Carminho. “Sou very typical e tenho orgulho nisso”

Carminho. “Sou very typical e tenho orgulho nisso”


Depois de ter cantado Jobim, dos duetos com Pablo Alborán e os HMB, Carminho não só canta como pensa o fado de forma transversal 


Sendo os discos uma fotografia de um tempo de quem os faz, que tempo é este do “Maria”?

É um tempo de reflexão sobre o que tem sido o meu percurso e, mais do que isso, sobre o que o fado me tem dado. É um processo de regressão ao início, como um exercício conceptual sobre o que o fado me deu de forma prática. Comecei a ouvir fado em pijama com dois ou três anos, ou com zero, com os meus pais, e foi uma sorte que tive porque, como não havia casas de fado no Algarve, as noites de fado eram em casa. É um ambiente a que as crianças não têm acesso e acabou por ser muito intuitivo e umbilical essa cultura. Enquanto aprendia o fado, aprendia a falar português. Esse processo de regressão é um olhar analítico sobre o que aprendi e o que é importante numa noite de fado. Uma das coisas que percebi foi que, independentemente da forma, o fado é uma experiência sensorial onde se atingem determinadas emoções e reações. E é uma experiência em comunidade, uma troca emocional. Por isso, é que deixou de fazer sentido gravar sem ser live in studio. Podia ter gravado na casa de fados – foi outra coisa que percebi, essa experiência sensorial passa pelo ambiente e pelo som de uma casa de fados, que se perde na viagem até ao estúdio. Não é música, mas é som. Passou-me pela cabeça captar ao vivo este disco, mas apeteceu-me reinterpretar esse ambiente e arranjar uma forma de perceber como se estende os braços de uma linguagem musical que é tradicional, tal como foi feito com o tango e com o flamenco, em que se foram adicionando instrumentos. 

“Maria” por uma questão biográfica?

É uma regressão à infância e, portanto, mais pessoal. O facto de ser Maria do Carmo faz deste um disco homónimo, mas Maria é um nome tradicional português, por excelência, de mulheres e homens portugueses, mas que atravessa o tempo e continua a ser contemporâneo. Hoje em dia é o nome mais dado pelas mulheres.

Procurou captar a inocência dos primeiros dias?

Acho que a inocência não se consegue recuperar. Não é possível esconder de mim própria o que sei. A inocência é a coisa mais pura que existe. Se há inocência neste disco, talvez a reconheça daqui a uns anos. Na forma naife como construí as coisas talvez veja alguma inocência, ou na forma como procurei dentro de mim aquilo em que acreditava e não cedi a pressões de outras naturezas que não a música. Agora, não é um disco inocente porque já não é o primeiro sopro. O “Fado” (primeiro álbum) foi uma recolha natural e inocente de repertório que já cantava e de coisas de que gostava intuitivamente. Não houve um pensamento. 

Tem escolhido palavras-chave para dar nome aos discos. São bússolas?

Nunca tinha pensado nisso assim. Essa escolha não tem sido premeditada. Tenho uma certa dificuldade em resumir um disco. É bastante injusto para as canções, mas temos de lhes dar nome para catalogar as coisas e torná-las acessíveis às pessoas. Fui tentando descobrir nomes que encobrissem os discos. “Fado” era o que fazia no primeiro disco. Não faço rock, não faço pop, canto fado. O “Alma” era uma intenção seguinte. Já não se pode chamar “Fado” outra vez. (ri-se) Queria reivindicar que cantava com verdade. O “Canto”, porque havia qualquer coisa à volta da voz a unir os elementos. E o “Maria” por ser muito pessoal. 

Interpretou as canções de Tom Jobim num álbum inteiro. Gravou duetos pop com os HMB e Pablo Alborán. Voltar ao fado foi deliberado?

Foi espontâneo. O fado é a minha língua materna. É onde me sinto realmente em paz, a minha zona de conforto. Não fiz um disco de fado por si só, é um retrato daquilo que o fado é para mim. Por isso é que há canções a guitarra elétrica, a pedal steel…Foi uma vontade de dizer que, para mim, o fado é transversal a vários estilos. Pode existir fado quando existe um determinado nível de entrega à música e à poesia. À verdade do momento e ao aceitar do erro. Porque não é perfeito, é humano. O estúdio acabava por desumanizar aquilo que, para mim, o fado tinha de mais essencial. Só descobri isso agora. Não voltei ao fado, sempre estive cá. Fui ao Tom Jobim, só que voltei diferente. Essas incursões pontuais não me deixam indiferente. 

“Pop Fado”, popularizada por António Calvário em 1966, já falava do “novo fado”. Revisitá-lo em 2018 é a suprema ironia?

Claro! A ironia, o rir-me de mim própria e dessa forma como as pessoas estão um bocadinho presas. O meu fado não é estar preso e o “Pop Fado” vem dizer isso. Se este disco é o que o fado é para mim, tinha de dizer que não me sinto presa. O fado liberta-me. Agora, também é importante que haja velhos do Restelo que não se conformam com o facto de o fado mudar. Mas o fado é uma língua viva que retrata o tempo do fadista, por isso é que o fado mudou muito desde o tempo da Severa até ao Fernando Maurício, o Marceneiro, a Amália e a geração anterior. Todas as gerações são muito diferentes, só que os puristas defendem a Amália e os fados que ela cantava quando a Amália foi muito criticada por ser vanguardista. Temos de deixar o fado mudar para ele continuar a ser fado. 

Ao sair na época do Natal, há uma pressão para o disco ter bons resultados?

Na verdade, talvez haja alguma, mas é uma pressão que não está acima de tudo. Não implica nem acaba com o disco. Ter datas e planos também ajuda a organizar. Comecei [a fazer] o disco há seis meses e perguntaram-me: “Achas que o disco está pronto no Natal? É uma altura boa. ” Cada vez se vendem menos discos; portanto, se pudermos potenciar o objeto, vamos fazê-lo. Disse que achava que sim, que conseguia ter o disco pronto para o Natal, mas não vou fazê-lo à pressa nem fazer com que deixe de ser o que tem de ser. E conseguiu-se. Houve uma proposta, não uma pressão. 

Produzir o disco tornou-o mais autónomo?

Completamente. E sem cedências na música. Um artista também de ter essa paz. E a paz também implica responsabilidade. Se chego com um disco a uma editora, não quero que a editora me diga que não quer editar, mas tenho de estar preparada para isso. É uma responsabilidade do artista, mas o artista também tem de ser livre. Agora, ter a liberdade nas mãos é uma responsabilidade (ri-se) porque as possibilidades são todas e é fácil espalhar-me ao comprido. A priori, não ia produzir, mas foi muito natural.

A gentrificação de Lisboa traz um risco acrescido ao fado de se tornar very typical?

O fado é da cidade. É very typical. Não corre o risco porque o fado já o é. Não é um risco, é bom. É o que nós somos e temos de saber ser sem vergonhas. Sem rótulos. O very typical tem qualquer coisa de pejorativo e isso não é pejorativo. Nós somos típicos. Temos uma coisa única que é o fado, cantado por artistas que correm o mundo, mas também, e sobretudo, com aquela que é a massa maior, que são os fadistas e guitarristas que o representam na casas de fado. Agora, há que haver uma qualidade nessas casas e nem todas as casas são boas. Nem todas as casas representam bem o estilo, mas há muitas, muitas que são boas. Esses fadistas são os grandes representantes do fado quando os turistas os ouvem.

Very typical na adulteração. 

Very typical negativo é quando se torna um produto avulso. Quando é caro e engana o parvo do turista que não conhece e pode ouvir qualquer coisa. Como aquele taxista que apanha os turistas no aeroporto, atravessa a Ponte Vasco da Gama e volta pela 25 de Abril porque sabe que, lá fora, os aeroportos são longe da cidade e os turistas não estranham a volta. Isso é não ser justo com quem nos visita. O que não posso aceitar é que usem este género como um negócio, sem dar nada. Servirem-se sem servirem as pessoas. Agora, eu também sou. Sou very typical e tenho orgulho nisso!