A luta por mais condições para quem cuida com pouco em troca ainda não acabou

A luta por mais condições para quem cuida com pouco em troca ainda não acabou


A criação do Estatuto do Cuidador Informal continua a não ter verbas previstas no OE 2019. Dois projetos de lei baixaram à especialidade em março, mas ainda nada saiu da discussão, lamenta associação


Mulheres que cuidam de maridos, maridos que cuidam de mulheres, mães ou pais que cuidam de filhos, filhos que cuidam de mães ou pais. Para muitos, a descrição pode não ser familiar, mas as estimativas apontam para que existam no país cerca de 800 mil pessoas que encaixam no perfil – os chamados cuidadores informais. Ainda assim, o Orçamento do Estado de 2019 (OE 2019) não prevê, à semelhança de anos anteriores, quaisquer verbas que possibilitem o tão necessário Estatuto do Cuidador Informal, que será o garante dos direitos desta classe ainda não oficializada.

A história assemelha-se em todos os casos: alguém próximo requer cuidados permanentes – devido a doença crónica ou deficiência, mais frequentemente – e os cuidadores informais acabam por colocar a sua vida – profissional e, muitas vezes, pessoal – em suspenso, para que possam assistir quem deles precisa. E em troca, poucos apoios têm garantidos. No OE 2019, a promessa feita sabe a pouco: “Reconhecendo a importância dos cuidadores informais no apoio prestado a pessoas que necessitam de cuidados permanentes no seu domicílio, o Governo diligencia no ano de 2019 o desenvolvimento de medidas de apoio dirigidas aos cuidadores informais principais e às pessoas cuidadas, de forma a reforçar a sua proteção social, a criar as condições para acompanhar, capacitar e formar o cuidador informal principal e a prevenir situações de risco de pobreza e de exclusão social.”

Ao i, Rosário Zincke, presidente da Plataforma Saúde em Diálogo – associação que reúne 47 associados, principalmente associações de doentes -, lamenta que o Estado continue a não dar a importância devida ao papel dos cuidadores informais, mas mostra-se positiva. “Apesar de as verbas para a criação do estatuto ainda não existirem, mais cedo ou mais tarde isso vai ter de mudar, até porque isto não é uma exigência só de portugueses, corresponde também a recomendações europeias.” E, de facto, a European Social Policy Network (ESPN) tem o tópico debaixo de olho. Num relatório publicado este ano sobre os desafios dos cuidados de longa duração em Portugal, a entidade denuncia, por um lado, as dificuldades que os cuidadores informais enfrentam no nosso país, e, por outro, mostra a importância da classe na sociedade e a necessidade de aprovação do estatuto que regule a sua atividade – uma necessidade que ganha ainda mais importância quando se constata que qualquer pessoa, em qualquer momento da vida, pode tornar-se cuidadora informal por força das circunstâncias.

“A maioria dos cuidadores informais tem baixas habilitações e formação insuficiente. Apesar de já existirem algumas medidas para os apoiar na prestação não paga de cuidados de qualidade, apenas a aprovação de um estatuto formal para os cuidadores informais (atualmente em estudo) vai desencadear profundas mudanças a este nível”, considera o relatório, que assinala que “este processo é crucial também na medida em que trará bases mais estáveis para discutir a sustentabilidade financeira, especialmente porque o trabalho realizado pelos cuidadores informais pode ser estimado como representando mais de 2% do produto interno bruto (PIB) – num contexto em que é expetável que Portugal enfrente o maior crescimento, na UE, nos custos com os cuidados de saúde, incluindo os custos com os Cuidados de Longa Duração.”

Do lado do Estado português, o retrato do cuidador informal e das suas necessidades no país também estão traçados. A Comissão de Trabalho e Segurança Social apostou na redação do “Documento Enquadrador, Perspetiva Nacional e Internacional”, e o texto dá conta de que “os estudos desenvolvidos nos últimos tempos em Portugal sobre cuidadores informais são consensuais no que se refere ao papel desempenhado pela família relativamente ao apoio a pessoas dependentes, referindo a mulher/familiar como a principal prestadora de cuidados”. E além de familiares e parceiros, o documento constata que existem também “amigos” e “vizinhos” na qualidade de cuidadores informais.

O texto caracteriza ainda as funções destes cuidadores. Não são “profissionais treinados para prestar cuidados (mas, nalguns casos, podem beneficiar de treino especial)”, não têm “contratos relativos a responsabilidades de cuidados”, não são “pagos, embora possam obter contribuições financeiras”, executam “uma ampla gama de atividades (também realizadas por prestadores de cuidados formais), incluindo apoio emocional e assistência”; não têm assegurados “limites para o tempo gasto em cuidados”.

 

Uma reivindicação antiga

 A luta por um estatuto para o cuidador informal não é nova e pauta-se por vários momentos-chave. A Assembleia da República começou por aprovar, entre maio e junho de 2016, cinco resoluções que requeriam ao governo a criação do dito estatuto.

Já quase dois anos depois, no final de fevereiro deste ano, a Comissão de Trabalho e Segurança Social realizou uma sessão de debate público no Centro de Acolhimento ao Cidadão da Assembleia da República incidindo sobre o documento “Medidas de Intervenção junto dos Cuidadores Informais”, apresentado por Manuel Lopes, coordenador nacional da Reforma do Serviço Nacional de Saúde na área dos Cuidados Continuados Integrados, que acompanhou o grupo de trabalho.

A sessão parece ter dado frutos: a meio do mês de março, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) apresentaram na Assembleia da República projetos de lei relativos aos cuidadores informais. O projeto do BE “cria o Estatuto do Cuidador Informal e reforça as medidas de apoio a pessoas dependentes”, enquanto o do PCP “reforça o apoio aos cuidadores informais e às pessoas em situação de dependência”. No mesmo dia em que os projetos políticos foram a discussão, também um projeto civil foi discutido, a petição “Criação do Estatuto do Cuidador Informal de Pessoas com Doença de Alzheimer e outras Demências ou patologias neurodegenerativas associadas ao envelhecimento”. Mas, a partir daí, as movimentações que se verificaram continuam a ser insuficientes.

Ao i, a Associação Nacional de Cuidadores Informais lamenta “o facto de os projetos de lei terem descido à comissão parlamentar de Trabalho e Segurança Social, para discussão durante 60 dias”, e ter “já passado muito mais tempo. Vão pedindo a prorrogação do prazo e desde março que estamos à espera das audiências das secretárias de Estado da Saúde e da Segurança Social”. No fundo, diz a presidente, Sofia Figueiredo, “só falta serem ouvidas as secretárias de Estado para que haja algum avanço no Estatuto do Cuidador Informal. Enquanto isso não ocorrer, nada acontece”.

 

O que pede o Estatuto do Cuidador Informal

Entre as principais reivindicações dos cuidadores informais está a redução do horário de trabalho em 50% e flexibilidade para os cuidadores que continuam a trabalhar – e que precisam, por exemplo, de ir ao médico com a pessoa de quem cuidam. “Estas pessoas, como não há nenhuma lei que as proteja, acabam por se despedir porque não aguentam a pressão.” Respostas para o descanso do cuidador também são uma das exigências, como explica a presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais, a par de um reforço do apoio às pessoas com dependência – nomeadamente do subsídio à terceira pessoa ou do complemento de dependência, que “têm valores muito baixos, de cerca de 100 euros”, lamenta a mesma responsável. Igualmente imprescindível é o reconhecimento do tempo dedicado a cuidar para efeitos de carreira contributiva. “Existem pessoas que estão sem trabalhar há 20 e 30 anos e não têm uma carreira contributiva. Isso significa que vão empobrecer cada vez mais e não vão ter direito a uma reforma”, conclui Sofia Figueiredo.