Algumas das 66 vítimas do incêndio de Pedrógão Grande morreram por inalarem o fumo intenso que as rodeava. Apesar de terem abandonado as viaturas para escapar das chamas, algumas das vítimas acabaram por não sobreviver ao monóxido de carbono libertado pelo fumo. Foi o que aconteceu a Luciano Joaquim, que abandonou o seu Fiat 127 parado na berma da estrada e que mais tarde começou a arder. Luciano Joaquim correu para uma rotunda julgando ser um local mais seguro, mas não sobreviveu ao oxigénio corrompido.
Também Sérgio Duarte, que ia a casa da namorada no seu Golf para jantar, foi surpreendido pela queda de uma árvore a arder na estrada. Sérgio abandonou a viatura e fugiu a pé pela estrada. Foi encontrado a alguns metros do carro.
Contamos ainda a história da família Costa, que costumava ir passar férias a Vilas de Pedro, onde se encontravam naquele fim de semana. Depois de terem observado o início das duas frentes de fogo que se aliaram, decidiram antecipar o regresso a Lisboa. Mas nem todos conseguiram sobreviver ao incêndio. Depois de o seu Audi A4 ter ficado imobilizado, a família fez-se a pé à estrada, com esperança. Mas acabaram por ser atropelados. A única sobrevivente foi a mãe de Eduardo Costa.
Estas são algumas das histórias que estão no capítulo vi do relatório dos peritos liderados por Domingos Xavier Viegas, que o governo decidiu não divulgar. É nestas cerca de 100 páginas que estão descritas as circunstâncias em que morreram as 66 vítimas de Pedrógão Grande.
Maria Cristina e Eduardo Costa
Baseado nos depoimentos de Fernando Freitas, Geoffrey Pease e Jorge Agrias
“Eduardo Costa (57 anos) e Maria Cristina Costa (56 anos) viviam na Pontinha, Lisboa, com os seus dois filhos Sara Costa (24 anos) e Diogo Costa (20 anos). O Eduardo trabalhava em próteses dentárias. A sua ligação a Vilas de Pedro era sazonal. Iam em especial no verão, a meio de agosto costumavam ir à aldeia fazia as vindimas e passava algum tempo no verão. Levavam toda a família e dispunham de duas ou três casas para ficar.
No dia 17 de manhã haviam-se deslocado a Vilas de Pedro, para passar o fim-de-semana, numa casa de família de que dispunham no centro da aldeia. Acompanhava-os a Sizaltina Jesus Antunes (78 anos), mãe de Eduardo. Encontraram-se com duas irmãs da Sizaltina, que vivem também na Grande Lisboa, e se encontravam em Vilas de Pedro há uma semana.
Almoçaram juntos na casa da família, que era de Eduardo. Permaneceram em casa e pelas 17 horas o Eduardo esteve a regar o quintal. Tiraram algumas fotos, com o telefone da Maria Cristina, em que se vê ambos a regar o jardim. Algumas das fotos, tiradas cerca das 20 horas, mostravam já o incêndio.
Era sua intenção regressar a Lisboa no dia seguinte, domingo, mas ao verem o grande incêndio que estava no horizonte, cerca das 20 horas, terão tomado a decisão de antecipar o regresso e voltar nesse mesmo dia a Lisboa. Terão preparado o carro, uma carrinha Audi A4, e saído de Vilas de Pedro, em direção ao IC8, pela estrada que se dirige a Campeio. Descendo pela M521 terão passado por uma zona de recreio, que tinha um parque de merendas, com alguma lenha amontoada. Muito provavelmente ao ver que a floresta na encosta à sua frente, em volta da estrada, estaria a arder, terão decidido voltar para trás. Admite-se que poderia ser o próprio monte de lenha que, ao estar a arder, teria induzido o Eduardo a inverter a marcha no próprio parque de merendas, onde esta manobra seria fácil de executar.
Uns 100 metros mais adiante, já envoltos em fumo, perdeu a visibilidade e o carro saiu da estrada pelo seu lado direito, entrando num caminho muito íngreme, um pouco antes do muro que ladeia a ponte sobre o pequeno riacho que percorre o vale. Havia sinais de travagem na estrada, antes da saída. Dada a inclinação do terreno não conseguiu manobrar o carro para voltar à estrada e decidiram abandoná-lo. Como a Sizaltina tinha dificuldade de locomoção, abriram a bagageira do carro para retirar o andarilho da senhora, para ajudá-la a percorrer os cerca de 200 metros que tinham de andar para chegar junto das primeiras casas de Vilas de Pedro. Acabaram por deixar o andarilho e foram andando pela estrada, que faz uma curva para a esquerda e mais adiante novamente outra à esquerda, sempre em subida, primeiro suave e depois um pouco mais íngreme.
O casal estaria a empurrar a Sizaltina, num grande esforço, para percorrer a distancia que os separava das casas. No trajeto a partir da curva entraram na subida e terão apanhado muito calor, devido ao fogo na barreira situada na estrada à sua direita e sobretudo no campo agrícola à sua esquerda.
A meio da reta, mesmo ao chegar à placa de Vilas de Pedro, segundo supomos, um veículo que viria na mesma direção que eles, sem os ver por causa do fumo, terá atingido diretamente o grupo, projetando o Eduardo para fora da estrada e a Maria Cristina para a berma.
Geoffrey Pease (66 anos), um cidadão inglês, que vive há mais de quatro anos no lugar de Casal, muito perto de Vilas de Pedro. No dia 17 foi visitar uma pessoa amiga para jantar na Moita, por volta das 18 horas. O fogo foi-se aproximando e pelas 20h30 decidiu deixar a casa dessa pessoa e regressar a Casal. Na fuga, que fez no seu Opel Corsa de 1998, entrou na estrada, com muita dificuldade. Devido ao fumo ia guiando pela estrada até à EN236-1, na direção de Figueiró dos Vinhos, guiado pelo risco horizontal. Viu casas a arder e árvores caídas na estrada, diz que ia a passar no “inferno”. Com o fumo e a confusão não se apercebeu do veículo florestal de combate aos incêndios na estrada, nem das pessoas que se encontravam no cruzamento para Vilas de Pedro. Lembra-se de ver umas pessoas a gritar-lhe, para não prosseguir. Pensou que eram polícias, mas deveriam ser os bombeiros. Ao não se ter dado conta deste cruzamento, seguiu em frente e acabou por entrar no troço do acidente. Prosseguiu até encontrar um conjunto de cinco carros a arder, inverteu a marcha e fez a estrada EN236-1 no sentido inverso. Desta vez já conseguiu cortar para Vilas de Pedro.
Pelas 20h50 passou a igreja de Vilas de Pedro e depois, na primeira curva no caminho para Casal, viu dois vultos, na estrada. Pensou que fosse uma árvore caída. Parou o carro e saiu. Viu uma senhora mais velha sentada no meio da estrada, que falava. Geoffrey segurou nela por trás, ajudou-a a levantar-se levou–o para a berma da estrada, para não correr o risco de ser atropelada. Sentou-a ao lado da Maria Cristina. Reparou que a Maria Cristina, que identificou como a senhora mais nova, ainda estava viva.
Geoffrey Pease disse-lhes em português “ambulância”, para lhes transmitir que ia chamar uma ambulância. Veio até casa e pediu ajuda ao vizinho Jorge Agrias, que é presidente da junta de freguesia de Campeio, que foi logo chamar a ambulância. Não seriam mais do que as 21hl5 quando este pedido foi feito ao presidente da Junta de Freguesia de Figueiró dos Vinhos, que é também o Presidente da Associação Humanitária dos Bombeiros Voluntários de Figueiró dos Vinhos. É de referir que no local o sinal da rede móvel é muito fraco. Entretanto Geoffrey Pease manteve-se em casa para apagar o fogo no seu jardim, que estava a começar a arder. Apenas voltou a Vilas de Pedro no dia seguinte de manhã e viu no local as autoridades e só então se apercebeu da presença do corpo de Eduardo Costa, junto da berma, num terreno agrícola.
A versão que aqui apresentamos de que o grupo de três pessoas terá sido atropelado por um veículo, constitui uma suposição que fazemos, com base nos dados que recolhemos no terreno e precisam de ser confirmados por exames periciais que não tivemos tempo nem condições de realizar. Baseamos esta suposição nos seguintes dados: a posição em que foi encontrado o corpo de Eduardo, caído no meio de um olival, à beira da estrada e a cerca de dez metros desta, não é compreensível se não tiver havido uma projeção, que seria explicável por um embate; o facto de o corpo de Eduardo apresentar sinais de sangue; o facto de neste acidente terem perecido as duas pessoas mais jovens e sobrevivido a pessoa mais idosa, o que, em nossa opinião supõe a existência de um fator externo, tal como um atropelamento, que tenha condicionado fortemente a sobrevivência deste casal.
Quando foi socorrida, a Sizaltina estava próxima da nora. Como terá andado com os joelhos no chão, tinha escoriações nos joelhos e as suas calças estavam danificadas. Apresentava queimaduras nos braços e na cara. Estava num estado de desorientação, que era compreensível, dada a situação por que passara.
Os telefones do casal mantiveram-se a funcionar e assim se encontram até o presente. O Fernando Freitas indicou--nos que existe uma chamada feita para o número 112, pelo telefone do Eduardo, depois da hora do acidente, o que nos leva a admitir que não terá tido morte imediata. Cerca das 23h50 a Sizaltina deu entrada no Centro de Saúde de Castanheira de Pera.
A irmã de Eduardo foi logo para Coimbra porque a sua mãe estava a ser intervencionada no Hospital Universitário de Coimbra. Tinha queimaduras de 2º e 3º grau. Esteve um mês no Hospital Universitário de Coimbra. Esteve três semanas no hospital em Loures e em setembro está numa unidade de cuidados continuados”.
Luciano Maria Joaquim
Depoimento recolhido Outão (Pedrógão Grande) na oficina do senhor Albano Graça, que nos relatou o modo como teve de defender a sua oficina, as máquinas e carros que tinha em torno das oficinas e casas de familiares seus, e nos relatou várias situações que se passaram na estrada em frente da casa
“O senhor Luciano Maria Joaquim (78 anos) vivia em Ramalho, com a sua esposa Amélia (80 anos). Na altura do incêndio terá saído com o seu carro, um Fiat 127, desconhecemos qual fosse a sua intenção.
Terá passado por estradas secundárias, de terra batida, até chegar à estrada CM1170, quase em frente da bomba de gasolina que se encontra desativada. O senhor Albano Graça estava diante da oficina, onde estivera a tentar salvar uma viatura pesada que estava carregada com fardos de palha, levando-a para longe dos carros e da bomba de combustível, mas sem sucesso, uma vez que os fardos de palha começaram a arder e acabaram por pegar fogo à viatura, embora felizmente não se tivesse propagado as casas. O Albano Graça conseguiu afastar-se da viatura a custo e com algumas queimaduras.
Com o fumo apenas se apercebeu da presença de um carro, no outro lado da estrada, por este estar a arder. Começou por supor que se tratava do carro do seu genro, que costumava estacionar a viatura ali perto, mas depois verificou que não era. Mesmo assim aproximou-se do carro e reconheceu que era do Luciano Maria Joaquim. Viu que tinha o vidro do condutor aberto e que fagulhas tinham entrado e pegado fogo aos estofos do carro. Espreitou para ver se estavam pessoas dentro e, ao confirmar que não, afastou–se pois não tinha meios para extinguir o fogo. Referiu-nos que o carro estava parado na berma da estrada, como se estivesse estacionado e nessa altura o incêndio ainda não tinha chegado àquela zona. Mais tarde viu que com o calor, as copas das árvores – maioritariamente eucaliptos – começaram a arder quase ao mesmo tempo, numa faixa de grande extensão. Referiu que mais tarde viu o fogo descer para o solo e propagar-se pelo chão.
O vento que precedeu o incêndio foi de tal modo intenso que o carro do Luciano Joaquim foi literalmente empurrado, vindo a cair na ravina, ficando tombado mais de cinco metros ao lado e cerca de um metro abaixo de onde estava estacionado. Esta circunstância terá levado a PJ a supor que o carro se teria despistado naquele local, causando a morte do dono. O Albano Graça, teve oportunidade de informar a Polícia do que havia testemunhado, desfazendo aquela suposição.
O Luciano Joaquim saiu do carro e foi andando, certamente com muita dificuldade, por causa do fumo e do calor, em direção à rotunda, onde teria maior segurança. Possivelmente ter-se-á aproximado do lado da serração, onde havia pilhas de madeira que começaram a arder. O Luciano Joaquim refugiou-se então junto do muro da serração.
Foi encontrado durante a noite, pelos bombeiros, sem sinais de queimaduras, o que indica que o Luciano Joaquim terá morrido por asfixia causado pela inalação dos fumos e pelo calor produzido pela radiação do incêndio.
Na madrugada o Albano Graça viu um veículo florestal de combate aos incêndios e alguns bombeiros parados perto da serração, sem fazer uso da água e das mangueiras que traziam. Aproximou-se deles e perguntou-lhes o que estavam a fazer ali. Os bombeiros chamaram-lhe a atenção para o corpo do Luciano Joaquim que estava ali. Mesmo assim pediu- -lhes que apagassem o fogo nas pilhas de madeira pois, caso contrário, arderiam uma empilhadora e outras máquinas que por ali estavam. Os bombeiros terão respondido que não tinham essa ordem. Passadas algumas horas aquelas máquinas arderam efetivamente, para além de muita madeira que se encontrava armazenada na serração”.
Sérgio Duarte
Depoimento de Susana Nunes
“O Sérgio Filipe Quintas Duarte (32 anos) é natural de Coelheira, em Figueiró dos Vinhos. Passava, no entanto, algum tempo em casa da companheira Marisa Alexandra Fernandes Nunes, em Pinheiro Bordalo.
No dia 17 o Sérgio Duarte estava em Penela, a frequentar uma ação de qualificação profissional, com vista à obtenção de um emprego. A Marisa estava nesse dia a fazer uma peregrinação a pé a Fátima, tendo ficado combinado que o Sérgio viria jantar a casa da Marisa e que, após o jantar, a iria buscar para casa, quando tivesse terminado a etapa da caminhada desse dia.
Por volta das 20 horas a Susana Isabel Fernandes Nunes (34 anos), irmã de Marisa, ao dar-se conta que estava a ficar muito escuro, por causa do incêndio, telefonou a Sérgio para ele vir jantar. O Sérgio respondeu-lhe que já ia a caminho pela estrada que segue de Figueira para Pinheiro Bordalo. Como iria demorar pouco a chegar, pediu-lhe para preparar o jantar. Em seguida a Marisa telefonou à irmã, perguntando-lhe pelo Sérgio, pois não estava a conseguir ligar-lhe. Pediu à Susana para a avisar quando o Sérgio chegasse a casa. A partir das 20h30 deixaram de lhe conseguir ligar para o telemóvel. Pelo que se soube mais tarde, já próximo de Pinheiro Bordalo, o Sérgio teve de fazer uma inversão de marcha por causa do fogo. Conduzia um Volkswagen Golf, a gasóleo. A queda de uma árvore que cortou a estrada impossibilitou-lhe a fuga na direção contrária.
O Sérgio abandonou então o carro, deixando a sua porta aberta, e fugiu a pé pela estrada. Em determinada altura deixou cair as chaves do carro, que deveria levar na mão e, alguns metros mais adiante, caiu. Foi encontrado morto por asfixia. Entretanto a família continuou a tentar contactar com o Sérgio, sem sucesso.
Pelas 02 horas a Marisa chegou a casa. Continuaram a aguardar, até que uns primos, que chegaram pelas 4 horas, disseram que havia um morto na estrada, que poderia ser o Sérgio. Depois de saberem as roupas que o Sérgio levava vestidas naquele dia, aumentaram os receios. Tiveram a confirmação de que era de facto o Sérgio Duarte o homem morto que se encontrava na estrada a caminho de Pinheiro Bordalo.
O corpo seria removido cerca das 18h30, pelas autoridades, para o Instituto de Medicina Legal em Coimbra.”