar o limite da frase nesse ponto onde ela obriga o espírito a desapertar um botão das calças.
De resto, é importante destacar como Nemésio reflectiu sempre e chegou a definir como mais ninguém a condição do ilhéu, e a sua açorianidade, falando de “uma espécie de embriaguez do isolamento [que] impregna a alma e os actos de todo o ilhéu, estrutura-lhe o espírito e procura uma fórmula quase religiosa de convívio com quem não teve a fortuna de nascer, como o logos, na água.” Lembra que “meio milénio de existência sobre tufos vulcânicos, por baixo de nuvens que são asas e de bicharocos que são nuvens, é já uma carga respeitável de tempo, – e o tempo é espírito em fiéri. Mais outro tanto, e apenas trocaremos metade da memorialidade de Vergílio.”
E perdoe-se a extensão desta citação, mas poucas vezes terá valido tanto a pena o excurso: “Somos portanto, gente nova. Mas a vida açoriana não data espiritualmente da colonização das ilhas: antes se projecta num passado telúrico que os geólogos reduzirão a tempo, se quiserem… Como homens, estamos soldados historicamente ao povo de onde viemos e enraizados pelo habitat a uns montes de lava que soltam da própria entranha uma substância que nos penetra. A geografia, para nós, vale outro tanto como a história, e não é debalde que as nossas recordações escritas inserem uns cinquenta por cento de relatos de sismos e enchentes. Como as sereias temos uma dupla natureza: somos de carne e pedra. Os nossos ossos mergulham no mar.”
Mas, voltando um pouco atrás, como refere Freitas Morna, “o golpe de mestre de Nemésio consiste em ter sintonizado perfeita e totalmente com o tempo estético que lhe foi dado viver”, ter sido o engenheiro de uma “tradição relativa, sempre precária e a refazer-se, que encontra a sua força na aparente fraqueza de não ter certezas nem absolutos estéticos”. Assim, antes e depois da avassaladora descoberta do arquipélago pessoano, Nemésio “não precisou de inventar outros”, adianta Freitas Morna, rematando: “ele sabe que ninguém é, na verdade, um. Apenas momentos que se sobrepõem e se acumulam”.
Nemésio, diz-nos ela, furta-se à coesão de alguns poetas coetâneos, “como se o autor para si próprio tivesse adoptado a síntese que fez do pensamento de seu mestre Ortega y Gasset: ‘Escolher um ponto de vista e logo trocá-lo por outro é a única lei eficaz da meditação dos nossos dias.’” E se não há nesta obra “um fenómeno de multiplicação de personalidades distintas, mas sim uma espécie de personalidade proteica", esta pluralidade não se confundia com um simples efeito de dispersão, mas havia nela o balanço de um corpo que, mesmo se se anima a cantar, o faz desde as sensações de um espírito vigilante e de uma “carne dorida”. Após a leitura de “O Bicho Harmonioso” (1938), Óscar Lopes distinguia já um veio que se demarcava no seu contexto epocal: “O que os outros não tinham conseguido era a justeza de um ritmo de verso e estância livres (…) em que a evocação parece falada, daquele falado desprendido, daquele falado produtor de um efeito de voz (ou sujeito) oral que logra impor-se sem qualquer das marcações então literárias do subjectivo em pose.”
Eduardo Lourenço destacou na obra de Nemésio “o humor subversivo que lhe é reverso e tábua de salvação”, dizendo que é na “íntima sístole e diástole de angústia e humor que o poeta joga na praça da vida e de Deus o seu destino de poeta metafísico que nunca se tomou a sério senão sob a máscara burlesca da contorção verbal ou da contrição do pecador.” Por sua vez, Vasco Graça Moura estreitou a relação entre um juízo a que Nemésio chegou ao falar de Verlaine, e usou-o como um fiel reflexo do mestre açoriano, e da obra em que também “a consciência da culpa irrompe na sua lamentável carcaça – e um confessor, uma igreja em silêncio, a mesa deserta e azeda de um café, o catre de uma prisão ou a infecta cama de uma casa de hóspedes, tudo lhe serve para tomar o peso de uma responsabilidade que se não efectiva, em última análise, senão pela entrega total de um destino miserável em mãos de misericórdia.”
É impossível não se sentir arrebatado diante de um poeta que com a palma da mão nos faz um afago e que, de súbito, com as costas da mesma, nos prega uma lostra que não só nos vira do avesso, como ainda nos mostra em que medida a nossa carne e os ossos estão ainda longe da pedra. Veja-se o trabalho com os ritmos e as rimas, as formas antigas, mais sóbrias, misturando referências cultas ou populares, e como se aproveita da convenção para nela introduzir desequílibrios, rupturas subtis, variações sumptuosas. Eis as instruções desse poema central nesta obra que é “O Cánario de Oiro”, em que põe a coisa nos termos mais simples, mas elas produzem uma tal agitação interior que imediatamente nos mobilizam, e a linguagem é um delírio que parece tornar a realidade uma coisa secundária: “(…) E então, para que tudo em mim se honre e execute/ (Voz, penas e dejectos/ Do canário),/ Dou-lhe, seus passeadores, os meus afectos,/ As minhas veias duras para grades:/ Dentro delas, contrário,/ Ele se embeleze e lute.// Ah, que o canário é o meu sangue talvez!// Mas então isto que é? Que violino engoli?/ Que frauta rude aveludou a minha noite?/ Em que prato de cobre bateu o nó do açoite?/ Tão exacto, meu Deus, só vibrado por ti.// Musical, todo fogo, em mim me vou e expando;/ Cada lágrima cai de mim como harmonia”. E ainda nos deixa algumas advertências: “Inúteis fôssemos, poetas./ Quero dizer: como as cascas cor de laranja ou alvas de ovo,/ Que não são laranja nem ovo:/ Ainda se havia de ver/ Se as podridões quietas/ Não são o sal e o renovo.” E para fecharmos, veja-se o difícil que é ser tão simples, estar-se na sua concha, essa que como os bichos o poeta a segregou de si mesmo com paciência: “Fachada de marés, a sonho e lixos,/ O horto e os muros só areia e ausência”. E que larga visão se tem do mundo e de tudo, medidas bem as proporções, nestas coisas ínfimas, como na espantosa quadra inicial do poema “O Bicho e a Rosa”: “Na água langue em que escorre/ Meu limo verde, aranha/ Que de manhã tece e morre/ À tarde, pesa a montanha”.