Charles Simic. Dedadas numa  janela gelada

Charles Simic. Dedadas numa janela gelada


Chega-nos a segunda antologia de um poeta louvado por uma sensibilidade própria do Velho Mundo e leveza do Novo. Tendo fugido de Belgrado com a família, no rescaldo da Segunda Guerra, nos EUA Simic afirmou-se como uma das vozes que melhor tributo prestam à sobrevivência ao século de todos os horrores 


Comecemos por uma jucunda definição de poesia. E note-se como esta não se deixará confundir com tantas das que amiúde se colhem no rastro dos que fazem aos versos o desfavor de dar deles a imagem de jogos de pedanteria, forjando máximas a torto e a direito, sem pejo nem o menor aproveitamento. Pelo contrário, a grande poesia é “uma soberba serenidade em face do caos. Suficientemente sagaz para passar por tola.” Esta noção fixou-a o poeta servo-americano Charles Simic – surge mais para o final do volume de memórias “A Fly in the Soup” (2000). E poderíamos dizer que, além de denotar o característico tom de graciosa insolência que distingue o autor, esta exige da poesia uma certa reserva, um esforço para cozinhar a realidade. Como se um escabeche literário, esse envolvente molho que tanto tempera como conserva.

Depois de escapar com a mãe e o irmão da então Jugoslávia, atravessando as fronteiras da Europa e testemunhando o pandemónio em que o Velho Continente se viu transformado após a Segunda Guerra, Simic tinha 16 anos quando conseguiu finalmente juntar-se ao pai nos EUA, em 1954. Aos 21 anos, tendo começado a publicar, a sua escrita transparecia o quanto a sua imaginação fora moldada pelo desastre, pela perseguição, pelo esforço de sobrevivência, entre a fuga de Belgrado e até obterem em Paris o visto, depois de uma série de complicações burocráticas. E se esta vivência enriqueceu a sua perspetiva, como notou Ray González, a sua poesia detém-se em estranhas cenas e episódios que são construídos a partir de uma profunda convivência com a tristeza, e não poucas vezes esta “abre caminho a preciosos momentos de triunfo humano”. Contudo, naquela mesma definição de poesia, está contido um certo grau de suspeita diante da realidade, e, se numa entrevista de 1995 afirmou que, ao ignorar o mundo, um poeta se torna desprezível, alguns anos mais tarde deixou claro que não há uma via única para se respirar mais fundo entre o caos: “Nenhuma regra se aplica aqui. Whitman escreveu sobre a Guerra Civil e Dickinson não. Ambos são enormes poetas.” Tendo definido os poetas como campeões da mentira – “há um tolo em cada um deles, crente de que é em benefício da verdade que se entrega ao perjúrio” -, Simic defende que a mentira não é, na poesia, uma forma de se fugir da realidade, mas de a integrar numa boa história: “Deus queira que os poetas possam sempre contar-nos as suas mentiras. De que outro modo hão-de pôr de pé histórias desarmantes? Aquilo de que estou a falar é da imaginação. É isso o que nos permite colocarmo-nos nos sapatos de outras pessoas. Não há verdade sem imaginação.”

Se em Portugal padecemos daquilo a que José Régio chamou “a chaga do lado” – esta condição periférica e a pouca visibilidade do que vai fazendo por cá esse género de portugueses que, depois de descoberta a Índia, ficaram sem trabalho -, há depois o reverso da moeda, a pouca atenção ao mundo, um cruzar de braços e um certo desinteresse que explica porque não há ainda uma antologia satisfatória da obra de Charles Simic, autor que, desde o início da década de 1990 – quando causou sensação e algum mal-estar ao conquistar o Pulitzer com o desabusado volume de poemas em prosa “The World Doesn’t End” -, se afirmou como um dos poetas mais destacados dos EUA e, consequentemente, do mundo.

A brevíssima antologia “O último soldado de Napoleão” – que acaba de ser publicada na coleção de poesia da editora Eufeme, com seleção e tradução dos poemas de Francisco José Craveiro de Carvalho -, sucede a uma outra antologia, também ela magra, da responsabilidade de José Alberto Oliveira, e publicada há 16 anos, pela Assírio & Alvim, com o título “Previsão de Tempo para Utopia e Arredores”. Longe de ser um poeta difícil de traduzir, aquilo a que Simic obriga é uma vigilância extrema aos sentidos de que carrega os seus versos, que são de uma concisão extraordinária. Mestre cenógrafo, sem grande aparato, arrebata-nos com o seu traço firme, que se cinge a aspetos aparentemente anódinos, até se combinarem numa fórmula nuclear. Recorrendo tantas vezes à elisão, Simic traz as palavras como trocos contados para esses vícios essenciais, mostrando-se parcimonioso com elas. Dá a cada uma o seu justo peso. Obriga o leitor a tomá-las com uma certa frieza, e prova ser um notável afiador de perceções.

No magnífico prefácio a esta nova recolha do poeta em português, Rosa Oliveira refere o mundo fragmentado que esta poesia desenha, “estranho, sem hospitalidade, embora não totalmente falho de esperança”. Vinca ainda as “conexões bizarras e imagens inusuais [que] podem criar no leitor uma valoração precipitada de laivos surrealistas”. Neste texto, a autora de “Tardio” lança as pistas essenciais sobre este poeta, mas faz bem mais do que isso, provando a firme intuição de alguém que, antes de se revelar como poeta, vinha produzindo uma obra ensaística discreta que, claramente, merece melhor atenção: o seu retiro pelo risco face aos manuais de etiqueta que têm feito escola na frente da crítica académica serve bem de denúncia à tendência dos cursos de letras para emular a lógico dos cursos técnico-profissionais. Rosa Oliveira sublinha, assim, a dimensão meditativa e supreendente desta poesia, “um humor melancólico e reflexivo na sua perplexidade de pertencer à comédia da história”.

O leitor de Simic tem muitas vezes a sensação de seguir um guia que disfarça o trauma com ironia, à medida que nos conduz através dos bairros infames da História. E, no fundo, a sua tão subtil arte poética é uma lição de como trocar em miúdos esse H grande, para não se ficar estarrecido diante de um quadro demasiado ambicioso, e que, por isso mesmo, acaba por provocar mais o deleite estético do que aquelas esquivas e tantas vezes confusas sensações que articulam o terror. Só quem viu a “Guerra” de saia levantada pelos joelhos numa viela imunda, onde a luz mal sabia onde meter os pés entre as ruínas, poderia falar dela sem dizer o que faz, ou porque é “a mãe de todas as coisas”. Dando antes a sentir o concreto arrepio de se sentir envolvido por ela: “O dedo a tremer de uma mulher/ Percorre a lista de vítimas/ Na noite da primeira neve.// A casa está gelada e a lista é longa.// Estão lá os nossos nomes todos.”

Rosa Oliveira consegue uma das melhores sínteses que já se terão feito sobre esta obra logo ao segundo parágrafo do seu ensaio: “Nem todos os poetas vivem da cicuta dourada como aves canoras na gaiola do mistério. Há poetas que se estendem sobre a mesa e nos mostram o seu olhar por dentro. E não deixam, por isso, de nos surpreender e captar enigmas que apenas pressentimos, não deixam de nos incomodar com os seus saltos privados no escuro.” E se é mais breve esta antologia do que aquela que tinha aparecido em 2002, o simples facto de contar com uma leitura que, não só contextualiza, como desdobra, foca e faz ecoar criticamente a “pregnante” dimensão reflexiva desta obra, coloca-a uns furos acima da outra, que se ficava por uma apressada nota introdutória.

Dito isto, o que se pretende ressalvar é que a poesia, e mesmo uma que tem versos de uma clareza que dispensa qualquer comentário – “Os inocentes são chacinados/ Enquanto um tipo na televisão arranja desculpas” -, participa de um movimento crítico, de um diálogo e de uma troca de impressões sobre o mundo que nos permita, se não mudá-lo, pelo menos mudar de vida. E um poema como “Janeiro” – “Dedadas de criança/ Numa janela gelada/ De uma pequena escola.// Um império, li algures,/ Mantém-se a si próprio graças/ À crueldade nas suas prisões.” – é bem demonstrativo dessa sagacidade sem receio de passar por tola. Essa que, com simples ajustes, vai dando uma morte por mil cortes às noções que trazemos incontestadas pelo hábito de uma estuporada vivência numa sociedade amortalhada entre as suas regras e convenções, execrando quem quer que lhe aponte vícios.

São precisos então poetas que valha a pena seguir por um bocado. Não como líderes espirituais ou gurus, não como mestres a quem entregar a nossa admiração sem reservas, mas como figuras capazes de apontar as contradições, rir-se das fraquezas, das ingenuidades da época, expor a hipocrisia sem logo vir exigir a cabeça deste ou daquele, apressando alguma revolução. Se uma das formas de esperança que têm os explorados é a possibilidade da morte de quem os explora, há também o reforço da vida, da atitude crítica, que cerca os canalhas de uma vergonha insuportável. Mas primeiro há que resistir dentro de um outro olhar sobre as coisas, por dentro da pele das coisas. Um olhar através de poemas que valha a pena seguir, por “Uma volta” que seja: “E depois há a nossa Rua Principal/ Que se parece com um lugar de filmagens abandonado/ Cujo realizador/ Ficou sem dinheiro e sem ideias,/ Despedindo sem avisar/ A equipa toda,/ E a jovem e bonita actriz/ Vestida para o seu papel/ De pé com um sorriso abatido/ Na montra empoeirada/ Da loja para noivas de Miss Emma.”