Pascal Rambert. “Confiar naqueles que ficam no escuro”

Pascal Rambert. “Confiar naqueles que ficam no escuro”


O Teatro Nacional D. Maria II arranca a temporada com uma peça do francês Pascal Rambert, que depois de ter corrido o mundo e escrito para atrizes como Emanuelle Béart ou Isabelle Huppert, escreveu “Teatro” para um elenco português encabeçado por Rui Mendes e Beatriz Batarda


Mal calibrada, a ficção é outra droga e o que tem de medonho a partir de certo ponto, para lá da dependência e da ruína, é a diluição de tudo, o vazio que deixa. “Teatro”, de Pascal Rambert, é uma peça que se lança com uma sofreguidão espantosa nessa zona onde as normais leis dramáticas não se aplicam. Ou antes: vão sendo erodidas, sobrepondo-se. E à medida que as linhas de orientação se perdem, há um efeito de migração, como num desses sonhos de que se desperta intoxicado, e que deixam sempre restos, equívocos, lapsos, fraturas na sintonia entre a visão que se teve e que nos dominou tão mais do que é capaz a realidade. Rambert fala como um místico. Fala do teatro como de uma mágica e, sem paciência para vigiar os excessos, parece ter levado muito a sério o conselho de que é preciso estar sempre embriagado. Nem hesita ao afirmar que o teatro que faz é para grandes atores: “São precisos monstros para os papéis que escrevo.” Mas esclarece: “Porque é muito texto, é muito violento, e não há lógica interna no discurso. Eu escrevo fluxos de consciência, momentos em que as pessoas se soltam, se põem verdadeiramente a falar.” 

O processo, tem vindo a afiná-lo há 40 anos, como conta ao i, já desde os tempos de liceu, quando escrevia para os colegas, pedindo-lhes que dissessem alguma coisa, que se desatassem. E não se tratava de editar a realidade, alindar as frases. Diz que não há nada de racional naquilo que faz, mas que fica ali só o tempo necessário para agarrar uma frequência, ser colocado na encruzilhada de uma vida e tomar a liberdade de um outro percurso, aquilo que os seus atores poderiam ter sido se… Na entrevista que integra a folha de sala, o autor e encenador adianta ainda: “Tenho estes corpos, estas energias, não tenho plano. Nunca escrevo sobre a história íntima destas pessoas, mas sei que a Beatriz [Batarda] é uma apaixonada, que trabalha loucamente, ensaia, cuida das crianças, faz mil coisas. E, depois, o Rui diz-me: ‘Sabes que o meu avô era ator?’ E eu sei que a minha peça vai começar com a palavra avô. E que isso me vai levar até ao fim da peça — que, aliás, termina com a palavra avô (e, isso, eu não tinha previsto). E é assim que a escrita se vai fazendo. A verdade é que me deixo levar. O que me interessa é fazer as pessoas falarem.”

Tem 56 anos mas, pondo-lhe a vista em cima, ninguém lhos daria. A escrita também dispensa a pontuação. Não há uma vírgula ou um só ponto final, mas um frémito ventoso, exigindo de quem lê que arrume o seu próprio pulso e sinta o reforço das possibilidades por via da incerteza. Aumentando a parada, de forma imprudente e subversiva, esta dramaturgia lembra uma peça esventrada, para sentir-lhe as funções vitais, os ritmos internos desse corpo que, esvaindo–se, se mostra mais vivo que nunca.

O convite partiu do diretor artístico do teatro nacional, Tiago Rodrigues, que também lhe sugeriu o elenco. O francês passou algum tempo na companhia de Beatriz Batarda, Rui Mendes, Cirila Bossuet, João Grosso e Lúcia Maria, como quem entrevistasse candidatos para uma fantasia, e levou para Paris uma fotografia que tirou dos cinco, para dar aqueles corpos a cheirar aos seus instintos e persegui-los noutras latitudes, como um caçador que, ao invés de dar morte, pretende antes provocar uma refração. E é por isso que “Teatro” faz pensar no navio de espelhos, o tal que, ao crepúsculo, espelha sol e lua nos flancos, gostando o tempo, por essa razão, de deitar-se com ele. “Vozes e ar pesado/ é tudo o que transporta// E no mastro espelhado/ uma espécie de porta”.

Além do corpo, os atores dão o primeiro nome, são eles e são os seus outros, e cada uma das ficções tropeça na realidade. Estão ali no ensaio de uma peça, com os papéis decorados, revendo algumas das cenas mais exigentes, e porque aquele é um trabalho que se faz nu, como frisa Rampert na entrevista que deu ao i, em que não é possível fingir, está em evidência o perigo que há no teatro, o do ator que tem de expor-se à verdade da personagem, e pode com isso ver desabar a sua estrutura emocional, deixando à vista os seus conflitos pessoais. Assim, tanto o encenador (Rui) como os atores dependem da confiança que depositam uns nos outros, e é a criação dessa confiança entre a equipa que Rambert elege como o elemento essencial em cada uma das produções a que se entrega.

Tendo dirigido durante uma década o T2G – Théâtre de Gennevilliers, da mesma forma como escreveu “Teatro”, dirigindo pela primeira vez um elenco português, assim também o fez para Emanuelle Béart ou Isabelle Huppert, e assim tem escrito para elencos em todo o mundo, na China, no Japão, no México, na Rússia… E as produções sucedem-se a um ritmo alucinante, chegando, no decurso de uma temporada, a dirigir entre oito e dez produções. Assegura também que nunca deu por si intimidado diante desta vertigem e que a entrega é a mesma quer esteja a trabalhar num teatro nacional ou num teatro de esquina. E a peça que marca o arranque da nova temporada do Teatro Nacional D. Maria II – onde estará em cena até ao dia 14 de outubro, seguindo-se um ciclo de apresentações no Teatro Nacional São João, no Porto, de 18 a 28 de outubro, e possivelmente uma digressão internacional – vive da sua própria vida, das experiências no teatro e com os atores. E assume o estrénuo relevo de uma obsessão. No dia em que irá soprar as 80 velas, antes ainda de os outros se lhe juntarem no palco descarnado, iluminado tão friamente como um hospital, a parte de trás de um talho, Rui pesa a sua vida num longo monólogo, despede-se dos seus fantasmas, vê o que foi e o pouco que falta. Deita-se com o tempo inteiro, desde que foi neto de um ator – um aspeto da biografia de Rui Mendes de que Rampert se serviu como gatilho para o impulso que lhe deu o arranque e ainda viria a rimar com o desfecho – até à hora da sua morte, ao colapsar em palco em frente à neta. 

Nesse monólogo inicial, a perspetiva que se lança alcança o tempo de uma vida do mesmo modo que a refração de pormenores preenche a eternidade de um momento (“como os olhos da mosca/ refletem os objetos”): “a nossa poesia a nossa literatura eu restituí-a sob a forma de gestos de idas e vindas de corridas de batalhas de cenas de amor e de ciúmes (…) pendurado na teia fiz de morto beijei muitos lábios tive muitas vezes medo abracei os meus colegas antes das estreias e entrei sempre como um criminoso na luz paradoxalmente nós matamos em plena luz os criminosos da vida matam na obscuridade nós matamos na luz todos os nossos atos são feitos na luz (…) é esse o meu trabalho tal como tu tu fizeste todos os nossos reis os nossos camponeses as nossas rainhas as nossas criadas fizeste animais loucos mentirosos soldados pobres amantes suicidas artistas jovens apaixonadas eras muito bom em mulher adoravas fazer mulheres como eu quantas vezes passei tal como tu pelo corpo de uma mulher as minhas ancas a minha voz as minhas mãos a minha cabeleira fazia-as muito sóbrias gostava da sobriedade uma espécie de nuvem é isso fazer o papel do outro como a passagem de uma nuvem em mim não forçar o traço ser e confiar no que o outro vê terei passado a vida a fazer isso confiar naqueles que ficam no escuro”.

E acaba por ser este o óbice e o vício desta desaustinada ficção. Ao pretender capturar a vida, levando para palco e até comentando (sem particular subtileza, de resto) aquilo que está no seu entorno, o que se passa fora do palco e do teatro, o drama vê-se sacrificado para dar lugar a um monumento à vida destes artistas. O fervor de Rambert, todo o seu ímpeto criativo não chega para apagar a sensação de estarmos perante uma criação incapaz de romper com realidade, acabando por se diluir nela. Sentem-se no palco os ecos dos passos de tantos outros atores, as falas respondem-se numa fúria que não chega a ser mais do que a flexão dos músculos do performer, há muletas caídas por toda a parte, nada acontece, tudo tem a vida de um eco. E a audiência, no escuro, não consegue senão acompanhar com o mesmo interesse ou alheamento de quem ouve as conversas dos outros. Tudo tão verosímil, mas em função de quê?

De tanto confiarem naqueles que ficam no escuro, os artistas acabam por deixar a arte em ponto morto, abdicando do ganho da mais burilada estrutura e pontuação, da suprema dificuldade necessária para arrasar uma plateia, e cedem a uma postura autotélica, tornam-se complacentes (“o que qualquer um faz de maneira privada nós fazemos de maneira pública”). Ora, como o próprio encenador lembra no seu monólogo, ficar no escuro é também uma paixão (“adoramos ficar no escuro e olhar para as coisas íntimas na luz vimos cá para isso ver sofrer na luz ver muita dor na luz ver a violência provocar muita dor na luz”). E é difícil não esmorecer diante de uma razão-reflexo, de um teatro autopsiado e que, por mais que gesticule, se sacuda e lance em espasmos, não consegue deixar em cena mais do que outro cadáver. 

Não há momento mais pornograficamente fastidioso no modo como a audiência vai sendo sujeita a patuscos enxertos que aquele em que João (o personagem? o ator?) é desafiado pelos restantes atores a revisitar a declamação-espetáculo da “Ode Marítima”, de Fernando Pessoa, que João Grosso levou aos palcos por duas vezes, e assim nos mostra os dois registos que usou, com um intervalo de dez anos, sendo filmado por Cirila (Bossuet) – a jovem empregada de limpeza, com pais angolanos, e que na verdade está ali só para substituir uma amiga, porque anda a estudar Ciência Política e até ambiciona tornar-se encenadora… É como se estivéssemos a ver uma pastilha elástica, depois de muito mastigada, encher-se de ar, fazer um balão à boca de cena, e, por fim, explodir espalhada sobre os beiços.