O Tribunal de Contas (TdC) detetou várias ilegalidades e irregularidades no parlamento, alertando os serviços para o risco de fraude fiscal, sobretudo nos pagamentos indevidos de viagens aos deputados das ilhas, no controlo das presenças e na desatualização de dados, sendo o caso das moradas de residência.
Por isso, os juízes do TdC querem que o parlamento cumpra o proposto pela Subcomissão de Ética e reduza o valor fixado para as ajudas de custo das viagens dos deputados da Madeira e dos Açores. Os juízes entendem que deve ser revisto o mecanismo de controlo das viagens e que o valor pago semanalmente aos deputados com residência na Madeira ou nos Açores tenha em conta o subsídio social de mobilidade pago pelo Estado, através do qual os cidadãos das ilhas recebem o reembolso do valor pago pelo bilhete de avião.
O regime jurídico do parlamento em vigor prevê que todos os deputados dos Açores e da Madeira – onde se inclui o líder parlamentar do PS, Carlos César – recebam por semana um subsídio fixo de 500 euros para suportar uma viagem de avião às ilhas.
Esta compensação é devida mesmo que os deputados não viajem e é paga sem exigência de comprovativos, a não ser que os beneficiários faltem a trabalhos parlamentares. Só com este subsídio fixo, os deputados das ilhas recebem, por mês, entre dois mil a 2500 euros, que acrescem ao salário.
No total, em ajudas de custo para as viagens aos deputados das ilhas, em 2017, o parlamento pagou 3,1 milhões de euros, revela a auditoria do TdC a que o i teve acesso. O documento foi ontem enviado ao presidente da Assembleia da República, Ferro Rodrigues, e para o conselho de administração do parlamento, sendo hoje discutido durante uma reunião de emergência.
Falta de controlo das viagens
Analisados todos os procedimentos adotados pelos serviços da Assembleia da República e as regras em vigor, os juízes do TdC alertam que, apesar de as despesas de transporte terem sido pagas à luz da lei em vigor, há um “risco elevado” de terem sido autorizados pagamentos indevidos de viagens que não foram realizadas, sendo estas situações “insuscetíveis de serem detetadas”. O mesmo concluiu a procuradora-geral adjunta do TdC, Maria Manuela Luís, que avisa que a entidade que fiscaliza as contas da AR “não pode confirmar se as viagens foram, de facto, realizadas” ou se “os respetivos pagamentos são legais e devidos, uma vez que não existem registos e documentos comprovativos”.
Isto porque as “viagens de e para as regiões autónomas são compradas e pagas por cada deputado”. “A AR paga cada viagem de acordo com o valor de referência fixado pelo conselho de administração” e, além disso, o regime jurídico do parlamento prevê que “as despesas de deslocação não carecem de comprovação”. Perante este cenário, os juízes do TdC entendem que “não existe qualquer tipo de controlo que possa ser exercido, nem pelo conselho de administração, nem pelos serviços”.
Entre toda a documentação recolhida, os juízes referem no documento que “não foram encontradas situações” em que os deputados “tenham alguma vez declarado não ter realizado as deslocações que lhes foram pagas e procedido à reposição das quantias” que receberam.
Moradas falsas
Além da falta de controlo das viagens, que pode levar ao pagamento indevido das ajudas de custo, os juízes do TdC alertam para o risco de fraude fiscal por parte dos deputados. A auditoria foi, aliás, enviada para a Autoridade Tributária e Aduaneira, “para se pronunciar sobre a questão fiscal referida”.
Para calcular os 500 euros semanais, fixados pelo conselho de administração da AR, foi tida em conta a distância em quilómetros do parlamento à residência do deputado, a que se soma o valor do bilhete de avião “com base no custo médio de uma passagem de ida e volta, após consulta às transportadoras aéreas”, lê-se no relatório.
No entanto, os juízes detetaram que os “registos biográficos dos deputados” estão “desatualizados”. Entre os dados desatualizados estão, por exemplo, os documentos de identificação fora de validade e a informação sobre dependentes, e pode estar ainda a morada de residência.
A situação já tinha sido sinalizada pela Direção de Serviços Administrativos e Financeiros, que enviou um email para os deputados e para os serviços “alertando para a obrigatoriedade de atualizar os dados de titularidade de IRS junto da entidade patronal”, refere o documento do TdC.
A Subcomissão de Ética entende que a dispensa de comprovativos das viagens “resulta numa presunção da realização das deslocações e da obrigatoriedade do pagamento das correspondentes despesas de transporte, desde que ocorra presença nos trabalhos parlamentares”.
No entanto, sem mecanismos de controlo, só os deputados podem atestar se as viagens foram ou não realizadas e se “a residência indicada” e que serviu de base ao pagamento da ajuda de custo corresponde ou não “à residência efetiva”, salientam os juízes.
E se as ajudas de custo recebidas pelos deputados “não corresponderem a custos incorridos pelos deputados, com deslocações efetivamente realizadas, e não forem prestadas contas dos valores recebidos até ao fim do ano, essas quantias podem ser consideradas rendimentos do trabalho dependente para efeitos de tributação em sede de IRS”. O que não acontece.
Subsídio de mobilidade
Os juízes do TdC defendem ainda que deve ser ajustado o valor das ajudas de custo pagas aos deputados das ilhas, tendo em conta o subsídio social de mobilidade. Desde 2015 que o Estado reembolsa, a todos os residentes dos Açores e da Madeira, parte do valor pago pelos bilhetes de avião. E os deputados residentes nas ilhas estão incluídos neste apoio. Ou seja, além de receberem a ajuda semanal de 500 euros, os deputados podem ainda deslocar-se aos CTT para reclamar a devolução de parte do valor das alegadas viagens. Os deputados madeirenses pagam apenas 86 euros pela viagem de avião, caso o valor do bilhete fique abaixo dos 400 euros. Todo o valor pago acima dos 86 euros é devolvido ao deputado. E o mesmo acontece com os deputados açorianos, com o Estado a reembolsar as despesas acima dos 134 euros, sem qualquer teto.
Desta forma, para a mesma viagem, os deputados recebem uma dupla ajuda de custo: um subsídio fixo semanal, pago pelo parlamento e, nos CTT, o reembolso pelo Estado de parte do valor que foi pago.
Em abril, o jornal “Expresso” avançou que entre os 12 deputados das ilhas, pelo menos sete assumiram terem reclamado os dois apoios para a mesma viagem. Em causa estavam Carlos César, líder parlamentar do PS, assim como os deputados socialistas Lara Martinho, João Azevedo Castro, Luís Vilhena e Carlos Pereira. Somavam-se ainda Paulo Neves, do PSD, e José Paulino de Ascensão, do Bloco de Esquerda.
Na altura, os deputados do PSD Berta Cabral, Sara Madruga, Carlos Costa Neves e António Ventura não responderam ao “Expresso”. Entre todos estes deputados, apenas a social-democrata Rubina Berardo, vice-presidente da bancada, disse ao “Expresso” que não pedia o reembolso do custo da viagem por “opção pessoal”. O caso provocou polémica e Ferro Rodrigues saiu em defesa dos deputados, argumentando que não foram infringidas leis ou princípios éticos e salientando que a polémica visava apenas “diminuir a representação democrática com julgamentos éticos descabidos e apressados”.
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