Nesta sexta-feira, o parlamento discute um projeto de lei que “determina a abolição de corridas de touros em Portugal”, procurando revogar “todas as normas que contrariem” essa determinação. A temática não é nova, num percurso errático no início: em 1836, com Passos Manuel, foram “proibidas em todo o Reino as corridas de touros”; nem um ano depois, foi revogado o decreto em causa.
São vários e conflituantes os ângulos de debate do tema (desde logo ao nível ético/moral ou sociológico). O meu não é de um aficionado, o que porventura racionalizará a minha análise. É um plano estritamente jurídico, necessariamente parcelar (o debate jurídico tem inúmeras vertentes, dificilmente conciliáveis, que merecem todo o meu respeito), incidente sobre duas premissas que, longe de serem únicas, reputo, todavia, de fundamentais: (i) o reconhecimento jurídico da dimensão cultural das touradas; (ii) a especificidade ou mesmo o tratamento de exceção legalmente conferido às touradas. Premissas que, caso não sejam fundamentadamente afastadas – e isso sempre careceria de um amplo e abrangente debate, que ora não ocorreu –, só podem, salvo melhor opinião, levar ao fracasso iniciativas legislativas como a presente. Vejamos:
Sobre o reconhecimento jurídico da dimensão cultural das touradas, atente-se no seguinte quadro normativo/institucional: (i) o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) prevê que as exigências em matéria de “bem-estar dos animais, enquanto seres sensíveis”, devem respeitar as “disposições legislativas e administrativas e os costumes dos Estados-Membros”, em particular em sede de “tradições culturais”; (ii) a Constituição da República Portuguesa consagra o “direito à cultura”, à “fruição cultural” (logo, diria, o direito a fruir de tradições culturais), tarefa que ao Estado, primordialmente, cumpre promover e assegurar; (iii) a Lei de Bases da Política e do Regime de Proteção e Valorização do Património Cultural obriga o Estado a “assegurar a transmissão de uma herança nacional”, com caráter de “continuidade”; (iv) no preâmbulo do Regulamento do Espetáculo Tauromáquico lê-se que “[a] tauromaquia é, nas suas diversas manifestações, parte integrante do património da cultura popular portuguesa”; (v) no acesso à profissão e no tratamento fiscal, a lei alude ao “artista tauromáquico”; (vi) a ERC acaba há dias de emitir parecer em que considera que “as corridas de toiros à portuguesa constituem uma parte integrante da herança cultural lusa, que o Estado tem a incumbência de promover e proteger”; (vii) as touradas têm “assento” no Conselho Nacional da Cultura e são fiscalizadas pela IGAC (Inspeção-Geral das Atividades Culturais).
No que concerne à especificidade/tratamento de exceção legalmente conferido às touradas, registe-se que: (i) o Regulamento da UE relativo à proteção dos animais no momento da occisão exclui os eventos culturais, como os desportivos, do seu âmbito de aplicação; (ii) a Lei da Proteção Animal consagra a proibição de utilização de “chicotes com nós, aguilhões com mais de 5 mm, ou outros instrumentos perfurantes, na condução de animais”, mas “com exceção dos usados na arte equestre e nas touradas autorizadas por lei”; (iii) o Código Penal exclui da tutela penal a maus–tratos “os factos relacionados com a utilização de animais para fins de espetáculo comercial ou outros fins legalmente previstos”; (iv) numa das recentes alterações ao Código Civil, no quadro do novo “Estatuto Jurídico dos Animais”, consagra-se a “proteção jurídica dos animais” mas “em virtude da sua natureza” (diria que a natureza de um touro bravo é a de um animal de luta, sendo a sua produção/criação orientada para um futuro combate… na arena).
Quebrar tais premissas significaria colocar em crise a “economia global do sistema” legislativo e institucional, gradualmente solidificada, com base em fontes internas e internas. E como R. Mendizábal afirmou, em semelhante discussão em Espanha, “regular não é destruir”. Muito menos de forma forçada, sem impulso/justificação social.
Se um dia ocorrer uma mudança de 180 graus do atual paradigma jurídico, só teremos de aceitar e aplaudir se for essa a visão consensual ou maioritária da sociedade e dos especialistas quanto à conciliação entre os direitos dos animais e o direito à cultura. Mas, por ora, e não sendo as touradas desporto – ainda que em “Os Maias”, de Eça de Queirós, Afonso da Maia a elas se refira como um “sport” (o famoso jurista brasileiro João Lyra Filho, nos anos 40, também assim as qualificou) –, defendo que há que atentar nos recentes e graduais passos dados neste setor: o TFUE reconheceu expressamente as “especificidades” do desporto (com consequente acolhimento legislativo e jurisprudencial, na UE e nos Estados-membros), ao mesmo tempo que o conceito de desporto tem evoluído, ampliando-se o seu escopo – logo, alargando-se o âmbito do direito ao desporto. Mutatis mutandis, uma visão não redutora do conceito de cultura certamente subsumirá as touradas, em prol da concretização do direito (fundamental) à cultura, assim se garantindo o “direito à tourada”.
Alexandre Miguel Mestre, Advogado e docente do ensino superior
Ex-secretário de Estado dos Desportos
entre 2011 e 2013