O facto de ter vivido a censura (formal e informal) do regime deposto no 25 de Abril e de me terem habituado a tentar pensar sempre pela minha cabeça tem gerado nesta fase da vida uma angústia terrível que resulta da convicção de que a sociedade é hoje mais manipulada (sem censura formal) do que o era antes do atual regime democrático. (E isto, com as devidas alterações, é verdade em Portugal e em quase todo o mundo democrático.)
Até lá, a imprensa dava notícias (relatava factos) de que tomávamos conhecimento quando líamos as edições dos jornais ou quando víamos os telejornais, e poucos eram os comentadores generalistas (quase todos rasteiramente conotados com o regime) e quase nenhumas as personagens do pensamento e da cultura que intervinham nos meios de comunicação social (ou porque eram grosseiramente censuradas ou porque entendiam que não era essa a sua praia) que contribuíam para formarmos a nossa opinião.
Com a queda do regime, primeiro, a imprensa foi tomada de assalto por gente com agendas pessoais ou de grupo e, depois, com o advento da internet e da rapidez da comunicação (que coincidiu com a reforma dos melhores jornalistas profissionais do “antigamente” e com o acesso instantâneo e generalizado aos eventos que constituem notícias), os que vivem da comunicação passaram a considerar que as suas opiniões (ou do seu grupo) merecem ser confundidas com as notícias e os factos.
As fake news não são, pois, nada de novo. Apenas avançam muito rapidamente a sua sofisticação e o atrevimento dos seus autores, e a receita (não me refiro só a dinheiro) é sempre a mesma: quem opina esquece convenientemente o que não lhe convém recordar ou analisar.
Tudo isto para colocar brevemente em perspetiva o que nos tem sido “dado” recentemente como notícia no chamado caso do roubo das armas de Tancos (roubo que ocorreu há quase ano e meio!!!).
1 – Em primeiro lugar houve, indiscutivelmente, um crime grave, perpetrado em Tancos, em junho de 2017 (!), consubstanciado no roubo de material de guerra (que serve para matar pessoas);
2 – Ninguém acreditou antes – ou pode acreditar agora – que o dito roubo foi cometido por uma só pessoa, sem preparação ou cumplicidades e, especialmente, sem um fim posterior em vista (venda, uso direto ou outro);
3 – Esse crime continuava sem ser desvendado até que alguém (o ladrão ou outrem) – por razões que ainda desconhecemos – decidiu devolver as armas e explosivos em outubro de 2017, antes que fosse consumado o fim que motivara o seu roubo;
4 – Esse alguém, por razões que igualmente desconhecemos (falo dos consumidores de notícias), decidiu colocar como condição para essa devolução que a mesma tivesse lugar sem o envolvimento da Polícia Judiciária (exigências homólogas são muitas vezes feitas pelos raptores em casos de rapto);
5 – A Polícia Judiciária Militar, conhecedora dessas condições e crente da fidelidade da sua fonte (não pode ter sido de outra forma), parece ter aceite essa condição e recuperou o material letal roubado;
6 – Na boa tradição militar, decidiu correr um risco (de a fonte a enganar), pesando os benefícios (a recuperação das armas), e transmitiu superiormente (imagino que com a discrição que o tema exigia) os factos em que se envolvera;
7 – Por razões que não vêm agora ao caso, a Polícia Judiciária soube a posteriori (só pode ter sido a posteriori…) deste “arranjo” e… prosseguiu durante 11 meses (de outubro de 2017 a setembro de 2018) a sua investigação (agora com a nova pista da pessoa que combinou a devolução do material roubado) para saber quem foi o ladrão das armas e detê-lo (e seus mandantes), desvendando as suas cumplicidades e motivações… Errado!!!
8 – Não! A Polícia Judiciária prendeu em setembro de 2018, com o espetáculo televisivo e mediático a que nos habituou desde o regresso voluntário do “fugitivo” José Sócrates, os responsáveis pela Polícia Judiciária Militar e os meios de comunicação passaram a designá-los por presumíveis criminosos, “implicados no caso de Tancos”, confundindo o roubo das armas com a forma como elas foram recuperadas.
Os casos em que as polícias em geral e a Polícia Judiciária em particular (e bem, do meu ponto de vista) cruzam a linha da legalidade formal para obterem resultados e bens maiores têm de ser, obviamente, frequentes e conhecidos de muitos e, neste particular, os processos com “infiltrados” e com “agentes provocadores” (especialmente em casos de droga) têm sido os mais mediáticos, e alguns têm mesmo chegado a ser duramente criticados pelos juízes, em julgamento, mas – que se saiba – nunca a PJ ou os seus agentes e diretores foram presos ou indiciados por isso.
Não defendo a liberdade de as polícias irem para além da lei, mas sei/sabemos que os militares, por regra muito geral, não traem o seu país nem desobedecem às suas leis de ânimo leve.
Fizeram-no algumas – poucas – vezes e a mais mediática insubordinação contra as regras estabelecidas foi… o próprio 25 de Abril.
A lamentável palhaçada a que estamos a assistir, com a manifesta (e inconsciente?) conivência da comunicação main stream, faz-me lembrar uma frase algumas vezes repetida por Salgueiro Maia, de quem fui miliciano adjunto, em Santarém, entre 1974 e 1975: “Oh, João, pelo caminho que isto leva, não me espanta que comecemos (referia-se a outros camaradas, e não a mim) a ser conhecidos como “os implicados no 25 de Abril.”