Sbornaya.  A geração que desperdiçou  os seus poetas

Sbornaya. A geração que desperdiçou os seus poetas


Apesar da grande qualidade de muitas das suas seleções, a URSS só conseguiu aparecer uma vez numa meia-final de um Mundial: em 1966


SOCHI – O Portugal-URSS de Wembley, em 1966, a contar para o terceiro e quarto lugares do Mundial de Inglaterra, pode ter ficado para sempre pendurado como um quadro de matizes fortes na parede da memória do futebol português, mas foi igualmente o momento mais inalheável do futebol russo, embora, nesse tempo, ainda a sigla da entretanto dispersa União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Apesar de já ter sido campeã da Europa em 1960, em Paris, frente à Jugoslávia, a URSS nunca se impusera na maior competição futebolística do planeta, a despeito de, por mais de uma vez, ter surgido entre o lote dos favoritos. Recuemos até 1958, por exemplo. Campeões olímpicos dois anos antes, os soviéticos eram tidos como os inventores de um futebol científico, estudando adversários ao pormenor, apresentando índices físicos notáveis e uma capacidade organizativa à prova de tudo e mais alguma coisa, da mais hedionda das forças da natureza à mais pérfida das manigâncias humanas. Havia quem dissesse que eram invencíveis. Ora, tubérculos! Nos dois primeiros jogos do grupo 4, empataram com a Inglaterra (2-2) e bateram a Áustria (2-0). No terceiro sofreram horrores. Os três minutos mais longos da história do futebol. E tudo por causa de Garrincha que, até aí, não tinha jogado pelo Brasil. Valeria a pena esperar. E vale a pena ler Nelson Rodrigues, mestre inimitável da crónica: “E eis que, pela primeira vez, um ‘seu Manuel’ é o meu personagem da semana. Com esse nome cordial e alegre de anedota, ele tomou conta da cidade, do Brasil e, mais do que isso, da Europa. Creiam, amigos: o jogo Brasil x Rússia acabou nos três minutos iniciais. Insisto: nos primeiros três minutos da batalha, já o ‘seu’ Manuel, já o Garrincha, tinha derrotado a colossal Rússia, com a Sibéria e tudo o mais. E notem: bastava ao Brasil um empate. Mas o meu personagem não acredita em empate e se disparou pelo campo adversário, como um tiro. Foi driblando um, driblando outro e consta inclusive que, na sua penetração fantástica, driblou até as barbas de Rasputin. Amigos: a desintegração da defesa russa começou exatamente na primeira vez em que Garrincha tocou na bola. Eu imagino o espanto imenso dos russos diante desse garoto de pernas tortas, que vinha subverter todas as conceções do futebol europeu. Como marcar o imarcável? Como apalpar o impalpável? Na sua indignação impotente, o adversário olhava Garrincha, as pernas tortas de Garrincha e concluía: ‘Isso não existe!’ E eu, como os russos, já me inclino a acreditar que, de facto, domingo Garrincha não existiu.” 

Ainda abalada pelo ciclone Garrincha, a URSS cairia na ronda seguinte perante a equipa da casa, a Suécia.

Yashin, de mal a bem Se 1958 marcou a primeira presença da União Soviética em fases finais de campeonatos do mundo, os russos fizeram questão de estar nos três seguintes. No Chile, em 1962, apresentaram-se como campeões da Europa e com jogadores de imensa qualidade: Yashin, claro, o enorme Igor Netto, capitão, Ponedelnik, Metreveli, Valentin Ivanov, Valeri Voronin. A sbornaya (seleção) parecia finalmente preparada para se bater com os melhores. E a fase de grupos confirmava–o, ultrapassando Jugoslávia, Colômbia e Uruguai. O edifício soviético ruiu com estrondo nos quartos-de-final frente à equipa da casa, o Chile, em Arica, no Estádio Carlos Dittborn. Lev Yashin, o gigante que vestia de preto, a Aranha Negra, descoseu-se como uma renda de bilros puída até ao fio. Aos 10 minutos, um livre de Leonel Sánchez a 30 metros de distância passou-lhe por entre as mãos de tal forma que parecia estar a tentar agarrar uma galinha pelo rabo. Chislenko ainda empatou, mas a vida de Lev teimava em andar para trás. O segundo golo que sofreu foi pior do que o primeiro. O pontapé de Eladio Rojas veio de tão longe e foi tão expetável que o embaraço da Aranha Negra provocou risos nas bancadas. Deu um passo na direção da bola, mas nada fez para a deter. Saía do Mundial com o prestígio abalado. A imprensa considerou-o acabado, aconselhou-o a retirar-se. Mas ele tinha ainda uma ou duas palavras a dizer.

Quatro anos mais tarde, em Inglaterra, voltou a ser o grande Yashin, ciclópico, prodigioso e pleno daquela tranquilidade que sempre fizera parte da sua classe. A preparação foi tão científica que meteu até um estágio na América do Sul com jogos admiráveis frente a Brasil, Argentina e Uruguai. Instalados na cidade universitária de Durham, despacharam o grupo que tinha a Coreia do Norte, a Itália e o Chile com três vitórias. Yashin, lesionado, não esteve na estreia contra os coreanos, substituído por Kavazachvili, do Torpedo de Moscovo. Mas a Aranha do Dínamo recuperou depressa. Nos quartos-de-final, face à Hungria que tinha batido o Brasil, campeão do mundo, por 3-1, os russos impuseram um futebol físico e organizado e anularam por completo o avançado húngaro Florian Albert. A vitória por 2-1 abriu-lhes, pela primeira vez, a possibilidade de disputarem uma meia-final de um Mundial. Um confronto cerrado, taticamente eficiente de parte a parte, marcado pela expulsão de Chislenko e pela lesão de Sabo, trouxe consigo a vitória da Alemanha: 2-1. Em Wembley, para o terceiro e quarto lugar, nova derrota por igual número. Eusébio, de penálti, levara a melhor sobre o esplêndido Yashin. Torres pôs fim às dúvidas que restavam.