Jean-Pierre Canon partilhou durante várias décadas o seu amor pelos livros, em vários sítios do centro de Bruxelas, até se fixar nos últimos anos na comuna de Ixelles, na zona popularmente conhecida como Matongé, o bairro homónimo de Kinshasa e o centro da presença africana na capital belga. Enquanto bouquiniste, Canon não se limitava aos cânones africanistas, tinha de tudo um pouco, com uma preferência pela literatura proletária e pelas correntes anarquistas. Sábio e tímido, coleccionava pequenos tesouros que colocava nas vitrinas da livraria, acompanhados muitas vezes por fichas bibliográficas e recortes de jornais a propósito dos autores e das obras. A ficha dactilografada servia de pretexto à conversa sobre o livro, não uma conversa obrigada, mas uma partilha generosa e doce do muito saber acumulado. Deixou-nos no dia 12 de Janeiro, regressado de uma longa estadia no hospital e com a alegria de vir acabar entre os livros e os amigos. A livraria Borgne Agasse (em valão: a pega loquaz, um clin d’oeil à personalidade de Jean-Pierre) resistiu, com o empenho da filha, mais alguns meses. Entrou entretanto em liquidação e fechou definitivamente esta semana.
Na última visita fui directamente à prateleira da literatura contestatária com ligações a Bruxelas. Trouxe uma “Vie et mort de Trotsky”, a primeira edição de Paris, de 1951, de Victor Serge, nascido em Bruxelas em 1890. A obra conta com largos trechos escritos por Natália Sedova, a viúva de Trotsky, e tem, naturalmente, um cunho hagiográfico. Um século depois da Revolução de Outubro, ainda se lê com prazer e com maior benefício no que respeita ao percurso da oposição de esquerda ao leninismo e da resistência ao estalinismo.
Da mesma prateleira veio o livro “Les Années noires vous intéressent?”, título curioso na medida em que a expressão é normalmente empregue para o período do colaboracionismo belga sob ocupação alemã e a gestão política e judicial dos colaboracionistas após a ii Guerra Mundial. Mas a capa do livro mostra uma fotografia a preto-e-branco de duas metralhadoras Sterling Mark 4, fazendo suspeitar de uma obra mais actual. O autor, Gérald Damseaux, foi inspector da Sûreté belga (os serviços de informação) a partir de 1977 e viveu de perto o período de atentados perpetrados na primeira metade dos anos 80 por grupos de extrema-esquerda (Células Combatentes Comunistas), de extrema-direita (Westland New Post) ou sem filiação política clara (as ditas “Tueries du Brabant”).
A narrativa é feita na terceira pessoa, através da alcunha do autor (Doul) e vale pelo relato pícaro do quotidiano dos serviços de informações (escutas, vigilâncias, contactos com informadores, infiltração de associações políticas suspeitas, colaboração – ou a falta dela – com as restantes polícias, os favores políticos, a contabilidade criativa das ajudas de custo, a incompetência das chefias, as insuficiências do equipamento, desde as armas de fogo às viaturas…).
Fora deste registo fica o depoimento, bem documentado, sobre o que terá sido uma tentativa belga de “strategia della tensione” para criar nos anos 80 um ambiente de terror conducente ao reforço dos poderes do Estado e à restrição dos direitos fundamentais. Damseaux demonstra que vários dos grupos terroristas estavam infiltrados por elementos da Sûreté não com o propósito de os controlar, mas para promover o terror, contando com a colaboração da CIA e da rede stay behind desenvolvida pela NATO. Des saines lectures…
Escreve à sexta-feira, sem adopção das regras do acordo ortográfico de 1990