Arranca hoje um ciclo de conversas sobre sexualidade no Museu da Farmácia, em Lisboa, que se prolongará por um ano. E a base? Nada mais, nada menos, do que dez objetos do Museu cuja história servirá de ponto de partida para um conversa despudorada, franca e honesta sobre a sexualidade – a nossa e a dos nossos antepassados. E que, pelo caminho, quer contribuir para a inclusão, já que este é um assunto que, acima de tudo, é tão banal como qualquer outra necessidade fisiológica.
Este é um projeto que, certamente, derrubará alguns mitos, logo a começar pelo cinto de castidade feminino que, mais do que objeto de tortura usado por maridos ciumentos, era, muitas vezes, a única forma de as mulheres se protegerem contra violações – especialmente durante os tenebrosos períodos de guerras. “Relativamente a este objeto temos, provavelmente, a fake news mais antiga que se conhece, que é pensar que os cintos ditos de castidade existiam na Idade Média – a única pessoa que conheço que terá usado um cinto de castidade nessa altura é o Woody Allen naquele filme “O ABC do Amor””, brinca João Neto, diretor do Museu da Farmácia, enquanto nos guia pelos objetos do acervo que estarão em foco. “Mas no século XVII e XVIII, numa Europa em guerra, todas as famílias europeias tinham um exemplar, era uma forma de proteção das violações. E quando as senhoras começam a ingressar no mundo fabril, também usavam, porque à noite, não era assédio, era assalto sexual, uma violência brutal, e esta muitas vezes era a melhor forma de se protegerem”, atalha.
Já os rapazes que cresceram no século XIX usavam um objeto semelhante, mas que tinha o propósito oposto: um cinto de punição para evitar que se masturbassem. “No século XIX havia a ideia médica de que os adolescentes, quando tinham uma relação muito intensa com o seu órgão sexual podiam ficar cegos, surdos, mudos e parvos”, explica o diretor, enquanto nos aponta o dito, aqui exposto ao lado do cinto de castidade. E logo abaixo destes dois objetos, um vibrador medicinal, inventado para resolver um mal que, diziam os clínicos, só acometia as mulheres: a histeria feminina. “Era um problema real para um país, numa altura em que se estavam a construir os impérios. Se tivermos uma família disfuncional, podemos criar um país disfuncional que não vai aguentar um império”. E a solução, voilá… foi criar vibradores. “Se o problema era uma questão de nervos e energias acumuladas que precisavam de ser libertadas, então a medicina e os técnicos juntaram-se para criar um objeto que não implicasse penetração – porque a histeria era para todas as senhoras, consoante o seu estado civil – mas que as ajudasse a libertar toda a energia e fazer, assim, que a histeria saísse do corpo”. Os vibradores eram disponibilizados mediante receita médica, e apenas podiam ser usados com o aval dos pais e maridos – mas para as famílias que não apreciavam ter um objeto destes em casa, os médicos começaram a sugerir outra via: a utilização de uma máquina de costura, em que, com as pernas juntas e a dar aos pedais, as senhoras conseguiriam estimular as mesmas partes e libertar a sua energia orgásmica a costurar.
Estes são apenas exemplos de objetos presentes no Museu da Farmácia que servirão de base a este ciclo de conversas – uma ideia que surgiu há um ano.
Primeiro, foram visitas
Foi, efetivamente, no ano passado que este ciclo se começou a desenhar na cabeça dos organizadores. É comum o Museu da Farmácia organizar visitas temáticas, mas havia uma em específico que, só de boca em boca, estava sempre cheia. Chamava-se “5000 mil anos da história da sexualidade”.
Daí surgiu a ideia de organizar “um ciclo de conversas sobre diversas temáticas, em que cada peça do museu vai despertar a conversa”. A coordenação da iniciativa cabe a João Neto e a Isabel Pires, responsável dos Serviços Educativos da ANF, e é ainda apoiada pela SPSC – Sociedade Portuguesa de Sexologia Clínica e pela WAS – World Association for Sexual Health.
As conversas serão mensais e decorrerão até ao próximo ano – com exceção de julho e agosto de 2019. Em princípio, vão acontecer nas últimas sextas-feiras de cada mês, sempre com oradores diferentes, consoante as temáticas. A violência – em que uma juíza se juntará à conversa -, gravidez, VIH/sida, somatização, género, religião, mitos, educação, sedução e magia, sexualidade e a Revolução dos Cravos, e hábitos sexuais na viragem do século XIX são os temas que estarão em destaque ao longo do ano.
“Julgo que o objeto mais antigo de que vamos falar é uma colher de cosméticos egípcia, que tem a ver com a sedução, a beleza; e a mais recente talvez seja a primeira pílula contracetiva oficial que foi introduzida no mercado português, que tem a ver com a Revolução dos Cravos”, explica o nosso interlocutor. “Devido às mentalidades, era um medicamento moralmente subversivo, apenas cedido para regular o período menstrual das senhoras, nunca se poderia dizer que era contracetivo porque isso iria contra um certo pilar da sociedade”, contextualiza.
Da era pré-colombiana para os nosso dias
A primeira mesa redonda, já hoje, está marcada para as 19h00 e gira em torno de uma peça “pré-colombiana que representa uma pessoa que padece de nanismo, um problema de crescimento”. A partir daí, seguimos para uma conversa sobre a sexualidade de “pessoas com diversidade funcional e intelectual”, para refletir sobre a aproximação, por exemplo, de pessoas com autismo, ao sexo. Um ângulo que será abordado pelos convidados Rui Machado, em representação do movimento ‘Sim, nós Fodemos’, Diana Santos, psicóloga, e Carmo Gê Pereira, educadora sexual para adultos. A conversa vai ser moderada por Isabel Freire, jornalista e socióloga.
Sobre esta peça em específico, João Neto ressalva que a forma como as pessoas com nanismo foram descritas na história ao longo dos tempos nem sempre corresponde a uma ideia hoje vulgarmente difundida de que eram ostracizados. “Na cultura pré-colombiana, as pessoas com nanismo tinham um estatuto muito especial porque eram mediadores entre o céu e a terra, estavam integradas e eram pessoas importantes. E quem é que não gosta de ter um lobbyzinho ao pé do poder? Estas pessoas eram puxadas para o pé dos poderosos, o que desconstrói as ideias que sugiram depois mais tarde, por exemplo na Idade Média, de que as pessoas com nanismo eram bobos da festa”, explica. “Isto também é uma forma de explicarmos que uma doença ou condição, através de uma peça ligada à história da humanidade, pode ser importante para as pessoas serem inclusivas”.
Última nota: este ciclo de conversas não está interdito a menores de 18 anos. “Queremos, acima de tudo, promover conversas que estimulem mentes iluminadas”.