Mulheres que cuidam de maridos, maridos que cuidam de mulheres, mães ou pais que cuidam de filhos, filhos que cuidam de mães ou pais. Para muitos, a descrição pode não ser familiar, mas as estimativas apontam para que existam no país cerca de 800 mil pessoas que encaixam no perfil – os chamados cuidadores informais. Ainda assim, o Orçamento do Estado de 2019 (OE 2019) não prevê, à semelhança de anos anteriores, quaisquer verbas que possibilitem o tão necessário Estatuto do Cuidador Informal, que será o garante dos direitos desta classe ainda não oficializada.
A história assemelha-se em todos os casos: alguém próximo requer cuidados permanentes – devido a doença crónica ou deficiência, mais frequentemente – e os cuidadores informais acabam por colocar a sua vida – profissional e, muitas vezes, pessoal – em suspenso, para que possam assistir quem deles precisa. E em troca, poucos apoios têm garantidos. No OE 2019, a promessa feita sabe a pouco: “Reconhecendo a importância dos cuidadores informais no apoio prestado a pessoas que necessitam de cuidados permanentes no seu domicílio, o Governo diligencia no ano de 2019 o desenvolvimento de medidas de apoio dirigidas aos cuidadores informais principais e às pessoas cuidadas, de forma a reforçar a sua proteção social, a criar as condições para acompanhar, capacitar e formar o cuidador informal principal e a prevenir situações de risco de pobreza e de exclusão social.”
Ao i, Rosário Zincke, presidente da Plataforma Saúde em Diálogo – associação que reúne 47 associados, principalmente associações de doentes -, lamenta que o Estado continue a não dar a importância devida ao papel dos cuidadores informais, mas mostra-se positiva. “Apesar de as verbas para a criação do estatuto ainda não existirem, mais cedo ou mais tarde isso vai ter de mudar, até porque isto não é uma exigência só de portugueses, corresponde também a recomendações europeias.” E, de facto, a European Social Policy Network (ESPN) tem o tópico debaixo de olho. Num relatório publicado este ano sobre os desafios dos cuidados de longa duração em Portugal, a entidade denuncia, por um lado, as dificuldades que os cuidadores informais enfrentam no nosso país, e, por outro, mostra a importância da classe na sociedade e a necessidade de aprovação do estatuto que regule a sua atividade – uma necessidade que ganha ainda mais importância quando se constata que qualquer pessoa, em qualquer momento da vida, pode tornar-se cuidadora informal por força das circunstâncias.
“A maioria dos cuidadores informais tem baixas habilitações e formação insuficiente. Apesar de já existirem algumas medidas para os apoiar na prestação não paga de cuidados de qualidade, apenas a aprovação de um estatuto formal para os cuidadores informais (atualmente em estudo) vai desencadear profundas mudanças a este nível”, considera o relatório, que assinala que “este processo é crucial também na medida em que trará bases mais estáveis para discutir a sustentabilidade financeira, especialmente porque o trabalho realizado pelos cuidadores informais pode ser estimado como representando mais de 2% do produto interno bruto (PIB) – num contexto em que é expetável que Portugal enfrente o maior crescimento, na UE, nos custos com os cuidados de saúde, incluindo os custos com os Cuidados de Longa Duração.”
Do lado do Estado português, o retrato do cuidador informal e das suas necessidades no país também estão traçados. A Comissão de Trabalho e Segurança Social apostou na redação do “Documento Enquadrador, Perspetiva Nacional e Internacional”, e o texto dá conta de que “os estudos desenvolvidos nos últimos tempos em Portugal sobre cuidadores informais são consensuais no que se refere ao papel desempenhado pela família relativamente ao apoio a pessoas dependentes, referindo a mulher/familiar como a principal prestadora de cuidados”. E além de familiares e parceiros, o documento constata que existem também “amigos” e “vizinhos” na qualidade de cuidadores informais.
O texto caracteriza ainda as funções destes cuidadores. Não são “profissionais treinados para prestar cuidados (mas, nalguns casos, podem beneficiar de treino especial)”, não têm “contratos relativos a responsabilidades de cuidados”, não são “pagos, embora possam obter contribuições financeiras”, executam “uma ampla gama de atividades (também realizadas por prestadores de cuidados formais), incluindo apoio emocional e assistência”; não têm assegurados “limites para o tempo gasto em cuidados”.
Uma reivindicação antiga
A luta por um estatuto para o cuidador informal não é nova e pauta-se por vários momentos-chave. A Assembleia da República começou por aprovar, entre maio e junho de 2016, cinco resoluções que requeriam ao governo a criação do dito estatuto.
Já quase dois anos depois, no final de fevereiro deste ano, a Comissão de Trabalho e Segurança Social realizou uma sessão de debate público no Centro de Acolhimento ao Cidadão da Assembleia da República incidindo sobre o documento “Medidas de Intervenção junto dos Cuidadores Informais”, apresentado por Manuel Lopes, coordenador nacional da Reforma do Serviço Nacional de Saúde na área dos Cuidados Continuados Integrados, que acompanhou o grupo de trabalho.
A sessão parece ter dado frutos: a meio do mês de março, o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP) apresentaram na Assembleia da República projetos de lei relativos aos cuidadores informais. O projeto do BE “cria o Estatuto do Cuidador Informal e reforça as medidas de apoio a pessoas dependentes”, enquanto o do PCP “reforça o apoio aos cuidadores informais e às pessoas em situação de dependência”. No mesmo dia em que os projetos políticos foram a discussão, também um projeto civil foi discutido, a petição “Criação do Estatuto do Cuidador Informal de Pessoas com Doença de Alzheimer e outras Demências ou patologias neurodegenerativas associadas ao envelhecimento”. Mas, a partir daí, as movimentações que se verificaram continuam a ser insuficientes.
Ao i, a Associação Nacional de Cuidadores Informais lamenta “o facto de os projetos de lei terem descido à comissão parlamentar de Trabalho e Segurança Social, para discussão durante 60 dias”, e ter “já passado muito mais tempo. Vão pedindo a prorrogação do prazo e desde março que estamos à espera das audiências das secretárias de Estado da Saúde e da Segurança Social”. No fundo, diz a presidente, Sofia Figueiredo, “só falta serem ouvidas as secretárias de Estado para que haja algum avanço no Estatuto do Cuidador Informal. Enquanto isso não ocorrer, nada acontece”.
O que pede o Estatuto do Cuidador Informal
Entre as principais reivindicações dos cuidadores informais está a redução do horário de trabalho em 50% e flexibilidade para os cuidadores que continuam a trabalhar – e que precisam, por exemplo, de ir ao médico com a pessoa de quem cuidam. “Estas pessoas, como não há nenhuma lei que as proteja, acabam por se despedir porque não aguentam a pressão.” Respostas para o descanso do cuidador também são uma das exigências, como explica a presidente da Associação Nacional de Cuidadores Informais, a par de um reforço do apoio às pessoas com dependência – nomeadamente do subsídio à terceira pessoa ou do complemento de dependência, que “têm valores muito baixos, de cerca de 100 euros”, lamenta a mesma responsável. Igualmente imprescindível é o reconhecimento do tempo dedicado a cuidar para efeitos de carreira contributiva. “Existem pessoas que estão sem trabalhar há 20 e 30 anos e não têm uma carreira contributiva. Isso significa que vão empobrecer cada vez mais e não vão ter direito a uma reforma”, conclui Sofia Figueiredo.







