Quando os jogadores de futebol começavam a demandar o Algarve à procura do sossego de verão, o Nuno Ferrari já esperava por eles, em plena praia. Nuno Ferrari: o mestre dos fotógrafos desportivos portugueses. O seu pai, Amadeu, também grande fotógrafo, trocara o apelido Ferreira por um bem mais sonante: Ferrari. Ferrari ficou para a história da fotografia e do desporto.
Houve um tempo em que, no jornal no qual eu e o Nuno trabalhámos juntos, se reportavam as vidas ao sol dos futebolistas lá para sul. Era um trabalho saboroso, ao ar livre, de praia em praia, de almoço em almoço, de jantar em jantar, conversas tranquilas, entrevistas despidas de solenidade, como se fossem feitas em calções. E eram!
Claro que o Nuno Ferrari abria todas as portas. Nenhum jogador, português ou estrangeiro, se recusava à foto da vilegiatura, com os amigos ou com a família, na areia, debaixo do chapéu de sol, ou à mesa do peixe grelhado. Podia dizer–se, com ironia, que era um trabalho de sol a sol. Ficou a memória. Os tempos são completamente outros.
Um dia, em Vilamoura, conheci Johann Cruyff. Estava com Eusébio. Dois Bolas de Ouro por entre bolas-de-berlim com creme e sem creme. Eles que eram, como diriam os franceses, ideólogos do Ballon d’Or, “la crème de la crème”. Mais tarde, muito mais tarde, deparei com uma história contada por Bob Wilson, que foi guarda-redes do Arsenal, contada ao “Guardian”. Começava assim: “Later, we met up on holiday on the Algarve. We’d be on the beach, Johan with his kids, me with my kids. We’d talk about football and life. One day, when we were kicking a ball around, Eusébio, the great Portuguese player, turned up and joined in. There’s a picture of the three of us together. I have a shirt on, which is just as well because those two had six-packs like Tarzan! I still have a picture in my office Johan sent me of himself later. Under it he’d written: ‘Don’t you wish you had a body like mine? Your joking friend, Johan Cruyff’.”
É suficientemente claro para não necessitar de tradução.
A foto era, claro, do Nuno Ferrari.
Cruyff e Eusébio
Johann Cruyff foi uma das maiores figuras da história do futebol. Não apenas pelo que jogava, e jogava enormidades, mas igualmente por tudo o que deu ao jogo, até como treinador revolucionário que veio a ser.
Eusébio era Eusébio. Ponto parágrafo.
Enfrentaram-se numa célebre eliminatória da Taça dos Campeões Europeus, com uma vitória do Benfica em Amesterdão (3-1), num campo de neve, resposta do Ajax na Luz (3-1) a obrigar ao prolongamento em Paris que decidiu a passagem dos holandeses (3-0, após prolongamento). Não deixaram de ser amigos por causa disso, era o que faltava, o desportivismo estava acima de qualquer pequenina querela que surgisse sobre a relva. O Algarve juntou-os, volta e meia.
No ano em que estive com ambos, Cruyff continuava magrinho e Eusébio já criara aquele tronco forte e duro distante da magreza adolescente que trouxera de Lourenço Marques. E Cruyff fumava cavalarmente. Tão cavalarmente que o cancro não o poupou. Bob Wilson, seu companheiro também nas areias do Barlavento, invejava a forma como se mantinha elegante: “Sempre teve a imagem de alguém construído por um artista com o corpo perfeito para o futebol. Era como um puro-sangue de corrida ou um galgo. Tinha umas pernas fininhas, mas com a potência de um Jaguar. Foi isso que lhe permitiu ter aquele jogo explosivo capaz de destruir qualquer defesa que lhe surgisse pela frente. Infelizmente, fumava como uma chaminé. E foi isso que o matou.”
No Algarve havia um Cruyff cheio de vida. Ainda não adivinhávamos que o seu filho Jordi, o mais novo dos três que teve com Danny Coster, viria a ser futebolista como o pai. Era um miúdo que dava mergulhos no mar azul, plácido. As irmãs, Chantal e Susila, procuravam rapazes bronzeados com quem sair à noite. Eusébio e Cruyff falavam de futebol. A gente ouvia. E ficava calado, tentando aprender alguma coisa com dois dos maiores de todos os tempos.
Cor Coster, o sogro e agente de Cruyff, levou-o para o Barcelona na fase em que parecia impossível que o Ajax ganhasse ainda mais do que tinha ganho. E Cruyff continuou a ser ele próprio em Espanha, embora não voltasse a jogar na fase final de um campeonato do mundo. Tal como Eusébio, só esteve presente uma vez, em 1974. Tal como Eusébio, que vestiu a camisola 13 em 1966 por insistência de António Simões (queria o 11 e, no sorteio, calhou o 11 a Eusébio e o 13 a Simões), surgiu com um número improvável nas costas: o 14. A lenda registou-o. Dizia, convicto: “Todos os treinadores falam de movimentação e de correr muito. Eu, pelo contrário, aconselho os jogadores a não correrem assim tanto. O futebol é um jogo de inteligência. É preciso estar no sítio certo no momento certo. Nem antes nem depois. As pessoas vão criticar-te sempre, a menos que sejas um génio.”
Morreu com 68 anos… Para lá da crítica.