A inteligência tem no silêncio a mais radiosa fórmula das suas intuições. Ali não se limita a afiar um sentido, não cessa de lançar os dados, tomando as coisas de vários ângulos, embaladas num “rumor de lume a crescer”. Venta, vai florindo sombriamente não em uma, mas em múltiplas direcções, como se estivesse sob o efeito de uma luz que, ao dilatar-se, fosse capaz de mover tempestades. Esta imagem surge entre a recente recolha de poemas de Carlos Poças Falcão, “Sombra Silêncio”, que já no título desenha um reflexo no qual se produz um ágio, antecipa-se um corpo em tudo estranho ao nosso tempo. Estão já aqui algumas vozes, e mais se juntarão. Cito lá em cima “a bela noite” em que Ungaretti se achou “bêbado de universo”, mas se no canto do italiano o cristalino eco do coração se entretece com as estrelas, no do português alguém testemunha a murmurante beleza de uma noite entre as baleias, na rama dos sargaços, depois de os mastros terem sido erguidos na concha dos navios, os mares distendidos, as ilhas polvilhadas e assoprados os bancos onde os crustáceos bebem água luminosa. Este arranque poderá causar estranheza, o que é natural já que estamos bem dentro desse território onde a poesia não é uma névoa que se atravessa, mas o próprio idioma em que se fala. (“Oiçam-me com o meu idioma de poema”, pedia Carlos Edmundo de Ory…)
Há um conhecimento do mundo que se perpetua numa língua que quase não se ouve. Nas últimas canções dos povos, aqueles que ainda contam pelos dedos lá, no poema inaugural de “Arte Nenhuma” (Poesia 1987-2012), apercebendo-se de que, passados mil anos, “a morte não vinha mais depressa”. Foi com esta reunião – uma das tão poucas na poesia portuguesa contemporânea que guardou sempre uma bem medida distância do silêncio, e por isso exigia ser reunida em vez de antologiada – que ficou claro como este poeta serviu um exemplo necessário, num respiro vigilante em que cada verso espera que lhe cresçam os ossos por dentro da sua antecipação. “Com frases completas dá-se tempo à humanidade/ e perfeição ao mundo, os silêncios ficam grandes/ e a respiração retorna, sem esforço, a uma origem:/ então eu falaria como numa idade de ouro/ de nada me afastando, tudo aproximando, repetindo/ o ímpeto primeiro em maravilhas múltiplas.”
Avessa aos tão comuns atalhos promocionais, e apesar da sua discrição, esta obra mereceu mesmo assim a imensa fortuna crítica de só os melhores leitores de poesia se terem debruçado sobre ela, poupando-a aos funestos encómios que tantas vezes não fazem mais que atraiçoar a força expressiva de um autor que exerce a sua lira fiel a um extremo rigor, a uma integração da sua voz à densidade dos ritmos que ressoam desde tempos ancestrais. E, assim, esta é uma poesia que marca um contraste evidente face às condições de afirmação que vêm instruindo os poetas a introduzir já nos versos tanto o referencialismo mais bacoco como esses grossos caracteres que garantem os sublinhados, batendo continência ao espalhafato.
António Guerreiro viu nesta poesia, além do carácter órfico, um apuro que viria progressivamente a tornar-se lapidar e elíptico, isto depois de ganhar balanço numa grande exuberância imagética e, notando as ressonâncias teológicas, frisou que Poças Falcão seguia o caminho inverso da secularização, experimentando um ressurgimento religioso. Numa admirável oposição à lírica burguesa moderna, a par do tom hínico desta obra, ela está debruçada sobre “o abismo da intemporalidade e reactualiza a fundação e a expansão do mundo”. E vale a pena demorar-nos entre alguns dos versos que também ele citava: “Quando uma passada ritmar o pensamento./ Ajusta-se em destino, a dor, nesse desejo/ de iluminar perguntas, a ouro, em incisões./ Mas a vida expande, redobra, infunde ritmos,/ para que os pulmões, os membros, as cabeças/ amem ir assim, numa passada.”
Neste novo e velho livro (alguns poemas remontam a finais dos anos 80), se se recorda “um Verão assemelhado a um gozo místico/ um mês quase animal, de cheiros, sedes e pulsões”, há mais passos do lado da sombra, o poeta fala-nos de “uma zona intermédia de sentido, região/ entre experiência nua e linguagem consumada”, e se, como Manuel de Freitas referiu, “sobressai um inequívoco desalento”, não mergulha no desespero, e ainda pode fixar este possante farol no terceto que encerra um dos poemas: “A graça, no entanto, guia ao eixo os descaminhos./ Perseguições e mortes são o tédio da história/ mas para os céus clementes tudo flui. O ser ascende.”
Reunindo poemas dispersos, Carlos Poças Falcão assume que foi convencido a fazê-lo pela pessoa a quem “Sombra Silêncio” é dedicado, e que o encorajamento afectivo se sobrepôs àquela exigente noção de livro que foi buscar a Mallarmé: “um livro que seja um livro, arquitectural e premeditado, e não uma colectânea de inspirações de acaso”. Mas com a sua música de acasos, este volume lembra aquele poema do francês em que o poeta exausto, tomba enfim entre árvores e olores, e cavando uma fossa para o sonho, a boca mordendo a terra quente onde germinam flores, espera que o seu tédio, aos poucos, se vá embora. Parecendo que se consola com menos, esta é, na verdade, uma saudação ao renovo prometido por cada Primavera.
Com notórias diferenças de escala, é um livro em que se pressentem inúmeras fontes submersas, alusões, algumas, rasando o inconsciente, porque “o mundo já foi criado para sempre” (Carlos de Oliveira), e por ele viajam ecos de ancestrais súplicas, inquietações, as dores de um parto infinito. De resto, e como se lia num poema do livro de estreia do autor (“O Número Perfeito”, 1987): “Assim como se afundam emergem um dia./ Brancura da memória, fragmentos/ de cerâmica, de crânios. Ossadas./ Alguém recolhe uma figura/ de mármore. Alguém encontra/ uma presa de leão. Tudo brilha/ em tanta solidão, o branco, essa cor/ que há no fim, a luz a arrasar tudo/ o sonho dissolvido nas areias./ Muito lento o céu parece igual.”
Cruzam-se registos, tempos diversos, poemas que são indícios de “‘experiências’ e ‘projectos’ que foram ficando pelo caminho”, como esclarece a nota final. Mas se o estilo nalguns se apalpa a si mesmo, se o livro é bastante desigual, persiste a sensação de uma “oração continuada”, e a presença de espírito de quem não sacrifica a lucidez à impaciência: “De estar aqui no mais frágil mundo/ peço a rectidão, o rosto bem talhado/ de uma presença austera. Espero aquela voz/ que se resguarda, que tende a não falar/ até um dia, de dia, para que um dia.”
O vigor das leituras bíblicas mostra-se tão próximo das “raízes mais veementes da força lírica”, e escutamos o cântico dos cânticos, Camões ou Shakespeare: elegias ou poemas de um amor que troca pulsações entre as eras, corações rufando num contínuo fôlego, dando graças, o vento que nasce dos gestos em que os homens, tão dolorosamente conscientes da sua brevidade, lembram deuses (“por isso os nossos gestos são pequenas sagrações”). Há um registo que se inscreve entre o dom e a doçura, versos que “devoram as raízes para alcançar os frutos, trepam às estrelas para as fazer cair”, e vale a pena, a propósito disto, lembrar o que escreveu Joaquim Manuel Magalhães numa recensão a “Três Ritos” (1993), sublinhando como nesta poesia a “estuante presença da matéria do universo se entrecruza com a melancolia da ‘devastação, do soterramento: ‘dentro da alma, debaixo do chão’”. E adianta que, nestas transferências, “um erotismo não declarado mas presente ergue o léxico até uma fisicidade enumerativa, que faz de eros uma força aglutinadora de muito mais que os corpos”.
Se aqui há margem para tanto do que não vingou, o poeta lembra que “o poema é vivo quando se abre ao seu fracasso”, e exemplo notável disto mesmo surge-nos num verso que poderia facilmente passar despercebido, mas se pesado, bebido até ao fim, no fundo dele vislumbra-se um dos mais poderosos entendimentos da morte, do seu problema; mais forte do que aquele que se retira de obras inteiras que se lhe vergam numa truculenta agonia. O poeta diz-nos que o que nos faz tremer é que essa “escuridão profunda não se deixa imaginar”. Esse limite, que nos devasta de cada vez que tentamos vislumbrá-lo, mostra que a morte se impõe, afinal, contra o próprio mundo, e, na sábia inversão que fez Leopoldo María Panero, o que parece é que é a vida que nesse instante se lança toda contra o nosso ser.